Uma vida Oculta: O respeito pela consciência alheia.

Pablo González BlascoFilmes 2 Comments

(A Hidden Life)  Diretor e Roteiro: Terrence Malick. August Diehl, Valerie Pachner Matthias Schoenaerts, , Michael Nyqvist, Jürgen Prochnow, Bruno Ganz. 175 min  EE.UU. 2019.

Já comentei neste espaço que os filmes de Terrence Malick não são propriamente filmes, mas ensaios de transcendência. Como a minha proposta de educar no humanismo através do cinema é muito mais modesta -aliás, é usar os filmes que “o público assiste”- nunca coloco os do diretor-filósofo como prioridade. Mas, novamente, não tem como fugir deles…..e alinhavar algumas reflexões, pelas solicitações que me chegam. “Você já viu Uma Vida Oculta? Não vai comentar nada? É um filme bom para ver ‘em família’? Assim, de bate pronto, minha resposta não foi muito polida: “Isso depende de se você quer ver um filme…..ou uma meditação, talvez um Retiro Espiritual de quase 3 horas”. Mas depois, fiz a lição de casa; ou melhor, a completei, porque o filme já o tinha visto numa empreitada de final de semana, com espaço para que as imagens e pensamentos do Malick ecoassem à  minha volta, com os rios e as montanhas da Áustria. 

Foge completamente ao meu propósito -completar a lição de casa- um comentário exaustivo sobre o filme. Até porque li alguns excelentes  que dissecam a produção, assim como uma magnífica entrevista  com August Diehl, que dá vida ao protagonista, ambos publicados numa revista de cinema espanhola. Entre os muitos temas que podem ser explorados, por algum motivo -sempre a vida dirige o teu olhar na hora de ver um filme- o respeito pela consciência alheia tomou relevo nas minhas reflexões. 

A história é real: Franz Jägerstätte, um camponês austríaco casado com Fani Schwanninger, pai de três filhas, nega-se a jurar fidelidade ao Reich alemão porque o nazismo vai contra a consciência dele. Uma família austríaca, católica, rural e normal (que não é o mesmo que comum, porque o amor que transpira é um poema imenso). Acabará sendo executado por insubordinação pelas autoridades nazistas em 1943. Fani, viúva, viveu até 2013 e carregou a dor com classe. E a Igreja Católica que aplica a frase de Santo Agostinho (Martires non facit poena, sed causa– O que faz de alguém um mártir, não é o modo de morrer, mas o motivo pelo qual morre), beatificou Franz em 2007 (interessante notar que Bento XVI, um Papa Alemão, estava no comando nesse momento). 

A objeção de consciência é tema muito ventilado no cinema desde longa data. Lembro de quando assisti ainda criança Sargento York,  com Gary Cooper. Meu pai nos tirou da cama porque “era um filme que tínhamos que ver”. Impacto indelével da educação familiar e do relevo que certas atitudes supõem para construir a personalidade. Uma longa série de filmes, que chega até Mel Gibson, com o seu Até o último homem, abordam a objeção de consciência. E, naturalmente, as objeções que te custam a vida, como aqueles inesquecíveis que relatam a vida de Thomas Becket  e Thomas More. Objeções de consciência que conduzem ao martírio e ao reconhecimento da santidade. 

O respeito pela consciência alheia aliado à vida que te inspira a reflexão.  Há algumas semanas, conversando com um amigo a respeito da educação familiar, perguntei sobre a esposa dele. Ele foi categórico: eu devo educar meus filhos; com minha mulher é diferente: ser exemplo de dedicação, o resto é com a consciência dela e com Deus. Fiquei impressionado. Um profundo respeito pela consciência da  pessoa amada que faz permanecer em observação atenta, mas não afoba, nem muito menos toma decisões por ela. Este episódio funcionou -mais uma vez- como arco voltaico que me fez retomar as reflexões do filme que nos ocupa, para destacar este aspecto fascinante. 

Franz o protagonista, é o herói silencioso que acaba carregando a palma do martírio. Encaixa as críticas de amigos e vizinhos, responde com silêncio ao desprezo das pessoas da aldeia que lhe acusam de falta de patriotismo, de colocar em risco a família. Até ai, uma variação sobre o tema dos filmes comentados acima. Mas o destaque -o que me fez centrar-me numa reflexão profunda- foi a atitude de Fani que com seu cuidado e encanto, apoia a decisão do marido. Ama-o intensa e profundamente, mas respeita de modo heroico a consciência de Franz.  “Que sucedeu na nossa terra, onde foi o amor? Quero salvar minha vida, mas não através de mentiras” -diz Franz. E Fani escuta, sofre, ama e em silêncio oferece todo a ajuda para que o marido honre a consciência dele. 

Malick conheceu Fani pessoalmente, tinha admiração por ela, disse que era tão mártir como Franz. A atitude dessa mulher é impactante, faz pensar. Até que ponto somos capazes de, respeitando a consciência do outro, abrir mão das nossas opiniões, aderir à dor que a decisão alheia nos trará? “Eu sei o que é bom para ele. Está cego, não vê que vai nos trazer a desgraça? Que orgulho e teimosia é esta? Será que pretende mudar o mundo?” Poderia ser nossa reação , e tem precedentes: basta ler as Atas dos Mártires romanos, para ver os comentários, persuasivos embora inúteis, que as famílias lhes faziam momentos antes de ser jogados aos leões…..Ou então, variáveis mais suaves mas igualmente invasoras da consciência alheia: “não quero que ele passe pelo que eu passei…..ainda é muito jovem, não conhece a vida ( a vida que eu conheço, naturalmente). Isso sem falar quando no supermercado, na porta do colégio, ou na cabelereira te dizem “o que tens de fazer com a família neste mundo cão, para não correr riscos”. Lembro de uma paciente que me comentou que a maior dificuldade para ter uma família numerosa…..eram as explicações que tinha que dar às amigas no salão de beleza!

Fani, escuta, sofre, respeita, apoia. Estamos a anos luz dessa atitude de respeito quase litúrgico pela consciência dos outros. E até invocamos argumentos com cheiro de transcendência para justificar nossa invasão. Vale lembrar aqui o episódio do Cardeal Newman -outro incompreendido, já se vê que isto é frequente nos santos britânicos- no debate sobre a consciência. O cenário é conhecido: o político liberal inglês William Gladstone publicou um comentário acusando os católicos ingleses de não viverem a cidadania, preferindo obedecer ao Papa antes do  que à Coroa britânica. Norfolk pediu a Newman que intervisse no debate, e o futuro Cardeal escreveu uma magnifica  carta, onde afirmava que a consciência faz presente a verdade, por ser mensageira de Deus, a voz divina que fala dentro de nós. Os católicos -dizia Newman- devem seguir sua consciência, e isso implica também lealdade com o seu país. Não são escravos de ninguém, nem mesmo do Papa. E concluía: “Se sou obrigado a fazer um brinde após uma comida -coisa pouco provável- certamente brindarei pelo Papa, com muito gosto. Mas antes, brindarei pela consciência; depois pelo Papa”.

É justamente nas dificuldades -nas coisas que não acontecem como gostaríamos, e onde outros decidem de modo que nos incomoda- onde esse respeito se deve fazer valer. Ortega dizia que a nossa vida é um constante aceitar feridas, porque a ausência deles apagaria a própria vida. Todo indivíduo e todo povo -afirma- vivem precisamente dos seus problemas. E para fazer frente a isto é preciso treino constante, que é justamente a tradução do termo grego askesis, que utilizavam os atletas nas competições. Este termo foi adotado pelos místicos da Idade Média aplicando-o à atividade do homem que busca estar “em forma” para conseguir a beatitude. Palavras textuais de Ortega, que não era precisamente um teólogo…..

O pensamento da askesis é recorrente no filósofo espanhol. No famoso ensaio A Rebelião das Massas afirma de modo categórico: “Conforme progredimos na existência, podemos notar que a maioria dos homens – e mulheres – são incapazes de qualquer esforço que não seja o estritamente imposto como uma reação a uma necessidade extrema. Por esta razão, os poucos seres que conhecemos capazes de esforço espontâneo e luxuoso permanecem mais isolados e tão monumentalizados em nossa experiência. Eles são os homens eleitos, os nobres, os únicos ativos e não apenas reativos, para quem viver é uma tensão perpétua, um treinamento incessante. Treinamento: ‘askesis’. Eles são os ascetas”. 

Bento XVI que beatificou Franz,  lembrava com ocasião de outra beatificação, a de John Henry Newman, o tema da consciência. A cita é longa mas não tem desperdiço: afinal é um diálogo entre dois intelectuais de imensa envergadura: Newman e Ratzinger. Anoto textualmente: “Em Newman, a forma motriz que impelia pelo caminho da conversão era a consciência. Com isto, porém, que se entende? No pensamento moderno, a palavra consciência significa que, em matéria de moral e de religião, a dimensão subjetiva, o indivíduo, constitui a última instância de decisão. O mundo é repartido pelos âmbitos do objetivo e do subjetivo. Ao objetivo pertencem as coisas que se podem calcular e verificar através da experiência. Uma vez que a religião e a moral se subtraem a estes métodos, são consideradas como âmbito do subjetivo. Aqui não haveria, em última análise, critérios objetivos. Por isso a última instância que aqui pode decidir seria apenas o sujeito; e é isto precisamente o que se exprime com a palavra consciência: neste âmbito, pode decidir apenas o indivíduo, com as suas intuições e experiências. A concepção que Newman tem da consciência é diametralmente oposta. Para ele, consciência significa a capacidade de verdade do homem: a capacidade de reconhecer, precisamente nos âmbitos decisivos da sua existência – religião e moral –, uma verdade, a verdade. E, com isto, a consciência, a capacidade do homem de reconhecer a verdade, impõe-lhe, ao mesmo tempo, o dever de se encaminhar para a verdade, procurá-la e submeter-se a ela onde quer que a encontre. Consciência é capacidade de verdade e obediência à verdade, que se mostra ao homem que procura de coração aberto. O caminho das conversões de Newman é um caminho da consciência: um caminho não da subjetividade que quer se afirmar, mas, precisamente ao contrário, da obediência à verdade que pouco a pouco se abria para ele”. 

Voltamos a Fani para reconhecer que não é fácil ter por marido um asceta, um homem de consciência ao estilo de Newman. Não é fácil, mas é uma aventura maravilhosa, na conquista da felicidade. Em silêncio, apoiando, sobram palavras. Lembrei do pensamento de Pascal : “Todos os problemas da humanidade decorrem da incapacidade de o homem ficar tranquilamente sozinho sentado no seu quarto.”

E voltamos ao filme sem saber exatamente onde nos encaixar. É isso o que dá quando nos atrevemos a glosar estes ensaios de transcendência. A câmara de Malick funciona como uma ressonância magnética da alma, que projeta em luz estroboscópica, as luzes e sombras do espírito, misturados com as nuvens, os rios, as montanhas, a neve dos alpes. E a voz em off, o narrador, que é quem emite os laudos -por seguir com a metáfora da imagem médica. Não é surpresa que mais do que um comentário fílmico, o resultado destas linhas seja uma avalanche de pensamentos sem contornos, a modo de quadro impressionista. Como a câmara de Malick que pensa em voz alta. 

Acabar estas linhas é quase mais difícil do que inicia-las, pois a densidade toma conta de nós. Melhor anotar o texto final da fita, que Malick empresta de Middlemarch, um romance de George Eliot:  “O bem crescente do mundo depende em parte de atos não históricos. O fato de as coisas não estarem tão mal para você e para mim como poderiam ser, em parte é devido ao número de pessoas que viveram fielmente uma vida oculta e descansam em túmulos não visitados”. Palavras de uma mulher (sim, G. Eliot é uma mulher inglesa do século XIX), como Fani. Silenciosa, amante, respeitosa da consciência alheia até o heroísmo.

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