Roger Scruton: “As Memórias de Underground”.

Pablo González BlascoLivros 1 Comments


Roger Scruton: “As Memórias de Underground”. E Realizações Editora. São Paulo, 2019. 335 págs.

O recente falecimento de Roger Scruton foi o impulso necessário para tirar esta obra do compasso de espera na minha prateleira. Confesso que houve curiosidade na hora de adquiri-la, pois a referência que tinha me chegado apontava-a como o único romance do pensador britânico. Li várias obras de Scruton e me perguntava que tipo de romance ele teria escrito.

As Memórias de Underground, escrita em 2014, é classificada pela editora que traz a versão traduzia ao português, no apartado de ficções filosóficas. E, de fato, tal como imaginava, o argumento é uma desculpa para passar recados que nem sempre são uma sequência lógica, o desenvolver-se de uma trama. O que manda é o fundo, mesmo que a narrativa fique esfiapada pelas reflexões que perpassam capilarmente toda a obra. Scruton é um pensador de vasta cultura, e o romance apenas uma variante para transmitir seu pensamento.

O  contexto onde se situa a obra é na atmosfera de Praga em 1985, nos anos finais da dominação comunista. O protagonista é Jan Reichl, que enquanto viaja de metrô, imagina os segredos que se escondem por trás dos seus companheiros de viagem, compatriotas em silenciosa repressão. Imagina e escreve, essas são suas memórias, que cristalizam no livro Rumores. O gosto pela escrita vem provocado da condenação que o pai sofreu por ler e comentar autores proibidos na Tchecoslováquia comunista. “Foi considerado culpado de subversão em colaboração com uma potência estrangeira. Nunca soubemos de qual potência estavam falando. A potência da literatura, talvez (…)  A TV nos mandava desistir de nossa fútil resistência e fazer parte do mundo normal. E, ao voltarmos a tela para a parede e as costas para a tentação, sabíamos que estávamos fazendo isso por papai”.

A presença da cultura que impregna os livros, marca registrada de Scruton, aparece a todo momento. “Vivíamos nos livros, e procurávamos nos livros as coisas que foram apagadas da luz do dia do mundo (…) Como eu poderia explicar a esses jovens que houve uma época em que os livros eram tão importantes quanto a própria vida, quando tocávamos aqueles preciosos volumes que era um crime possuir e um crime maior ainda produzir?”.

O camarada Underground escreve Rumores. E por causa do livro ele ganha uma vida, e a e mãe perde a dela, por ajudar na impressão e circulação do manuscrito. “Aquela mulher inocente, que merecia só o que a vida tinha de melhor e recebia só o que tinha de pior (…) Aquela mulher que ao desligar toda a noite o abajur, “tocava aquele botãozinho para envolver as dificuldades do dia num pacote de escuridão. Recordei seu jeito de dispor nossa penúria em formas arrumadas e compactas, de modo que os problemas da nossa vida ficassem tanto controlados quanto guardados (…) A liberdade era conquistada por meio do amor: o amor que paga o preço de sua própria duração. Mamãe pagara aquele preço e as fundações do sistema tremiam acima de seu ato”.

A mãe de Jan é enviada para a prisão, e o protagonista, sofredor e carente, acaba conhecendo um movimento de resistência, quando numa das suas viagens de underground tropeça com a misteriosa Betka. “Éramos vinte naquela sala, unidos não pela coragem, mas por uma experiencia compartilhada de derrota. (…) O espaço dentro da mentira era limitado, mas confortável (…) Uma recusa de amar e de ser amado, que era o verdadeiro motor daquelas jornadas subterrâneas e do qual só despertei quando segui uma garota desconhecida até Divoka Sarka”

Sucede-se o romance com Betka – que é outra desculpa para o autor nutrir-nos com o seu pensamento clássico. “Recordo o seu olhar de desdém metafisico, como se eu tivesse perdido o direito de existir”. A crítica à cegueira materialista cerrada a qualquer transcendência: “A verdadeira escravidão é -dizia Dostoievski- uma doença da vontade, uma espécie de armadilha em que nós mesmos nos colocamos, criando expectativas que sabemos que não serão atendidas. (…) As pessoas colaboram no grande engano para não ser enganadas (..) A última vez que isso aconteceu com um amigo meu, prenderam até o advogado. É um crime defender pessoas que não cometeram crime nenhum. O mundo estava cheio de avisos, e eu adorava ignorá-los”.

Transcendência e estética, outra marca registrada de Scruton: “Uma força espiritual que apodrecera as coisas por dentro: a religião do Progresso, tornando pecaminoso aproveitar o luminoso presente e todas as profundezas que nele brilham, como brilhavam para mim naquelas duas sinfonias de Mahler (…) O muro em ruínas de um palácio apoiado por andaimes, parecia o rosto de um moribundo a sugar desesperadamente os flocos de neve em sua sede. …As estátuas gesticulantes no parapeito, como bailarinas num mar crescente de estuque”. E os companheiros de pensamento, que também fazem ato de presença:  “T.S. Eliot, outro exilado da modernidade descrevia isto como medo num punhado de pó (…) E Simone Weil, afirmando que  quando gritamos por uma resposta e ela não nos é dada é ai que tocamos o silêncio de Deus”.

A religião que supera o materialismo comunista também é destilada no pensamento do Underground, um alter ego do escritor. “A religião para o Padre Pavel, não envolvia nenhuma fuga do natural para o sobrenatural, nenhum repúdio deste mundo em nome de outro cuja irrealidade o tornava mais maleável aos nossos desejos. Ele descrevia o sobrenatural como uma presença cotidiana, entremeada no plano das coisas como o forro de um casaco

-Eu não sei rezar

-O importante não é pedir, mas dar: dar graças, pois é tudo o que temos. (…) Afinal, o que é a salvação senão a possibilidade de confessar as próprias faltas, e de abrir-se à expiação”

Integridade, compromisso e os paradoxos filosóficos tão do gosto de Scruton: “Há coisas que em sua forma verdadeira não podem ser compradas nem vendidas: amor, honra, dever, sacrifício. Porém, se mesmo assim quisermos compra-las e vendê-las, precisaremos de construir versões brandas e feéricas delas (…) Me amava com o que sobrava do seu amor….A alegria triste daqueles dias continua comigo. É a minha lembrança mais preciosa, a única razão que conheço para viver”.  Porque o protagonista escreve as Memórias anos depois, já em Estados Unidos. Como um sonho pensado, refletido, mais do que vivido. Um contraste com o mundo em que agora vive: “Os americanos tem um jeito que nós da Europa Central jamais conseguimos simular, de respeitar as pessoas como fins, e assim reduzi-las a meios. A sociedade que me cerca (aqui em USA) está construída sobre esta única premissa: tudo acontece por acordo”.

Comenta-se que Roger Scruton escreveu este romance inspirado na sua própria experiencia de colaboração com dissidentes do bloco comunista. Seja como for, a lembrança, saudade dolorosa dos árduos dias em Praga, onde a dificuldade revelava as verdadeiras prioridades, o que de fato importa na vida, é um recado atemporal para o leitor:  “O mundo que então nos cercava não possui equivalente hoje. Não estávamos presos em fios de comunicação por um cálido mar de confortos, sorrindo com cara de marionete e articulando palavras banais. Chegávamos um ao outro, com silêncios vastos e temerosos, usando os instrumentos que estavam à disposição para nos darmos a conhecer. Nada nos protegia, exceto as amizades que tínhamos feito, e o conhecimento, adquirido com tanto cuidado e tanta dor, que permitia nos elevar acima de nossa situação. Éramos os últimos românticos”.

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