Adela Cortina: “Ética de la razón cordial. Educar en la ciudadanía en el siglo XXI”.
Adela Cortina: “Ética de la razón cordial. Educar en la ciudadanía en el siglo XXI”. Ediciones Nobel, Oviedo, 2009. 270 págs.
Tinha este livro na minha estante, há muito tempo, quase uma década. Por algum motivo, ele piscou para mim às portas de umas breves férias no final do ano. Como dizia Borges, os livros tem o seu momento, não porque eles mudem, mas porque nós mudamos, tornamo-nos disponíveis e alinhados com essa leitura. Como dizem os anglófonos, encontramo-nos “in the mood for” , um estado convidativo para empreender esse mano-a-mano com a letra impressa. Neste caso, trata-se de um ensaio filosófico, que é na verdade um passeio agradável da mão da autora que domina o sentir dos pensadores na sua implicação com a ética. Variedade de autores e suas respectivas posturas éticas, e o modo de ver o mundo. Um passeio que desemboca no que a escritora denomina a ética da razão cordial, uma contribuição para educar na cidadania nos dias de hoje. Leio o original espanhol, e me permito uma tradução de bate pronto nestas linhas para facilitar a mensagem: a da escritora, e das minhas próprias reflexões.
A busca da conciliação -requisito para qualquer educação na cidadania- torna-se presente já no primeiro momento. “Os entusiastas do conflito -não os agravados, mas os ressentidos- alegram-se de não encontrar valores compartilhados. Quanto pior, melhor -essa é a sua consigna (…) Descobrir conjuntamente o ‘capital ético’ compartilhado, sem o qual uma sociedade torna-se desumana, por carecer de mínimos de humanidade. Esse era o sentido da “ética de mínimos” que escrevi há 3 décadas”.
Cortina situa o problema e avança analisando aspectos clássicos, como as normas, “que não são instrumentos odiosos, mas algo tão simples e necessário como as expectativas reciprocas de comportamento que nos permitem levar adiante aquilo que nos propomos (encontrar-se com a família quando levantamos de manhã, o professor na sala de aula, a cantina da faculdade aberta no horário habitual….). O saber ético está ligado ao ethos, ao caráter das pessoas que são os atores no mundo moral. O caráter é o conjunto de predisposições, de hábitos , para agir num sentido ou em outro, que vamos forjando diariamente, a golpe de escolha”.
Adverte a filósofa valenciana do abismo existente entre as ideias e as crenças. “O senhor se deixaria corromper? – Se isto é uma entrevista, evidentemente não; se for uma proposição, vamos conversar”. (…) Entre o que se diz e os fatos há um enorme abismo. Tanto nas pessoas como nos representantes políticos. As atuações não estão à altura das declarações. Não parece ser o mesmo averiguar aquilo que é interessante, porque de fato é valioso, e o que de fato interessa porque é aquilo ao qual se dedica tempo”.
O tema me é especialmente caro e familiar, aquilo que já denominei “ a ética …das vírgulas”… em comentário feito neste espaço. Copio textualmente um parágrafo, porque não vejo maneira de dizer o mesmo com maior precisão: Em teoria, todos concordamos que se deve viver a honestidade –ou a sinceridade, a lealdade, e por ai afora- , mas há situações onde o ‘mas’, golpe adversativo, costuma ser precedido por uma vírgula. A vírgula, que fornece um ponto de inflexão à virtude, é o começo do descaminho. Sim, tudo isto é muito importante, mas….. Ai está a vírgula. Como esclarecendo: no meu caso, nesta situação, em tais circunstâncias, …..E com a vírgula segue-se a desculpa para eximir-se da atitude virtuosa. Na vírgula damos entrada aos exemplos –maus exemplos, entende-se- que outros dão e que parecem desculpar-nos das nossas obrigações. Na vírgula desbota-se a virtude, perde cor e atrativo. Nunca foi mais atual aquele ditado de que quem não vive como pensa, acaba pensando como vive; construímos toda uma antropologia da vírgula, que se veste de questões culturais, modernas –ou pós-modernas- desculpas eruditas para fugir do cumprimento do dever. Integridade? Compromisso? Lealdade? Sim, de acordo, mas….E lá vem a vírgula, confortante e salvadora.
Interessante o destaque que a escritora dá ao sentido real das normas: “Cumprir ou não as normas jurídicas implica um risco de sanção. No caso das normas morais é diferente: não são fruto de um pacto social, mas é a pessoa quem tem de estar convencida de que aquilo lhe obriga moralmente.
A obrigação tem uma relação com dever. Mas é preciso reconhecer que aquilo que se deve e nos obriga, apoia-se num vínculo, numa ligatio, da qual segue-se a ob-ligatio, o que implica que além de um dever, é também um presente que faz aquele que se sente ligado ao outro. Sem reconhecer o vínculo, o dever ou o presente carecem de sentido”. Tudo isto, em português, reveste-se de um sentido peculiar, sendo o nosso obrigado o reconhecimento e a gratidão do que devemos ao outro.
Segue-se um passeio pelas diversas posturas filosóficas, as fontes éticas na história do pensamento. Abre-se com Maquiavel: “Os cidadãos precisam de um príncipe que orientado pelo seu interesse mais forte conserve o poder para o bem do povo. É mais importante parecer que ser, porque todos vem o que pareces, pouco apalpam o que de fato es, e esses poucos não se opõem. Daí surge o politicamente correto, e em palavras de Tito Lívio, Justa é a guerra para quem precisa dela e piedosas as armas quando são a única esperança”.
A continuação apresenta-se Hobbes e o Leviatã. “A fonte da obrigação moral não é um vínculo moral, mas o pacto nascido do temor à morte violenta ou a perda da propriedade”. E, naturalmente, Kant: “Doutrinar não é persuadir: a persuasão exige conectar com os interesses mais fortes. Kant dizia que até um povo de demônios, de seres sem sensibilidade moral, prefere o estado de direito ao estado de natureza. Os demônios, inteligentes e sem sentido moral, preferem obedecer as leis comuns para não perder a propriedade, a segurança e a vida. Aceitamos a justiça porque somos débeis. Se não fossemos, não teríamos razões para sermos justos”. Faz presença também a fábula do anel de Giges, personagem da República de Platão: o anel te torna invisível…..E ai? Continuas sendo justo quando ninguém te vê, quando tua debilidade não está exposta?
Maquiavélicos e Hobbesianos buscavam o interesse mais forte para a sobrevivência. Outros avançam para metas mais complexas, como aquele que é frequente ponto de discórdia no mundo: o afã de reputação, o apreço que os outros tem de alguns, e a rejeição que sente por outros. Uma economia da estima, uma mão invisível que recompensa ou pune de acordo com sentir comum (aqui entra a busca do voto, ficar bem na fita, etc…). Acostumar as pessoas a agir em função da sua reputação é colocar as bases do totalitarismo, não só de campos de concentração, mas da vida quotidiana. O mecanismo da estima como promotor de formas de atuação é atrozmente conservador, no pior sentido do termo. E nunca é uma fonte de obrigação moral.
Analisa-se o sentimento social como fonte ética. “Existe de modo natural um sentimento de simpatia com os demais seres humanos que nos leva a sentir mal-estar quando sofrem danos, e satisfação quando recebem um bem. Isso nos aponta estar diante de um vício ou virtude. É como um dispositivo que nos indica acerca do vicio ou da virtude. O sentimento de simpatia permite transitar da obrigação natural à obrigação moral; são os sentimentos sociais os que mantém a sociedade. As pessoas somos seres de carências, precisamos daquilo que outras pessoas e o meio nos podem oferecer”. Não há como não lembrar aqui das redes socias…..das carências, e do bem (ou do mal) que se pode fazer através delas.
Na ética kantiana contemplam-se “seres capazes de dar leis a si mesmos. Não qualquer lei, de acordo com suas peculiaridades, mas aquelas que considera dignas de converter-se em leis da humanidade. As leis não podem ser individuais, mas sim gerais e universais; e o ser humano que se dá a si mesmo leis não tem como referência sua peculiar idiossincrasia mas a da humanidade (…) Ninguém lhes impõe a obrigação moral de cumprir esses valores: os reconhecem por sua força própria, os interiorizam e os tornam universais. O vínculo me liga comigo mesmo: uma mensagem difícil de entender num mundo como o nosso volcado para o exterior, e nada se sabe de deveres para consigo mesmo. Respeitar a própria dignidade é uma obrigação moral”. Pensava eu, nos políticos legislando em causa própria e tive vertigem…Onde fica a noblesse oblige, que Adela Cortina faz extensiva à humanidade obriga, autonomia obriga?
Seguindo Charles Taylor a autora lembra da importância da identidade moral, aquela que se define no horizonte do mundo moral da pessoa, de forma que a partir dela o sujeito sabe o que é verdadeiramente importante para ele, o que de fato lhe atinge, e o que tem menos significado. A identidade moral leva a priorizar aspectos, valores, avaliar o mundo moralmente e atuar em consequência. Vale também lembrar que o egoísmo inteligente é um recurso para fazer cumprir as leis legais, mas não para adquirir convicções morais. O que implica que a ética tem de ser incorporada nas instituições. “ Por exemplo, pagar impostos porque é justo e não porque implica uma sanção deixar de fazê-lo supõe que o Parlamento desenhe os orçamentos e os cumpra com transparência, em justa distribuição dos recursos. Desse modo o cidadão terá um apelo convincente para responder à obrigação moral. Do mesmo modo, quando a responsabilidade social das empresas não é apenas uma estratégia de marketing que deixa a porta aberta à ações imorais quando sejam mais rentáveis, mas de fato se integra no caráter da empresa, na sua dimensão ética”.
De volta a ética kantiana e suas insuficiências, “pois parece deixar de lado que os seres humanos são vulneráveis, e por tanto dignos de compaixão e não somente de respeito. Aqui entra a compaixão, que pode ser um móvel de ações morais. Cultivar os sentimentos estéticos que nos inclinam a participar no destino dos outros. Levamos os sentimento de respeito, de satisfação por ser fiel à própria autonomia, mas também o de benevolência que se traduz em beneficência, fazer o bem, sentir compaixão do sentimento alheio. São as razões que a razão não conhece (Pascal) às quais se chega pelo coração. A razão produtiva não compreende as razões do coração; mas a razão cordial sim: junto do espirito geométrico, existe o espirito de finura que nos ajuda a conhecer de outro modo”.
O passeio ético-filosófico chega neste ponto ao tema que me é particularmente querido: a educação das emoções como parte da pedagogia ética. “Quem carece de compaixão não pode captar o sofrimento dos outros; quem não tem capacidade de indignação carece do órgão necessário para perceber as injustiças. As emoções são antenas que nos permitem conectar com os outros. A cegueira emocional produz essa analfabetismo emocional sem o qual a vida ética é inviável (…) Não é possível separar com um bisturi a razão do sentimento. Não se pode conhecer o mundo moral apenas colocando-se no lugar do outro quando isso é agradável. Mas desconhece o mundo moral quem carece desses sentimentos. Não bastam os sentimentos, mas sem eles os ideais da humanidade não encontram terra fértil para crescer”.
Daí a necessidade de educar na degustação dos valores. “Os valores pertencem a uma dimensão especial que não é o ser das coisas, nem o que permite contar elas ou medi-las, fogem da comprovação empírica. Os valores se degustam, e aqueles que tem capacidade de estimar, conseguem apreciar seu relevo (….) Preferir é valorizar, estimar mais ou menos; isso não decorre dos fatos per se, mas implica as interpretações, saber orientar a vida desde os melhores valores -o que exige forjar-se um bom caráter”. Neste ponto lembrei de Ortega quando diz que “nada nos é indiferente: o amamos ou odiamos, estimamos o desprezamos, preferimos ou descartamos; todos levamos dentro do nosso peito uma incansável e trémula máquina de preferir que nos faz colocar coisas e pessoas numa perspectiva sentimental (Meditación del pueblo joven y otros ensayos sobre América). A autora discorda de Ortega quando diz que valores são qualidades das coisas mas irreais; para ela seria melhor ter dito que não são qualidades físicas. Porque reais são mesmo: a elegância não está na cor, forma, corte….mas é algo que está lá.
Educar nos valores, um capítulo de muita substância nesta obra. Lembra autores clássicos: “Todo néscio confunde valor e prezo” (Antonio Machado), “Cínico é o homem que conhece o preço de todas as coisas, e o valor de nenhuma delas” (Oscar Wilde) e até Groucho Marx: “estes são os meus princípios, e se você não gosta, tenho outros”. Valores para fazer o mundo habitável e lembra Wittgenstein para quem os valores dependem da liberdade humana (ser veraz depende de nós) e devem ser universalizados, acessíveis a todos, não dependem de habilidades. Como educar em valores numa sociedade onde há um abismo entre o que se diz acreditar e o que de fato se pratica? Um processo de degustação de valores -para crianças e adultos- como se degustam os vinhos. O paladar afinado para os valores, e aqui lembrei outra leitura que me é muito querida.
Lembra também Cortina que existem excelentes propostas mas falta a vontade política de leva-las adiante, e adentra-se num universo ético de maior envergadura: “O reconhecimento reciproco, a intersubjetividade (que vai além de interesse, simpatia, reconhecimento, autonomia, e mesmo dos valores). Um universo mágico onde é preciso contar com razões da razão e do coração para falar de justiça; não se pode reduzir à comunicação ao discurso lógico. Há muitas teorias do conhecimento, mas nenhuma do reconhecimento! (…) Não é moralmente obrigatório, nem politicamente obrigado, satisfazer as exigências de qualquer um que se sinta diferente e lute para ser reconhecido, mas somente daqueles que contam com expectativas que podem mostrar-se como legítimas, isto é, que podem mostrar ter sido tratados de modo injusto. A pressão não pode ser nunca uma razão suficiente para reconhecer uma demanda, mas somente a demanda acompanhada por razões que a legitimam”.
Valores e coração, razão e sentimento, binômios que ajudam a construir uma ética da cordialidade: “Um mundo sem coração. Até onde se pode chegar quando a pressão social não abona o mais elementar respeito , mas premia a torturadores, assassinos, aos que desprezam a dor e o sofrimento alheio? Quando se recompensa aos que não tem coração? O mal se banaliza, como dizia Hannah Arendt, mas para isso é preciso de um caldo de cultura que está representada pela ausência de coração . Conhecemos a verdade, não só pela razão mas pelo coração. E não somente conhecemos a verdade mas também e principalmente a justiça. Junto do espírito geométrico, está o espírito de finura, que nos faz conhecer de outra forma. As entranhas do coração”
E acrescenta de modo contundente: “Na ética do discurso sugere-se deixar os valores entre parêntesis, preço a pagar para chegar na dimensão intersubjetiva do mundo moral, e assim discernir qual o melhor argumento racional a seguir. Mas como é possível saber isto se colocamos entre parêntesis a capacidade de estimar? Renunciar aos valores nos deixa sem motivação para que as gentes se sintam obrigadas pelas normas. A boa retórica, não é arte de persuadir de modo enganosos, mas a arte de sintonizar com os sentimentos e interesses dos outros para chegar a um acordo de consentimento. Somente forjando um caráter disposto à comunicação é possível descobrir conjuntamente o mais justo, as soluções mais justas”. Quer dizer, junto com a nobreza, a autonomia, a humanidade, também a comunicação obriga!
E ética da razão cordial é audaciosa, pois “em algum momento propus substituir a virtude da prudência -virtude central no ethos grego- pela virtude da cordura, que é um enxerto da prudência no coração da justiça. A prudência pode ou não ter coração; a cordura é a virtude do coração e por isso quer a justiça (…) Há bens de justiça que podem e devem se exigir como direitos; e bens de gratuidade que não podem exigir-se como direitos porque não se podem satisfazer como um dever. O reconhecimento cordial é a fonte de exigências de justiça e obrigações de gratuidade, sem as quais uma vida não é digna de ser vivida”. Vale dizer que os capítulos finais são mais complexos, levanta a lebre, quer dizer, a teoria dela da cordura, vemos onde quer chegar, mas são pinceladas de um quadro impressionista, difícil captar os perfis; talvez por aquilo dos valores de Ortega, que não se podem medir, como a elegância……mas se podem intuir.
A título de resumo, que nos serve para encerrar estes comentários, vale transcrever um par de parágrafos: “Num mundo entusiasmado com o saber produtivo e técnico é fecundo recordar que nosso contato com a realidade, o de qualquer ser humano, é afetivo. Tomamos conhecimento da realidade através de uma inteligência que sente, afetiva. Percebemos a realidade a través de uma razão cordial: desde a alegria ou a tristeza, desde a euforia ou a admiração, interpretando, preferindo-a, ou rejeitando-a, com interesse ou desinteresse. Se alguém padecesse de cegueira emocional não teria interesse em nada, nem seria capaz de preferir entre várias alternativas, mesmo que tivesse uma enorme capacidade intelectual (…) Vamos elegendo as melhores possibilidades e apropriando-nos delas, como o sapateiro escolhe os melhores couros para fazer seus sapatos; apropriar-se de si mesmo é a chave da vida moral (…) A partir das predisposições herdadas -podemos dizem em linguagem empresarial- somos capazes de otimizar esses recursos, se conseguimos criar um clima emocional adequado na nossa vida pessoal e social”.
E acrescenta para que não haja nenhuma dúvida sobre o que consiste a Razão Cordial: “Uma adequada educação emocional prepara melhor para o sucesso pessoal e social do que uma educação limitada à transmissão de conhecimentos. Na época do saber produtivo, do saber fazer, mesmo o saber técnico requer um profundo saber pessoal e social que atende à educação da razão cordial. Precisamos de alimento, casa e cultura, liberdade de expressão e consciência, para ter uma vida digna. Mas precisamos também, quem sabe mais ainda, de consolo e esperança, sentido e carinho, desses bens de gratuidade que nunca se podem exigir como um direito; que os compartilham aqueles que os concedem, não por dever, mas por abundância de coração”. Sobram comentários, mas não consigo evitar uma lembrança pessoal de uma pessoa muito querida, um santo contemporâneo, que representa um resumo de tudo o anotado até aqui : “É preciso fazer as coisas não só com o coração, mas sempre com o coração”.