Munique: No Limite da Guerra
História: Releitura, interpretação ou aprendizado?
Munich: The Edge of War. 2021. Diretor: Christian Schwochow. Jeremy Irons, August Diehl, George MacKay, Ulrich Matthes, Liv Lisa Fries, Alex Jennings, Jannis Niewöhner. Reino Unido 123 min, 2021.
Motivado por um comentário que me chegou -destacando a intepretação sublime de Jeremy Irons- e por algum outro que li, não me lembro onde, apertei o play para assistir mais um filme sobre a segunda guerra, ou melhor, sobre os prolegômenos.
Uma surpresa agradável, de impacto. E me fez pensar, muito. A conferência de Munique, um ano antes da invasão alemã à Polonia que daria a largada para o conflito mundial que se arrastaria por seis anos, foi uma tentativa de segurar o inevitável. Uma leitura simplista da história mostra que, no final das contas, o teatro montado por Hitler e Mussolini, tendo como coadjuvantes-títeres, os franceses e os ingleses -imenso Jeremy Irons como Chamberlain, insisto porque merece- não adiantou grande coisa. Aparentemente. Mas esse é o ensinamento que o filme me sugeriu.
É fácil -e muito cômodo- fazer releituras da história, quando já se sabe o final da trama. É uma espécie de spoiler de baixa categoria que, não nos enganemos, acontece à nossa volta, com imensa frequência. Contemplar promessas incumpridas, assistir a esforços que no seu dia foram notáveis antes da traição entortar todo o empenho, faz a mente simplista sorrir e qualificar de ingenuidade todo esse tour de force. Não porque ele, o medíocre releitor seja mais inteligente; simplesmente porque vive hoje, quando todos já conhecem o final do contexto. Aliás, interpretar a história com olhos e mentalidade de hoje, é um dos erros mais comuns, que denotam ignorância supina.
Um exemplo, que cito com alguma frequência, acode à minha mente. Na Espanha da minha infância, a simpatia pelos alemães era notável, mesmo que o regime franquista tivesse esquivado o convite nazista -por não dizer a imposição- de entrar na segunda guerra. Afinal, um povo destroçado por uma guerra civil de três anos, tinha todo o direito de retirar-se da mesa do poker bélico. Como de fato, para sorte dos espanhóis, aconteceu.
Mas é verdade, que durante a pós-guerra espanhola, quando os acadêmicos buscavam aperfeiçoar-se na sua ciência, com relativa frequência o país de destino era Alemanha. Não Inglaterra -com quem sempre houve diferenças, desde a época de Felipe II e Isabel I- nem Estados Unidos, que eram naquele momento considerados algo mais que caipiras que tinham descoberto petróleo. Assim aconteceu com muitos médicos, cientistas e filósofos. Até o próprio Ortega -que lia e falava alemão- ampliou estudos em Alemanha. Logo ele, um liberal. Mas, “que absurdo” -diz a mente simplista que não entende o tempo histórico. É fácil afirmar isso agora, quando sabemos o que por trás se cozinhava. Mas na época, as coisas não eram tão simples assim.
Estou lendo um livro magnífico de uma professora de história, onde encontrei justamente hoje, pouco antes de rascunhar estas linhas, um trecho que me seduziu. Resumo as ideias, porque a citação seria longa. Comenta Roca Barea, que o esquecimento da história é um fenômeno generalizado no Occidente. Os críticos vivem numa curiosa “atemporalidade” (eu imagino, plagiando a Santo Agostinho, que se refere a algo análogo à visão divina em relação ao tempo e à liberdade humana: Deus vê todo o trajeto num ‘golpe de vista’, enquanto o ser humano somente vê o que tem diante e atrás dele).
Continua a professora: “imagino que a passagem do tempo hoje pode parecer-nos equivocada, mas é perfeitamente compreensível para os que viveram esse tempo. Um dia segue-se ao outro, um ano ao outro, e o ser humano se contempla vivendo, mais ou menos, como o ano anterior (salvo grandes revoluções ou tragédias acontecidas)”. E da um exemplo gráfico e cômico ao mesmo tempo: “Os humanistas italianos, cujo ponto de vista é supostamente histórico, inventam a bárbara Idade Média, como se fosse um buraco negro, uma ‘distração’ de dez séculos!!! Esta noção da etapa mais longa da história de Europa não existe antes deles, que a criam justamente para espalhar a ideia de que eles, os humanistas italianos, são o cume da evolução histórica. Eles são os continuadores de Roma, do Império Romano, e o resto -os do buraco de dez séculos- simplesmente uns bárbaros ignorantes e mal agradecidos”. Difícil exprimir com menos palavras, e com maior ironia, um conceito de tamanha importância
Voltando ao filme, há outro aspecto que também me fez pensar. A paixão da juventude, a vontade de mudar as coisas. E, junto com essa coragem compreensível, a prudência do veterano que olha com ternura para os desejos juvenis, mas ensina a colocar os pés na terra. Os dois jovens protagonistas, um inglês, outro alemão, formados em Oxford, juntam-se no ideal comum, no enfrentamento do nazismo em ascensão, como ameaça mundial. Estes viviam no seu tempo -não como os releitores de hoje- e a impetuosidade deles poderia ter mudado a história. Não necessariamente para melhor, porque os futuríveis -o que poderia ter acontecido e nunca aconteceu- é impossível da avaliar pelos homens (penso que algo disso também abordou Santo Agostinho, a quem estamos convocando nesta conversa sem nenhum direito, valha a confiança que sempre tive com ele, quer dizer, com seus escritos).
Mas o ensinamento vai além de futuríveis e possibilidades. Fala-nos do realismo, do que e possível fazer hoje, de cuidar do próprio quintal, com esmero e dedicação. Novamente a figura de Chamberlain-Irons, em protagonismo sereno, apaziguando os repentes juvenis. Mediocridade? Fazer média? Ficar em cima do muro? Devem ser os comentários dos que já conhecem o final da história. Mas estar lá, inserido num fogo cruzado, é algo muito diferente: vamos fazer hoje o que é possível! O que virá amanhã, veremos depois, em seu momento. Preocupemo-nos com o que está ao alcance da nossa mão -o famoso círculo de influência que nos é próximo- sem desesperar com o que está fora dele.
Tudo isso nos leva a uma virtude que não é passividade, mas fortaleza: a paciência. Os clássicos a incluem entre as partes da fortaleza e, afirmam, que a maior fortaleza é a paciência dos mártires, que sabem aguentar por um bem maior. Von Balthasar dizia que a paciência é o amor que se faz tempo. O Prof. Ratzinger afirma que a paciência é a forma quotidiana do amor. E Teresa de Avila, em poema emblemático, ensina que a paciência tudo o alcança.
Um amigo comentou-me recentemente, uma frase que adotou como estímulo à paciência: o tempo é o senhor da verdade. Mas, para isso, são necessárias toneladas de paciência. E, reflitamos, quem tem hoje paciência para deixar o tempo correr? Hoje, que tudo está a distância de um click ou de um aplicativo, quem sabe esperar, ponderar, refletir, para encontrar soluções, no momento certo, dentro do seu próprio círculo de influência, sem distrair-se com preocupações globais? Distrações ou eximir-se das próprias responsabilidades?
Nesta altura dos comentários, por aquilo da inevitável associação de ideias, lembrei daquele encantador livro do Michael Ende, Momo e o Senhor do Tempo. Lá surgem as pessoas que correm atrás do próprio tempo, que se escorre das mãos, não escutam, perdem o bom senso e o sentido da vida, transformam-se em homens cinzentos. O contraponto é Momo, ‘a menina que sabia escutar’. Porque escutar, de modo ativo, com vontade de compreender o interlocutor, é também um caminho para a gestão do tempo. Do próprio, e do histórico. Quem sabe se as releituras da história são o triste fruto da falta de escuta, de estudo, de querer entender, ao invés de encarar os fatos para que se encaixem nas nossas teorias, nas categorias prévias de entendimento. Algo, por sinal, que Kant já faz há séculos, e deu no que deu: uma das chancelas do subjetivismo, e o caminho para declarar a incompetência da mente humana para conhecer a verdade.
Enquanto desfilam os créditos finais de Munique, a pergunta que me ronda desde início, faz novamente ato de presença. Como olhamos para a História? Interpretamos, fazemos releituras ideológicas, olhamos com visão divina de omnisciência? Ou, simplesmente, aprendemos com ela e crescemos como pessoas? Uma decisão que exige prudência e tempo.
Comments 7
Gostei muito deste comentario e fiquei com desejos de ver o filme.
Muito obrigado, Pablo.
Que coincidência!! assisti ao filme ontem.
Sua análise me fez entender melhor o teatro montado por Hittler e Mussolini.
Muito obrigada.
Aceito sugestões.
Muito bom! Assisti o filme e sugiro, também, como um subsídio, um excelente filme documentário LA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL feito a partir de reportagens dos dois lados do conflito, sendo contado partir do fim da primeira guerra mundial, envolvendo, também, os acontecimentos da guerra civil espanhola! Vale a pena.
Magnífica reflexão, Professor Dr. Pablo!
Muito obrigada!
Muito boa reflexão, Pablo!
Assisti ao filme.
Dr Pablo
lendo o livro do meu sobrinho Leonardo Lourenço e lendo seu prefácio vi muita identidade com o humanista argentino Carlos Bernardo Gonzalez Pecotche, criador da ciência Logosofia que tem como princípio um método para realizar o processo de evolução consciente. O axioma básico da Logosofia é: quem quiser ser o que não é, deverá principiar por deixar de ser o que é.”
Gostei muito desse contato com seus pensamentos.
Abraço
Como sempre, reflexão séria e profunda de um evento, tirando questões cruciais para nós, pobres observadores “isentos” da realidade. Obrigado Dr. Pablo. Muito obrigado!