A Pura Verdade: Estética e cultura, recursos que o nosso tempo necessita

Pablo González BlascoFilmes 1 Comments

Diretor: Kenneth Branagh. Kenneth Branagh. Judi Dench. Ian McKellen. All Is True. 2018. 1 h 41 min.

Eis um filme diferente. Ou melhor dizendo, um filme superior, onde o diferente é o comentário com o qual me aproximo dele. Explico.

Os filmes comentados neste espaço são o resultado de uma interação pessoal com a produção cinematográfica, o que eu costumo chamar de uma conversa com o filme. As atitudes, as virtudes, e todo o universo plasmado no cenário, provocam a reflexão que se verte em palavras, nem sempre claras, porque a mente -e o coração- trabalham com maior rapidez do que a lógica da escrita é capaz de acompanhar. Muitas vezes sublinhei que educar com o cinema não é usar dele como fábulas de Esopo o de La Fontaine, onde a pretensão é indicar um modo de conduta, o caminho para adquirir uma atitude virtuosa, ou eliminar um vício. Isso também acontece, mas o primordial é disparar a reflexão. E nessa reflexão é que se gesta o nascimento de uma atitude louvável, de uma postura exemplar.

Recentemente, durante a leitura de um livro de Jane Austen por conta das nossas tertúlias literárias mensais, revi o comentário que fiz anos atrás de uma excelente biografia da escritora, considerara uma das maiores expoentes em língua inglesa depois de Shakespeare. Um parágrafo dessa obra adverte: “Os romances de Austen são romances de cortejo centrados em heroínas, e não manuais de conduta disfarçados de romances”. Algo análogo se me assemelha no cinema: histórias onde as personagens apresentam grandezas e misérias, que nos levam a refletir. Nunca um manual de boas maneiras (ou das más, para evitá-las).

Voltando ao nosso filme, do qual me aproximo desta vez, não em atitude de diálogo, nem mesmo de reflexão. Olho para ele com simples respeito, essa atitude que Ortega definia como a distância afetiva que nos permite ver o conjunto -e a grandeza- das coisas. O respeito –reverence, diz a tradução para o inglês- que Von Hildebrand indica como a primeira das virtudes na sua Art of Living, para reconhecer o Outro! Respeito pela arte, em si, pelo gosto estético que desperta, pelo prazer de, simplesmente assistir. O gatilho que me aproximou da fita foi o comentário de um amigo que apenas sugeriu: veja e me dizes. Nada a mais, nem a menos. Sem recados implícitos, sem subtítulos e aprendizados. Veja, sem mais. Essa é a minha recomendação aos que se aventurem a ler estas linhas. Veja e desfrute.

All is true, é o título do filme em original, traduzido em português por A Pura Verdade. E aqui sim vale uma explicação -que a produção oferece logo no início, não dá para pular essa cena- e que faltando, poderia dar lugar a equívocos, pior dos já registrados historicamente (por exemplo, traduzir o elogio à música –The Sound of Music– pela história de  uma noviça rebelde). All is true era o título alternativo da última peça de Shakespeare encenada no teatro The Globe, dedicada a Henrique VIII.  Durante a performance em Junho de 1613, um canhão do palco, foi mais realista do previsto, incendiou o teatro, e pôs fim à atividade dramática do Bardo, que nunca mais escreveu uma peça. Regressou para a sua cidade, Stratford, onde permaneceu até a sua morte em 23 de Abril de 1616 (é bom anotar com exatidão, por dois motivos: era o aniversário dele, e nessa mesma data também morria outro gigante das letras, Cervantes). Quem se perguntar o motivo de ser o 23 de Abril o dia do livro, tem aqui uma boa explicação.

O filme, que para o expectador é puro deleite estético, intuo que para o Diretor -Kenneth Branagh- seja um diálogo com o seu mestre de toda a vida: Shakespeare. Os anos finais do poeta inglês, que ele faz questão de incarnar, e o faz com perfeição, são a reflexão do diretor formado nos palcos e padrões shakespearianos, com o seu autor de referência, com o professor que o educou. Os diálogos do bardo tem ressonância na vida do diretor: “Vivi tantos anos na imaginação, que esqueci o que é a realidade”. E você, que explorou a geografia da alma humana, sem viajar nem ver mundo, como conseguiu?  – “Invento, converso comigo mesmo, busco no meu interior, e de lá tiro as informações”. A cena onde o nobre critica o artista por perder o tempo com bobagens é antológica: “Gerenciar um teatro com 3 mil pessoas, cuidar dos operários, ir de lá para cá, apresentar-se ao rei, tudo isso são bobagens? Você é o otário que é incapaz de criar nada e simplesmente cuida das suas fazendas”.

A cena inclui uma agressão explícita a Anne, esposa de Shakespeare, mulher de um escritor famoso, incapaz de ler uma letra. Judi Dench é convocada para representar Anne e o expectador agradece, de joelhos, o magnífico acerto. Uma mulher superior, uma atriz imensa! “Will, nos últimos vinte anos, você foi uma visita para nós, nunca te vimos por aqui. Todo esse tempo cuidando da tua reputação, mas você nunca pensou na minha”.  O dramaturgo está pesaroso. A perda do filho de onze anos, acontecida há mais de uma década, o aflige. Volta a dor que no seu momento não teve vez, estava em Londres trabalhando. Anne volta ao ataque, com grande categoria: “Você quer viver o luto agora? O que fez na época? “. Silêncio, tentativa de explicar. Anne corta: “Na época você escreveu As alegres comadres de Windsor, isso foi o que você fez, esse foi o teu luto”.

As filhas entram em cena. Susanna que sabe ler e escrever, e Judith, analfabeta como a mãe, gêmea de Hamnet, o filho que a peste levou. Meandros, discussões, segredos de família, espicaçados pelo ambiente dos puritanos ingleses -o esposo de Susan, um inquisidor em versão puritana- e temperados pelo bom senso da mãe, um enorme refúgio do patrimônio familiar. “Se você não se perdoa, como podes esperar que Deus te perdoe?”. Anne, ponderada, calma, sábia no seu analfabetismo, quase dez anos mais velha que William Shakespeare, a quem sobreviveu. E o escritor tentando recuperar o tempo familiar perdido -os anos vividos na imaginação deixando escapar a realidade- querendo se aproximar das filhas sem conseguir. Queria que os papeis femininos das peças fossem representadas por mulheres (o que acontecia no “continente”, mas não na Inglaterra), mas sente-se incapaz de lhes dar protagonismo na vida diária.

Vi o filme, encantei-me, vi de novo enquanto rascunhava estas linhas. Apreciei os diálogos, todos eles, com gosto. Degustei as personagens. E decidi escrever. Lembrei -impossível passar por alto- de um opúsculo, um manifesto, que li há algum tempo de título instigador: “A Utilidade do Inútil”. Lá se adverte, entre outras coisas magníficas, que é justamente fazer coisas “inúteis” o que nos distingue dos irracionais. E anota o autor: “É doloroso ver homens e mulheres empenhados numa insensata carreira à terra prometida do benefício, na que tudo o que lhes rodeia –a natureza, os objetos, os outros seres humanos- não despertam nenhum interesse. O olhar fixo nesse objetivo não permite entender a alegria dos pequenos gestos quotidianos nem descobrir a beleza que pulsa nas nossas vidas: um por de sol, um céu estrelado, a ternura de um beijo, a eclosão de uma flor, o voo de uma borboleta. Porque, frequentemente, a grandeza se percebe melhor nas coisas mais simples”.

Recentemente, durante uma série de conferências, quando me interrogaram sobre a formação ética “desta juventude perdida” e quais seriam as minha recomendações, atrevi-me a dizer que se tivesse de escolher entre ensinar ética (nos moldes clássicos) ou estética, me inclinaria por esta última. Porque -afirmei- é difícil que alguém educado esteticamente, que tenha paladar para a beleza, seja eticamente tosco. Dias depois, comentando isto com outro professor, senti-me apoiado na minha audácia. Ele me disse: “É verdade. Porque a beleza a gente consegue apalpá-la na natureza, isso nos desperta para a transcendência. O bem, no entanto, já não é tão “natural”, porque a natureza te pode presentear com terremotos e tsunamis, ou com um simpático leão que te devora”.

Mas afinal, por que tudo isto? O que sobra do filme? Nada, quer dizer tudo. O respeito de que nos fala Ortega para olhar com a cortesia “cósmica” da distância que nos permite apreciar a perspectiva correta, a beleza do outro. Como afirma a visão de Hamnet, “somos feitos da matéria dos sonhos”. Vi o filme, escrevi, e revi de novo.  Por que? Por nada, pelo gosto e deleite, Para usufruir essa inutilidade das coisas que realmente importam. Dessa inutilidade que se traduz em cultura e estética, da qual carecemos, e o nosso mundo tanto precisa.

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