C. S. Lewis: “Cartas de um diabo a seu aprendiz”

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Thomas Nelson Brasil. Rio de Janeiro. 2017. 150 págs.

Leituras na Pandemia – 13

Ler C.S. Lewis é sempre um desafio. O contundente bom senso, permeado de fino humor britânico e de toneladas de cultura, requerem tempo para a digestão. A dificuldade não está nas ideias que o professor de Oxford coloca, mas na assimilação parcimoniosa, na degustação dos conceitos. Não se pode ler em diagonal, para ver “do que vai o assunto” porque o mais provável é perder o gosto que produz o elegante raciocínio. É preciso estar alerta para as subtilezas, porque Lewis é accessível mas não é simples. Foi isso que se percebeu no início da nossa tertúlia literária do mês: uma mistura de desconcerto e de surpresa.

As tais cartas do demônio sênior ao aprendiz, tem como pano de fundo o processo de conversão do próprio Lewis; daí que dedique o livro ao seu amigo -que foi instrumento nessa trajetória religiosa- J.R.R. Tolkien. As dúvidas que lhe cercaram e que teve de superar são a base do “coaching” do demônio velho para o novo. Por isso, os argumentos, quando saboreados, tem pegada, chegam fundo a cada um de nós que somos, “os pacientes” do tal demônio. O importante, diz o velho demônio, são os resultados, chegar lá, não importa os meios: “Você logo descobrirá que a justiça do Inferno é puramente realista e preocupa-se tão somente com os resultados. Traga-nos comida ou você mesmo virará nossa comida”. Qualquer meio está valendo se conseguimos “conquistar o paciente” para nossa causa: “Os demônios ficam igualmente satisfeitos com ambos os erros e saúdam um materialista ou um bruxo com o mesmo prazer”.

Mas as dicas contidas nas cartas do capeta veterano são, no fundo advertências para cada um de nós, pois é ai que mora o perigo, e não em grandes tentações e tragédias. É difícil tentar resumir uma enxurrada de pensamentos, além do que seria malgastar o prazer da leitura. Mesmo assim, vale uma tímida tentativa.

Primeira dica, desviar o paciente-humano da vida real.  “Mantenha a mente dele longe dos deveres mais elementares, direcionando-a para os mais avançados e espirituais (…) Certifique-se de que elas sejam sempre muito ‘espirituais’, que ele sempre se preocupe com o estado da alma da mãe, e nunca com o reumatismo dela. Eu já tive tamanho controle sobre alguns de meus pacientes que era possível fazê-los levantar da oração pela alma da esposa ou do filho para ir bater na esposa ou no filho reais ou mesmo insultá-los sem o menor escrúpulo. Agrave essa característica mais humana, mais útil de todas:  o horror e a negligência ao óbvio”.

Outra pérola: “Leve-o a fazer qualquer coisa, exceto agir. Nenhum montante de piedade na sua imaginação e nas suas afeições vai nos prejudicar, desde que a consigamos manter longe de sua vontade. Como disse um dos humanos, os hábitos ativos são reforçados pela repetição, mas os passivos são enfraquecidos. Quanto mais frequentemente ele se sentir inativo, menos estará em condições de agir e, em longo prazo, menos estará em condições de sentir”.

Essa dica vem atrelada a semear horror pela rotina, que é a única realidade consistente. “O maior triunfo de todos é elevar esse horror pela ‘mesma coisa de sempre’ ao status de uma filosofia, de modo que as bobagens intelectuais possam reforçar a corrupção da vontade. Nós os treinamos para pensar no futuro como uma terra prometida, reservada aos heróis privilegiados — não como algo que todos conseguem fazer no espaço de tempo de sessenta minutos por hora, seja o que for que se faça e de quem sejam  (…) Substitua a própria fé por alguma moda com colorido cristão. Trabalhe em cima do horror que eles sentem à ‘mesma coisa de sempre’. O horror à ‘mesma coisa de sempre’ é uma das paixões mais valiosas que produzimos no coração humano — uma fonte infindável de heresias na religião, de desatino no aconselhamento, de infidelidade no casamento e de inconstância na amizade”.

Uma advertência ao aprendiz, que é um recado tremendo para qualquer homem: o perigo mora no detalhe. “ Você dirá que esses são pecados muito ínfimos e, sem dúvida, como todos os tentadores jovens, você está ansioso para poder reportar perversidades espetaculares. Mas lembre-se de que a única coisa que importa é o quanto você consegue afastar o homem do Inimigo. Não importa quão pequenos são os pecados desde que o seu efeito cumulativo seja o de desviar o homem para longe e para fora da luz, direto para o Nada. O assassinato não será melhor que o carteado se este der conta do recado (…)  A estrada mais segura para o Inferno é gradativa — a ladeira é suave, o solo é macio, sem curvas acentuadas, sem marcos e sem postes indicadores” E um belo atalho quando parece que o ‘paciente’ quer aproximar-se do Inimigo (com maiúscula, ironia britânica para indicar a Deus): “Imediatamente, ataquei a parte do homem que tinha mais sob controle e lhe sugeri que já estava quase na hora do almoço”.

O relacionamento humano é prato cheio para conselhos ao jovem demônio. Esse desafio que “ocorre quando os amantes se casam e dão início à tarefa real de aprender a viver juntos”. Anota Lewis, quer dizer, o demônio: “Quando dois seres humanos vivem juntos por muitos anos, é comum que cada um adquira tons de voz e expressões faciais que são quase insuportavelmente irritantes para o outro (…) Porque o casamento, embora seja uma invenção do Inimigo, tem a sua utilidade. Deve haver várias jovens na vizinhança que tornariam a vida cristã extremamente difícil para o seu paciente se você for capaz de persuadi-lo a se casar com uma delas. Faça o favor de me enviar um relatório sobre isso na próxima vez que for escrever”.

Semear egoísmo e reclamar os próprios direitos no relacionamento, outro terreno fértil. “Você deve ter notado que nada o lança numa paixão tão fácil do que descobrir que uma parcela de tempo que ele julgava ter à sua disposição lhe é inesperadamente roubada. É o visitante inesperado (quando ele esperava uma noite tranquila), ou a esposa tagarela de um amigo (que aparece quando ele esperava ter um tête-à-tête com o amigo) que o tira do sério (…) Você deve, portanto, reforçar na mente dele com zelo a convicção curiosa de que ‘meu tempo pertence a mim’. Faça-o ter a sensação de que começa cada dia como o dono legítimo de vinte e quatro horas”.

Outra dica: estimular um idealismo divorciado da realidade atrelado a uma moderação que no fundo é mediocridade. Os tempos da guerra dão pé a este comentário: “Não há nenhuma vantagem em inflamar o seu ódio contra os alemães se, ao mesmo tempo, um hábito pernicioso de caridade estiver tomando forma entre ele e sua mãe, seu chefe e o homem com quem ele topa no trem”. E o humor inglês outro cenário próspero: “Especialmente promissor entre os ingleses, que levam o seu ‘senso de humor’ tão a sério que a falta desse senso é quase o único defeito do qual sentem vergonha (…) A crueldade é vergonhosa — a menos que o homem cruel possa transformá-la em piada. Milhares de piadas obscenas ou mesmo blasfemas não são de grande ajuda na danação de um homem, tanto quanto a sua descoberta de que praticamente tudo o que deseja fazer pode ser feito, não apenas sem a desaprovação de seus colegas, mas com a admiração deles, se ele tão somente souber fazer disso uma piada”. Surgem artimanhas para fomentar a mediocridade: “Fale com ele sobre a ‘moderação em todas as coisas’. Se conseguir levá-lo a ponto de pensar que a ‘religião é boa só até certo ponto’, você sentirá enorme satisfação, tendo em vista que uma religião moderada é tão interessante para nós quanto religião nenhuma — e mais divertida.

Evidentemente, desviar o paciente de conhecimento de si mesmo, é dica imprescindível. “Procure dar-lhe uma sensação geral de que ele sabe tudo e que aquilo que consegue fisgar de conversas e leituras casuais é ‘resultado de pesquisas mais recentes’. Lembre-se de que você existe para confundi-lo(…) Pense no seu homem como uma série de círculos concêntricos, sendo que a sua vontade é o mais interno, o seu intelecto vem logo depois e, finalmente, sua fantasia. Não é de se esperar que se possa excluir imediatamente de todos os círculos tudo que cheira ao Inimigo, mas você deve continuar a transferir todas as virtudes para círculos externos até que eles finalmente estejam no círculo da fantasia, e todas as qualidades desejáveis para dentro da Vontade (…) Pegue-o no momento em que ele estiver bem pobre de espírito e sugira de modo sutil — e convincente — a seguinte reflexão gratificante: ‘Por Deus! Como estou sendo humilde!’, e quase imediatamente o orgulho — o orgulho de sua própria humildade — irá aparecer. Deixe-o pensar nela não como esquecimento de si, mas como certo tipo de opinião (uma opinião negativa) dos seus próprios talentos e de seu caráter”. O humor deste comentário fez me lembrar daquela famosa frase de G. Bernanos: “Odiar-se a si mesmo não é difícil. O verdadeiramente difícil é esquecer-se de si mesmo”.

Não faltam nestas páginas os enfrentamentos com a estratégia magnifica do “Inimigo”, reflexo certo do processo de conversão de Lewis: “Ele quer realmente encher o universo com um monte de pequenas réplicas repugnantes de si mesmo. Criaturas cujas vidas, numa escala em miniatura, serão qualitativamente como a sua, não porque ele as tenha absorvido, mas porque elas desejam se conformar de livre e espontânea vontade a ele”. Que o “Inimigo” conceda o privilégio da liberdade ao ser humano é algo terrível para o demônio, assim como que o tal Inimigo “sentiu na pele” o que é ser homem. Adverte ao aprendiz, que não sabe como funciona o sistema operacional do homem: “Nunca tendo sido humano (ah, que vantagem abominável a do Inimigo!) você não se dá conta do quanto eles são escravos das pressões do cotidiano”.

Combater a estratégia do Inimigo, rende parágrafos de enorme densidade teológica e, ao mesmo tempo, de um realismo contundente. Vale anotar alguns deles: “Os seres humanos vivem no tempo, mas o nosso Inimigo os destinou à eternidade. Creio, portanto, que ele deseja que atentem especialmente para duas coisas: para a eternidade em si e para aquele ponto no tempo que eles chamam de presente, pois o presente é o ponto em que o tempo toca a eternidade. Somente no presente lhes são oferecidas a liberdade e a realidade. Ele, portanto, quer que eles estejam constantemente interessados na eternidade (o que significa estarem interessados nEle) ou no presente — quer meditando sobre a sua união eterna com ele, ou com a separação dele, quer obedecendo à voz que está presente na sua consciência, carregando a cruz atual, recebendo a graça atual, dando graças pelo prazer atual. Nosso negócio é desviá-los tanto da eternidade quanto do presente de modo que o pensamento sobre o futuro sempre inflame a esperança e o medo. Além disso, o futuro é desconhecido para eles, de modo que, fazendo-os pensar sobre isso, nós também os fazemos pensar sobre irrealidades. Em uma palavra, o futuro é, de tudo que se sabe, aquilo que é menos parecido com a eternidade.  A gratidão olha para o passado e o amor, para o presente; já o medo, a avareza, a luxúria e a ambição têm os olhos no que está por vir. Queremos toda uma raça perseguindo perpetuamente o fim do arco-íris, que nunca seja honesta, nem gentil, nem feliz no agora; mas sempre usando toda realidade presente que lhes é oferecida no presente como mero combustível com o qual abastecer o altar do futuro”. Longo raciocínio, que não tem desperdiço!!

Lewis vai fazendo gotejar em cada uma das cartas, inúmeros argumentos que seriam, para um leitor atento e sincero, um roteiro de exame de consciência. O uso do prazer (que o Inimigo fomenta), o apego às coisas do mundo (que o demônio deve tentar hipertrofiar sem suprimir): “O homem que aprecia verdadeira e desinteressadamente qualquer coisa no mundo e não dá a mínima para o que as outras pessoas pensam sobre aquilo, estará, por esse preciso fato, previamente armado contra alguns de nossos modos mais sutis de ataque (…) Todo e qualquer sentimento de posse deve ser sempre encorajado. Os seres humanos sempre estão levantando reivindicações de propriedade que soam igualmente engraçadas tanto no Céu como no Inferno, e temos que garantir que mantenham essa atitude (…) A prosperidade amarra uma pessoa ao mundo. Ele sente que está ‘achando seu lugar no mundo’, quando na realidade é o mundo que está achando o seu lugar nele”. E sempre, mostrando ao aprendiz, que é preciso tempo e calma, sem precipitações: “Meu único medo é que, para tentar apressar o paciente, você o faça perceber a real situação em que se encontra. Não se pode permitir que ele suspeite de que está, ainda que muito lentamente, distanciando-se do Sol, numa rota que o levará ao frio e à escuridão do espaço sideral”.

As páginas finais incluem, um brinde do demônio, uma carta a modo de epílogo. O brinde incorpora um vinho que não poderia ter outra denominação de origem: Fariseu! A ironia assume proporções cômicas, porque não poupa os políticos nem o cenário social que lhe rodeia, apresentando-o como um terreno fértil para os seus projetos. Impossível resumir, somente lendo. Destaco um par ideias como amostra: “A reivindicação de igualdade, fora do campo estritamente político, é feita apenas por aqueles que se sentem, de uma forma ou de outra, inferiores. O que ela expressa são precisamente a coceira, a esperteza, a consciência distorcida de uma inferioridade que o paciente se recusa a aceitar.  E, por isso, ele se sente ofendido. Sim, e, portanto, se ressente de qualquer tipo de superioridade nos outros; passa a caluniá-la e a desejar o seu aniquilamento. Na verdade, suspeita que a mera diferença seja uma reivindicação de superioridade (…) Tudo está resumido na prece que supostamente uma jovem pronunciou recentemente: ‘Oh Deus, faça de mim uma garota normal do século vinte!’ Graças aos nossos esforços, isso vai significar cada vez mais: ‘Faça de mim uma devassa, uma débil mental, uma parasita’.

O humor inglês, devastador perante esse modelo de mediocridade, aparece novamente: “O princípio básico da nova educação é que os alunos ignorantes e vagabundos não devem sentir-se inferiores aos alunos inteligentes e esforçados. Isso seria ‘antidemocrático’. Como um político inglês observou não muito tempo atrás: ‘Uma democracia não deseja grandes homens’ (…) E o que temos de nos dar conta é que a ‘democracia’ no sentido diabólico (eu sou tão bom quanto você, ser como todo o mundo, pertença ao grupo) é o instrumento mais refinado que podemos ter para extirpar as democracias políticas da face da terra. Pois a ‘democracia’ ou o ‘espírito democrático’ (no sentido diabólico) produz uma nação desprovida de grandes homens, uma nação composta essencialmente de analfabetos, seres moralmente frouxos pela falta de disciplina na juventude, cheios de autoconfiança que as bajulações criaram em cima da ignorância, e molengas em virtude de toda uma vida de mimos. E é nisso que o Inferno deseja que todas as pessoas democráticas se tornem”.

E o recado final, para encerrar estes longos comentários -saborosos, degustam-se melhor quando ordenamos eles, e podemos refletir- mantem a linha mestra do professor Lewis, a advertência principal para os homens e, ao mesmo tempo, recado para o aprendiz: o desvio é suave, subtil, imperceptível e, justamente por isso perigoso: “A fina flor do profano só pode crescer na vizinhança íntima do sagrado. Em nenhum lugar a nossa tentação é tão bem-sucedida quanto precisamente aos pés do altar”. Reconhecer o erro, chegar a tempo é a salvação humana e o risco da estratégia diabólica, que conta também com “o ódio, a grande anestesia para a vergonha”. Pois o demônio sabe -e nós teríamos de aprender- que “qualquer coisa, até mesmo um pecado que tenha o efeito total de trazê-lo para perto do Inimigo, volta-se contra nós em longo prazo”. Um livro -um tratado teológico salpicado de humor inglês- para ler, e reler, sempre. Para não perder a sensibilidade do detalhe, que é onde o perigo espreita. 

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