Higinio Marin: Teoría de la cordura y de los hábitos del corazón.
Higinio Marin: Teoría de la cordura y de los hábitos del corazón. Pre-textos. Valencia (2010). 288 págs.
Um livro que estimula a pensar. Também levava tempo repousando na minha estante. Parece que nestes momento singulares que vivemos, onde a voz confinamento tem repercussões variadas -no meu caso, um impulso para a leitura- vai tirando o atraso dos livros acumulados. É verdade, que nunca completamente, porque sempre adquirimos mais livros dos que seremos capazes de ler. Faz parte da atmosfera dos bibliófilos; Borges dizia que mesmo cego continuava a comprar livros, porque precisava da sentir-se rodeado da sua presença.
Este livro dor professor espanhol, mais do que uma teoria da cordura (vamos traduzir por sensatez, mesmo sabendo que é insuficiente) onde em cada capítulo aborda os distinto hábitos do coração, é um exercício filosófico do autor, e faz o leitor entrar em sintonia, ressonância, e acaba elaborando suas próprias ideias. Assim, longe de mim, a tentativa de oferecer um resumo do livro nestas linhas. São, sim, o produto da interação entre o que Marin escreve e o que eu me atrevo a pensar, no vácuo das suas considerações. Ler este livro implica uma experiência fenomenológica onde cada um poderá ir recolhendo a colheita das suas próprias conclusões.
Os capítulos, adverte, “não são fruto de uma eleição deliberada, mas dos pensamentos que tomavam corpo seguindo as classes e leituras de um professor de antropologia e das leituras que me guiavam nessa aventura, pouco ortodoxa, e nada obediente aos protocolos de investigação de publicações “de impacto”. As questões tratadas -diz Marin- se me impuseram pelo seu próprio impulso. É uma docência repleta de vitalismo, como se pode deduzir.
O que faz possível uma certa visão do mundo que Tocqueville chama “hábitos do coração”? Tornar explícitos estes supostos -estas lentes- através das quais vemos e nos posicionamos no mundo. O coração -pensa ele, Tocqueville- tem costumes que constituem o caráter emocional de uma nação. E acrescenta o autor, do qual traduzimos livremente para o português: “O que podemos ou não acreditar está regulado por aquilo que sentimos. Para poder acreditar no inacreditável, é preciso modificar os sentimentos em relação a isso. A afetividade é o lugar de onde certificamos a realidade. Esse vínculo entre o que sentimos e o que tem sentido podemos chamar cordura, aproveitando a ligação etimológica entre o sentido e a cordialidade, entre a realidade e o coração”
Por isso, “não ter coração é carecer do órgão de reconhecimento, não poder ser afetado pelo que acontece com os outros. É esquecer a condição que se comparte com os semelhantes vulneráveis , dependentes, mortais (…) Memoria, cordura, sensatez que se tece no tear da memória como Penélope, a esposa prudente que espera o retorno de Ulisses. Quem carece de memória e recordações, perde-se como os companheiros de Ulisses. O coração é também um critério de autenticidade (o que se diz ou se faz ‘de coração’) e de integridade. Não são atos isolados, mas uma disposição habitual”.
Fala-se da morte, e da importância da memória do coração: “Os segredos dos mortos, suas recordações, são necessárias para entender-nos a nós mesmos. Uma tradição é como um coro em que os vivos e os mortos nos completamos uns aos outros, alcançando o sentido do que dizemos. A perdida da vida dos mortos constitui a morte dos vivos- diz Santo Agostinho nas Confissões…”. Também a sepultura e o túmulo tem espaço nestes hábitos do coração. “Um esforço por domesticar a morte, para resgatar a memória. Uma cicatriz na terra e na memória(…) O modo de vida dos habitantes depende da classe de sepultura que damos aos defuntos. Nossas cidades carecem de habitantes pelo mesmo motivo que nossos mortos carecem de memória, lembrança e sepultura. O preço que os mortos fazem pagar aos vivos que não guardam sua memória é deixá-los sem um lugar onde possam chamar-se habitantes: os mortos sem sepulturas e memória, deixam o mundo sem casas nem habitantes. Somente a memória edifica, porque se opõe ao tempo, abre o espaço, o revela e o mostra na sua própria obra”.
Lembrei de Hans Jonas quando afirma que a distinção entre os humanos e os animais está constituída por um tripé integrado pelo utensílio, pela imagem e pelo túmulo. O utensílio é a técnica, e neste ponto não há dúvidas quanto a distinguir-se dos animais porque os humanos conseguem incorporar em pouco tempo toda a técnica acumulada na história que lhes precede. O segundo elemento, imagem, inclui a capacidade que o homem tem de representar a realidade através da arte. A arte e as humanidades são caminhos para melhor conhecer a realidade na qual o ser humano está imerso, e melhor conhecer-se a si próprio, na sua dimensão corporal e espiritual. A terceira perna do tripé está representada pelo túmulo. Somente o ser humano tem consciência da transcendência, e a representação da morte o coloca em contato com a dimensão que se estende além do seu próprio ser. Perder o sentido da transcendência, a dimensão espiritual, o sentido de eternidade e a duração do tempo próprio e do universo que lhe rodeia tem consequências funestas, porque à base de não frequentar o túmulo, “porta da transcendência”, acaba esquecendo o sentido de missão e a importância de sentir-se útil, como elemento integrante da própria felicidade.
Da morte o autor volta-se para a vida que é trajetória, destino, em vocação de liberdade, incluindo uma bela citação de Ortega: “A vida é converter a viagem em bagagem”. A vocação implica precedência, mas pendente de reposta e aberta ao diálogo. O destino nos converte em “atores” representando um papel de liberdade que não é absoluta. A noção moderna de liberdade é afirmar que o homem é autor absoluto da sua vida , descartando tudo o que suponha certa prefiguração da sua existência (incluído gênero, e outras coisas, que se distanciam da natureza). Autoria e autenticidade como critério único da liberdade moderna, conceito que é questionado. Porque afinal, a forma mais importante de liberdade, não é eleger, mas ser escolhido, e saber responder. Ai está a vocação, que vai além da liberdade de escolha, mas de resposta a uma eleição. Daí a importância dos hábitos do coração que facilitam a reposta a esse convite….A vocação é a forma livre do destino, a forma em que a liberdade prevalece sobre o destino. Deste modo se faz original, o homem se faz filho dos próprios atos sem ter que eliminar pai, mãe, tradição e natureza. E por isso, é capaz de agradecer. A liberdade nos permite responder e fugir ao destino da tragédia grega, para assinar em baixo dos nossos atos.
Fala-se da inveja: Cain não invejava as posses de Abel, mas suas oferendas. A inveja não é tanto do que se possui, mas do que é possível dar, ou dar-se.
Paternidade e filiação: o coração dos ímpios não valoriza o peso da própria ascendência. E da compaixão ligada à piedade, que se inicia pelo reconhecimento de filiação: A compaixão se estabelece entre iguais de fortuna desigual; a piedade inclui o sentimento de ascendência familiar. Depois se expande em fraternidade. É impossível compaixão sem piedade familiar, sem veneração da ascendência; um ímpio de coração nega a vinculação com os seus maiores, dependentes e impedidos. Piedade é o sentimento da existência como dívida , como gratidão e oferenda (por isso o parricídio em Roma, era punido com severidade, eliminando-se da face da terra qualquer traço do parricida, qualquer lembrança de que existiu). A piedade não sobrevive quando não se tem hospitalidade, reconhecimento do estranho; um desdobramento que nos levam até a pureza de linhagem e os campos de extermínio.
A hospitalidade é tema amplamente desenvolvido pelo autor. “O animal com mãos é o único que sorri, e quando o faz mostra os dentes de modo inofensivo, e abre um espaço interior onde a acolhida é possível. Mãos livres para exprimir gestos de acolhida, de hospitalidade tipicamente humana. Se a diferença entre o humano e o divino se dá pela mortalidade dos homens, o âmbito do humano se abre lá onde se oferece a hospitalidade, de uns homens aos outros. Fora da mortalidade, estão os deuses; sem hospitalidade, encontram-se as bestas e os degenerados. Os homens são mortais e hospitalários. Há homens no mundo pela hospitalidade: nem deuses, nem bestas (…) O viageiro nos situa no dilema: ou comer ele, ou dar-lhe de comer (invocação a Ulisses e os ciclopes).
“A hospitalidade é uma obrigação do anfitrião à qual o hóspede não tem nenhum direito. A gratidão é o correlato apropriado para a hospitalidade. O hóspede é quem salva nossa casa de ser uma antro de ciclopes; o hóspede nos libera do sequestro que exerce o próprio eu e faz de nós reféns, citando a Levinas. Hospitalidade é um alarde de confiança , um poder para nos sobrepor ao medo que produz apalpar nossa vulnerabilidade. Deixa exposto a boa vontade do anfitrião ao hóspede; um hóspede de caráter imprevisto que revela uma disposição aberta e incondicional, atenta ao caráter suplicante do viageiro” Abrir a casa nos humaniza; o isolamento -ficar longe dos problemas dos outros- nos desumaniza….suavemente, sem perceber. O egoísmo da blindagem!
A hospitalidade é um hábito do coração, mais do que um simples cômodo ou lugar. Na história foram os monges hospitalários os que fizeram hábito e profissão da acolhida, segregando a hospitalidade da casa do habitante, levando-a até o local da profissão: o hospital! Hoje, um paradoxo: tanto as profissões mais hospitalarias como os locais de hospitalidade, figuram entre os cenário mais inóspitos. Temos ai servido todo o tema da humanização das profissões da saúde…Um prato suculento, um tema infindável no meio da sedução da técnica. Hospitalidade é abertura ao convite e mesmo ao estranho. Mas hospitalidade não é simples familiaridade. Há organizações criminosas que “respeitam a familiaridade” e praticam o crime organizado, como a Máfia…..
Sucedem-se temas convidativos e atuais, nesta excursão antropológica: “Surpreende que a cultura contemporânea se resista a reconhecer a relação entre pudor -a falta dele- e a violência. Falta o sentimento do eu, do outro, próprio do pudor, abre-se espaço para a agressão e violência”. A religião: lembrando Ortega quando esclarece que religioso implica ser escrupuloso, sem se comportar ligeiramente, mas com cuidado. O contrário é negligencia, abandono. Nec-ligere…..contrário de religo e de diligere. Para isso, diz Ortega, o homem tem de contar com o que está além dele, para a realidade transcendente…Esse é o sentido de religio para os romanos.
A ilusão do falso controle: a pretensão de suficiência converte em culpável todo evento indesejado: as mortes por incompetência médica, os acidentes por negligencia de gestão, as catástrofes por negligencia política, os crimes por omissão policial. A tecnologia nos seduz hoje com uma pulsão de suficiência, que lembra o poder dos ciclopes grego, que nos faz pensar em que tudo teria de estar sob o controle da técnica…..
O rancor é um modo de preservar uma lembrança, de perpetuar a dor. Pelo rancor não é a ferida a que doe mas a lembrança, que se faz ferida. Ter rancor é possuir uma cicatriz cujo autor não é quem nos produziu o dano, mas nós mesmos; é o rancor da vítima o que mantem quente a intenção do agressor, e lhe dá um poder do qual carece por si mesmo. O rancor é a cooperação livre e eficiente da vítima com os desejos do agressor; faz-se dano a si mesmo para manter e justificar o desejo de vingança. Um hábito do coração que é mutilação, uma velhice prematura.
O perdão é a restauração do domínio de si da vítima, uma restauração da soberania do eu . Perdoar o agressor é colocar-se a salvo do poder alheio maléfico, limitar sua pretensão de se perpetuar na nossa alma. O perdão é uma lembrança do acontecido: recorda-se o que aconteceu mas como se não tivesse acontecido. O perdão nos coloca mais a salvo de nós mesmos do que dos outros. Perdoar, per-donnare, dar em abundancia , dar mais da conta…..
E, naturalmente, a admiração e o conhecimento. A inclinação a conhecer (admiração) é nosso modo de estar no mundo. A capacidade para o assombro é a que permite a admiração. Filósofo é quem sabe olhar o mundo de modo que o obvio deixa de sê-lo, ou melhor, sem deixar de sê-lo, torna-se interessante. (destaque por nossa conta!) A modéstia transforma o saber em sabedoria. É autoconsciência da finitude humana, e do seu conhecimento. Quando há admiração e modéstia, o saber e a ignorância não se anulam entre si, pois a consciência da ignorância faz crescer o conhecimento. Mas quando a regra é a dúvida, (como Descartes) o conhecimento e ignorância se excluem, não convivem porque se busca a segurança da evidência. Aqui entra todo o fascinante tema da incerteza, de como conviver com ela sem perder a classe, de como funcionar na vida sem ansiedades de falsas seguranças. A reflexão sobre isto também dá pano para manga.
Lembra-nos o autor que na Ética a Nicómaco, Aristóteles lembra que uma vida virtuosa, esforçada e meritória não é necessariamente uma vida feliz, pois precisa da amizade para estar a salvo dos desastres da existência. Um belo epílogo para estes hábitos do coração que requerem a convivência com os semelhantes. Para isso é preciso uma ingenuidade sadia, ter capacidade de sonhar e alimentar a esperança. Uma última anotação a modo de fechamento desta aventura antropológica.
“O diabo menospreza a liberdade do homem porque não espera nada bom. Não é por ignorância mas por conhecer tudo (aquilo de…. este filme eu já vi). O diabo é conservador, em palavras de Claudio Magris, porque não acredita no futuro nem na esperança; cínico e conservador, não acredita que a humanidade pode se regenerar, e aceita todos os males como inevitáveis. A desesperação é um erro moral e intelectual, que dá o destino humano como sabido. Um erro com sabor diabólico”. E como antídoto do erro diabólico e conservador, a cordura saturada de esperança: “A cordura do humanamente possível requer a serena paciência de quem não dá tudo por perdido, e espera o melhor A esperança é o hábito do coração que nos permite habitar o mundo desde os sonhos dos ideais, sem estar adormecidos; desde os encantamentos das fábulas infantis sem criancices, da paixão pelo bem e a felicidade do humano, sem estar ofuscado. A esperança nos permite habitar o mundo desde fora do mundo e incorpora a temporalidade finita da nossa presença nele, e a terna inclinação ao seu favor. A esperança define o homem”
Comments 2
Pablo adorei as considerações q vc produziu. Faz um exercício p o pensamento hospitaleiro.
Meu otimismo ficou mais desperto depois de ler esse texto.