Greyhound- Na Mira do Inimigo: Compromisso, a essência da Liderança

Pablo González BlascoFilmes 3 Comments

Greyhound. Diretor: Aaron Schneider. Tom Hanks. Elisabeth ShueStephen Graham, Alex Kramer, Matt Helm. USA 2020. 91 min

Tinha anotado este filme na minha lista de pendentes, mas confesso que fiquei desnorteado com um par de comentários que me chegaram antes de poder assistir. Um deles, elogioso, fazendo referência aos elementos técnicos da batalha naval, a habilidade para driblar os torpedos do inimigo, e coisas afins. O outro, plasmado numa revista de “críticos de cinema” (cujo nome omito, porque gosto da revista, embora não concordo com tudo o que lá se publica), dizendo que o filme era uma “overdose” de Tom Hanks. 

Assisti o filme e descartei os comentários. O primeiro, pareceu-me superficial, visto que os detalhes técnicos do elemento bélico são guarnição periférica, que não chegam no miolo da produção. “Acho que não entenderam nada do que viram” – pensei.  O segundo o descartei, porque de fato é sim uma overdose de Hanks -o filme é ele, do começo ao fim- mas não me parece nenhum demérito. Não tanto pelo ator -que chega a desaparecer embrulhado na missão que acomete- mas pela postura que, essa sim, motiva estas rápidas anotações. A liderança transformada em compromisso e integridade. Não é pequeno o recado, para os que estão abertos a recebe-lo. 

Pesquisando depois na base de dados de todos os cinéfilos -IMDB- se descobre que o filme está baseado no romance “The Good Shepherd” de C.S. Forester, e ainda se afirma que retrata tão profundamente os elementos do comando de batalha que por um longo período de tempo o livro foi usado como  texto de base na Academia Naval dos Estados Unidos.

Tom Hanks é o Capitão Kreuse, comandante do contratorpedeiro americano que tem por missão proteger o comboio Aliado no cruzamento do Atlântico Norte em 1942. O trecho da navegação entre as águas americanas até o outro lado do Atlântico, onde o apoio aéreo dos aliados se torna possível, é terra de ninguém, ou melhor, terra dos submarinos alemães que provocam ataques ininterruptos para malograr o envio de suprimentos. 

Hanks-Kreuse não tem experiência nessa travessia que goza de fama triste e arrepiante, enfrenta-a por primeira vez. E o esclarecimento não é um detalhe, mas elemento essencial na compreensão da mensagem do filme. Copio as anotações pertinentes do IMDB: “A história se concentra em sua responsabilidade de comando na luta contra o frio, a noite implacável, o mar brutal e sua fadiga profunda enquanto persegue os submarinos de ataque no jogo mortal de gato e rato. Uma história emocionante de braço dado com o capitão sitiado”

Falamos repetidamente neste espaço da liderança, das virtudes que requer, e das variações sobre este tema que é a bola da vez. O protagonismo da liderança nestes tempos globais é curioso e instigante, reconheço que me faz pensar, e muito. Porque afinal, liderança é atitude que sempre existiu. Basta perguntar a Alexandre Magno, aos Espartanos, aos Romanos, a um sem fim de figuras da idade média, aos descobridores e conquistadores do século XVI (hoje tão mal vistos??) e por ai afora. Atrevo-me a pensar -quase com medo- se não será o nosso imediatismo de hoje, a tecnologia -a felicidade!- à distancia de um click no aplicativo certo, o que nos consegue enganar sobre a construção da liderança. 

Anotei também aqui minhas reflexões sobre os cursos ‘fast-food’ de liderança, sobre as lideranças fake, e não é caso de voltarmos sobre o assunto, até porque teve quem se incomodou…..A tal da carapuça, mas deixa para lá. No entanto, confesso que é matéria que não me larga. A tediosa insistência no tema, lembra-me aquele comentário surpreendente de Margareth Thatcher : “Quando você insiste muito em que é uma dama, vai ver que não é tanto assim”. Mutatis mutandis, o mesmo se pode dizer sobre as lideranças que nos cercam……

Hanks, na sua overdose, monopolizando a tela, oferece um belo exemplo do que pode ser o âmago da liderança real e efetiva: a capacidade de compromisso, dar o teu melhor. Não é a experiência -que não tinha- , nem a habilidade especial, mas o compromisso e a decisão de doar-se até o final. Uma preocupação que abrange desde o conjunto do cenário bélico, até os detalhes com todos e cada um dos homens que integram sua tripulação. Uma liderança que permeia os corações, porque é exercida também de coração aberto. Sem blindagens, sem garantias, abrindo mão de cintos de segurança e de airbags politicamente corretos. Lembrei dos versos de Fernando Pessoa: “A vida é terra, e vive-la é lodo/ Tudo é maneira, diferença ou modo/ Em tudo quanto faças sé só tu/ Em tudo quanto faças sé tu todo”. Ser por completo, unir-se à missão, fazer dela o sentido do viver. É a única saída quando a vida que é terra, se transforma em lodo e ficamos melecados, grudentos com a miséria humana. 

É tão forte -e tão eficaz- essa atitude, como rara e escassa no mundo que vivemos. Basta consultar os jornais -nem vale a pena ler- onde as manchetes já nos anunciam o que os “lideres do momento” tem na mente e no coração, e no bolso……Existe a tentação de pensar que pode faltar preparo, ou experiência, ou habilidade técnica (lembremos do comentário n. 1 que me desorientou)…..O que falta é mesmo compromisso! 

Por isso, fiquei feliz quando por outros motivos -uma conferência que estava preparando- tropecei com este texto de Ortega que tinha anotado nas minhas fichas. Pertence a um livro denominado: Meditação do povo jovem e outros ensaios sobre América e diz textualmente em livre tradução do espanhol: “Aprendei  a preferir as pessoas que não sejam barulhentas, que tenham uma vida honesta e diligente, sem honras e pompa, não porque valham muito, mas porque esses homens, por falta de qualidades mais geniais,  deixarão ao seu passo lá onde forem, um rasto humilde, mas severo e respeitável, porque desprovidos de talentos gloriosos,  terão colocado seus cinco sentidos no trabalho e acima dele, como um acento, o seu coração”. Colocar os cinco sentidos, dar o seu melhor, ser tu todo, no dizer de Pessoa.

Essa é a essência da verdadeira liderança que o Comandante Kreuse nos oferece, em convite enorme, prato cheio para a reflexão. Uma liderança que se gesta no seu camarote, no enfrentamento com sua consciência, nas preces que dirige a Deus, apalpando as limitações, o medo e o cansaço. Sem espaço para desculpas -analisado friamente não lhe faltariam-, nem buscando culpar os outros, ou até o sistema. De novo:  ‘ser só tu, para ser tu todo’. 

E desse compromisso que espreme até a última gota suas capacidades, surge a criatividade que não é a solução genial, mas se desdobra em novas obrigações. “O dever que se nos exige -diz Gregorio Marañón- é apenas um pretexto para que inventemos outros deveres”. Um não parar até chegar ao fim, até atingir a certeza de dar o melhor de nós. 

Uma overdose de Hanks, que provoca uma avalanche de reflexão. Que nos desentoca dos comodismos e nos situa perante as responsabilidades que esperam  ombros para serem carregadas. Sem detalhes técnicos de batalha naval ou de vídeo game. Liderança em estado puro!

Comments 3

  1. Além do comprometimento, chama a atenção a força da fé do líder, que no meio daquele peso enorme de cuidar de centenas de homens, encontra tempo para buscar luzes e forças na sua oração mental matinal e durante a sua tarefa como comandante. Humildade é a base dos homens magnânimos.

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