Joel Dicker: “O enigma do Quarto 622”
Ed. Intrínseca. São Paulo. 2021. E-Book. 680 págs.
Leituras na Pandemia – 12
Adentrar-se para comentar o livro é risco desnecessário. Tratando-se de um romance de ficção policial desvendaríamos o segredo, atuaríamos, como se diz hoje, ao modo de um perfeito spoiler. Poderia se pensar que a obra do autor suíço tem um corte clássico dos romances de suspense -de Agatha Christie até Simenon, passando por Conan Dolye e Maurice Leblanc- mas não é verdade. Do ponto de vista literário pareceu-me muito distante dos clássicos do gênero. O que não implica que deixe de prender a atenção, enganche o leitor.
Aliás, foi assim que o livro entrou na pauta da nossa tertúlia literária. Tinha recebido a sugestão com uma mensagem que dizia, mais ou menos: “parece que foi o livro mais lido na França neste ano; não deve ser grande coisa, mas nestes tempos tumultuados, com nervos à flor de pele, a gente precisa relaxar de vez em quando, deixar as coisas excessivamente sérias”. Como a recomendação procedia de alguém que tem familiaridade com a cultura, aceitamos e disparamos o desafio. Não sem antes pensar que o que relaxa a alguns não é mesmo que funciona com outros. Há quem desfrute das amenidades sem mais, outros conseguem descansar em braços de pensamentos mais profundos, e da beleza.
Dito isto, é evidente que o escritor centra-se na história, mas também no ato de escrever. Os seus romances misturam ficção com realidade, e a realidade é sempre a mesma: ele, o autor, escrevendo este romance que nos apresentará. Para comprovar isso, dei uma olhada rápida em outra das suas obras: A verdade sobre o caso Harry Quebert. Olhada rápida, não no livro mas em alguns capítulos da série que se montou sobre o romance…e pareceu-me mais do mesmo. Nota-se que é um estilo que agrada e vende, embora a mim particularmente não me seduza.
Ai estão, na pena do autor, os recados do como e por quê se escreve:
“— Como lhe vem a ideia para os seus romances? — perguntou. Refleti por um instante antes de responder: — As pessoas costumam achar que a escrita de um romance começa com uma ideia. Mas um romance começa, antes de mais nada, com uma vontade: vontade de escrever. Uma vontade que dá e que nada é capaz de impedir, uma vontade que apaga todo o resto. Esse incessante desejo de escrever é o que eu chamo de doença dos escritores. Você pode ter a melhor das tramas para um romance, mas se não tiver vontade de escrevê-la, nada acontece”.
O tributo ao editor recentemente falecido norteia também toda esta obra. “Segundo Bernard, um ‘grande romance’ é um quadro. Um mundo que se oferece ao leitor, o qual se deixa fisgar por essa imensa ilusão construída a pinceladas. O quadro mostra a chuva: o leitor se sente molhado. Uma paisagem gélida e nevada? Quando vê, está tremendo. E ele dizia: Sabe o que é um grande escritor? É um pintor, justamente. No museu dos grandes escritores, de que todos os livreiros possuem a chave, há milhares de telas esperando por você. Se você entra uma vez, vira freguês.”
Misturados com estes objetivos, vão surgindo as personagens. As fictícias e as reais, como a musa que parece inspirar-lhe “Passamos várias noites , na casa dela ou na minha, ouvindo ópera, conversando e reinventando o mundo. Não conseguia deixar de devorá-la com os olhos: estava fascinado por ela. O jeito como ela piscava os olhos, arrumava o cabelo, sorria timidamente quando ficava com vergonha, mexia nas unhas pintadas antes de me fazer uma pergunta. Tudo nela me agradava (….) Entenda-se: eu adorava cada momento passado com Sloane. Mas tinha o sentimento de que com Sloane ia ser para sempre, que aqueles momentos de cumplicidade iam se repetir ao infinito. Ao passo que a inspiração para um romance pode sumir do mesmo jeito que vem: era uma oportunidade que eu tinha que agarrar”. Também aparece a secretaria que deve ser real, porque na outra obra tem o mesmo nome: Denise, a gentil mulher trocada por outra pelo marido, um ícone da solidão moderna. Nada melhor, para se sentir menos sozinho, que achar alguém ainda mais solitário!
As personagens do romance também rendem boas descrições: “Carismático, cheio de talentos, fluente em dez idiomas, era irritantemente perfeito, não deixava ninguém indiferente e despertava todas as invejas (…) Era o conselheiro dos mais ricos, o íntimo dos poderosos, o amigo dos presidentes, mas, não se esquecendo de onde viera, mostrava – se sempre disponível para os necessitados , caridoso com os desfavorecidos e generoso com aqueles que precisavam (…) Levovitch, contudo, parecia totalmente alheio a isso tudo. Seu coração era uma fortaleza intocável: dizia – se que nunca se apaixonara por ninguém”.
Macaire, outro dos protagonistas, também descrito com precisão: “Se não for nomeado presidente do banco, eu me suicido ! — Não diga uma coisa dessas! — apavorou – se o doutor Kazan. — Seria péssimo para a minha reputação (…) É possível odiar uma pessoa por admirá-la demais? — perguntou Macaire. — Sim — assentiu o doutor Kazan. — Isso se chama inveja”. E Anastásia, sua mulher, a âncora feminina sobre a que gravita o romance: “O que a seduzira fora a sua gentileza: por trás de aparências por vezes toscas Macaire era um homem essencialmente bom, de espírito direito e coração generoso. Ela era tão jovem quando aceitara o pedido de casamento de Macaire, e estava tão perdida. Precisando de gentileza como uma força vital. De que alguém cuidasse dela. Precisando curar as feridas da sua vida (…) Anastasia não sentia atração por Macaire, mas se sentia bem com ele. Podia ser ela mesma e se abrir (…) Sentia um carinho enorme por aquele jovem, um pouco deslumbrado com o próprio sobrenome, mas gentil e atencioso, espontaneamente prolixo e com o qual ela nunca se entediava”.
Outras personagens vão entrando em cena. Olga, a mãe de Anastásia, com seus delírios aristocráticos: “Ela não tinha fugido de Viena por medo dos credores, como fizera o covarde do seu marido , mas porque não suportava a ideia de ficar de fora da alta sociedade. Não existe maldição, o que existe são resignações (…) Morar em hotel soa bastante como Nabokov, explicava às filhas. Além de que o Beau – Rivage impressiona de imediato: é onde Sissi, a imperatriz, costumava se hospedar (…) Parecia saída direto de um romance de Tolstói , conseguia convites pela simples menção de seu nome artístico. — Ricos não têm problemas! — decretou Olga. — A vida não é só dinheiro! — disse Anastasia, rebelde. — É bem coisa de rico dizer isso! — retorquiu Irina, não sem uma pitada de amargura. Como diz muito bem a rainha da Inglaterra: Never explain , never complain (…) Herdeiros das famílias reais e dos chefões da indústria — estavam todos lá, como carpas num viveiro em que bastava jogar a rede”.
Alguns pensamentos que atentam para certa profundidade salpicam o romance mas, tudo deve ser dito, sem grandes pretensões. O que seduz ao escritor é mesmo a trama e o suspense: “Quando uma mulher mente para o marido sobre a origem de um buquê de flores, a explicação costuma ser muito simples (…) O homem que sabe fazer rir também sabe fazer viver, pois não existe sentimento mais belo. Porque o riso é mais forte que tudo, mais forte até que o amor e as paixões. O riso é uma forma inalterável de perfeição. É algo de que nunca nos arrependemos , que sempre vivemos plenamente. Quando termina estamos sempre satisfeitos , gostaríamos de mais, mas não exigimos. Até a lembrança do riso é sempre agradável”.
Pinceladas esparsas com as quais tropeçamos durante a leitura que está completamente tomada pela trama. “ — Você poderia se tornar um homem importante ….A importância não é algo tangível. Tem a ver com os outros, não com a gente mesmo (…) Não tem ninguém me esperando em Genebra. Há quem chame isso de liberdade, eu chamo de solidão (…) O amor é mais obra do tempo do que alquimia. O amor é, principalmente, esforço (…) Estava obcecado demais criando o que acreditava ser um paraíso. Mas o paraíso era um tédio mortal no longo prazo. Eva só tinha comido aquela maçã porque estava procurando uma boa desculpa para se mandar! (…) — Não — disse Lev. — Quando queremos acreditar de verdade em alguma coisa, só vemos o que queremos”.
E, naturalmente, considerações sobre o protagonista principal que não é nenhuma das personagens mas ele mesmo, o escritor. Tenta colocar em boca de algum dos protagonistas, mas nota-se que é apenas um recurso….de modéstia? “Assumira muitos riscos nos últimos doze anos . Escrever a verdade em algum lugar talvez viesse a ser útil (…) Eu deveria estar de férias e descansar. — Você vai descansar quando morrer sem ter que inventar um codinome nem mentir, uma vez que seu disfarce era a sua própria vida real”. Enfim, um divertimento com amenidades, com perfil narcisista -o autor se autocontemplando- mas, talvez, porque acredita o que ele mesmo escreve neste parágrafo, perdido no meio das idas e vindas, da realidade até a ficção: “A vida é um romance que já sabemos como termina: no fim, o herói morre. Por isso, o mais importante não é como nossa história acaba, mas como preenchemos as páginas. Pois a vida, como um romance, deve ser uma aventura . E as aventuras são as férias da vida.”. Vale conferir, e comprovar se você descansa e entra nesta aventura como férias, ou se precisa de algo de maior voo.
Comments 2
Goste muito da critica deste libro. Vou procurar para lir em quanto puder.
Muito obrigado
Goste muito da critica deste libro. Vou procurar para lir em quanto puder.
Muito obrigado