Paula Byrne: “A verdadeira Jane Austen.

Pablo González Blasco Livros Leave a Comment

Paula Byrne: “A verdadeira Jane Austen. Uma biografia íntima”. L&PM. Porto Alegre. 2018. 439 págs.

Ganhei este livro a título de presente de Natal, e ficou esperando a sua vez na estante. Chegou-lhe a hora mais de um ano depois, e logo de cara percebi que não é uma biografia -como afirma a autora-  mas uma tese doutoral, pelo conhecimento exaustivo das obras de Austen que alinhava com a vida dela, e com inúmeras cartas (sempre a melhor base para uma biografia, a personagem no seu molho). Cartas que também aparecem nos romances e que chegam às vezes depressa, em modo expresso do correio à cavalo….Um substituto dos e-mails da época. 

Byrne disseca as obras da escritora, uma autopsia de patologista. Mais do que biografia íntima, é uma biografia anatómica o que ajuda entender até que ponto a alma de Austen é vertida nas suas obras. Suas heroínas são versões variadas dela mesma, do seu modo de ver o mundo. 

Reconheço que, em mano-a-mano com as páginas do livro, assisti -ou revi- os filmes clássicos baseados nos romances de Jane Austen: Orgulho e Preconceito, Razão e Sensibilidade e Mansfield Park (Palácio das Ilusões). Ajuda, e muito, para acompanhar o estudo profundo do livro, e os comentários da autora sobre as personagens que, sendo absolutamente familiares para ela, fogem um pouco ao mortal comum pela imensa quantidade de detalhes. 

Mesmo nessa profusão de pormenores, a autora oferece um perfil bem definido da escritora: Foi a primeira romancista da história a oferecer uma representação precisa do ‘andamento da vida comum’. Essa é a essência da arte de Austen, assim como no realismo da pintura holandesa. Veermer cria a sensação de um mundo real por meio de uma carta aberta, um brinco de pérola, uma janela de treliça, um jarro e uma toalha de mesa, um instrumento musical. Nesse mesmo sentido, os objetos desempenham um papel fundamental no ato de trazer à vida os mundos ficcionais de Austen. Talvez por isso, o título dos capítulos do livros  -Xale das Índias, chapéus- é sugestivo.

A atmosfera familiar -tão marcada nos romances e nos filmes citados- é cenário essencial em Austen. O afeto que ela sentia pelos irmãos transparece com clareza no modo como seus romances são repletos de piadas internas – um fenômeno comum em famílias numerosas, que tantas vezes têm sua própria linguagem secreta. Trabalhou o tema das crianças adotadas em seus romances,  e o utiliza para sugerir suas ideias sobre fatores inatos e externos, bons e maus pais, a importância da infância em relação à vida adulta: “dá-me a criança de até sete anos e eu lhe dou o homem” (como diz o velho ditado jesuíta). 

Jane Austen estava entre os primeiros romancistas a escrever sobre pares de irmãs. Em Razão e Sentimento e Orgulho e Preconceito, ganhamos pares de irmãs cujo relacionamento entre si é tão importante quanto seu interesse por enlaces românticos.  As personagens dos romances são representadas dizendo coisas chocantes para suas irmãs mais velhas, provocando tanto sua indignação como o seu riso. Essa atitude é muito parecida com a de Austen em suas cartas à irmã mais velha, Cassandra. Como diz Elizabeth Bennet em 

Orgulho e Preconceito, “quanto mais observo do mundo, mais me decepciono; e cada dia que passa confirma minha crença na inconsistência do caráter humano e na pouca confiança que se deve ter nas aparências de mérito e sensatez”. É algo que Jane Austen poderia ter dito perfeitamente em uma de suas cartas. 

A perspectiva de viver sem a irmã era amedrontadora. Assim, talvez não seja coincidência que o mais ativo período de flertes na vida de Jane tenha ocorrido nos anos em que Cassandra esteve noiva à espera do casamento. Mas os pretendentes não chegavam à altura como aponta Byrne: “Um homem que fugia correndo quando Jane se aproximava é de suspeitar que nunca lhe serviria. Não era Austen mulher que alguém pudesse forçar a um casamento”. E a própria Jane adverte em carta a uma sobrinha: “Qualquer coisa é preferível ou mais suportável do que você se casar sem afeto; se as deficiências dele em modos, forem mais marcantes do que suas boas qualidades, se você continuar a pensar nelas com insistência, desista dele o quanto antes”

Mulheres solteiras têm uma medonha propensão à pobreza – o que constitui um argumento muito forte em favor de matrimônio.  Em Orgulho e Preconceito, Charlotte enxerga o casamento como um emprego: “Sem esperar muito dos homens ou do matrimônio, o casamento sempre fora seu objetivo; era a única solução para moças bem-educadas de pouca fortuna e, embora incerta a garantia de felicidade, era o mais atraente arrimo contra a necessidade”.

Há quem se pergunte como Jane Austen pode escrever de maneira tão convincente sobre o amor se ela nunca se casou ou teve para si uma grande paixão. Suas cartas para as sobrinhas mostram o conhecimento profundo dos minúsculos e complexos meandros do coração humano. Talvez a distância e não ser parte diretamente envolvida dá uma visão diferente, mais objetiva. 

Paula Byrne oferece um extenso elenco de temas sociais e políticos que os romances de Austen transpiram. “O bem estar das Nações depende da virtude de seus indivíduos e qualquer pessoa que ofender de forma tão grosseira o decoro e a decência estará certamente acelerando sua ruina”. Austen demonstra o quanto a má conduta moral, o egoísmo  e  hipocrisia podem estar disfarçados por trás da fachada de sensibilidade. “A sensibilidade -concordando com Coleridge, o líder abolicionista- era fundamentalmente egoísta e, portanto um empecilho para a verdadeira benevolência”. 

Partidária do abolicionismo, até o ponto de que os nomes dos “bandidos” nos seus romances (Willoughby, Wickham, Lucas) tem o nome dos proprietários de plantações nas Índias ocidentais. Em Mansfield Park deixa claro seu apoio à abolição dos escravos, e desaprova os donos de plantações. E a advertência contra os militares da época: “nada pode ser mais prejudicial à moral dos habitantes das cidades do campo do que a ocasional residência de um grupo de jovens ociosos e superficiais, cuja única ocupação é o galanteio”. A religião que se mistura com política: “eu mesma sinto inclinação pela religião romana, e com infinito pesar devo dizer que às vezes os católicos romanos da Inglaterra não se comportam como cavalheiros em relação aos protestantes” No fundo ela mostra lealdade com os Stuart não com os católicos. A divisão clássica entre os partidários do Stuart e dos Tudor tinha para os ingleses um confortável apoio nas divisões religiosas. 

A carreira literária de Jane Austen começou em 1787, quando chegou aos doze anos. Quase poderíamos dizer que, como Mozart, ela foi uma criança prodígio. Uma vez que tivesse uma pena na mão ela não conseguia parar de escrever. Gostava de Shakespeare, porque “ a teia de nossa vida é feita de fio emaranhado, o bem e o mal juntos”. 

Os romances de Austen são romances de cortejo centrados em heroínas, e não manuais de conduta disfarçados de romances. Seus romances não são histórias nas quais a heroína se apaixona à primeira vista por um belo estranho que se transforma no marido ideal. O belo estranho (Willoughby, Wickham, Henry Crawford) acaba por ser uma aposta desastrosa. A ausência de herdeiro do sexo masculino é constante nos seus romances, uma linha de enredo importante.  Quanto a filhos seus livros eram a única prole que ela desejava: “seus livros eram seus filhos” como disseram dela alguma vez. 

 Escrevia o tempo todo, também inúmeras cartas: numa época de viagens globais e império emergente, as cartas eram de tremenda importância. Páginas e mais páginas escritas na escrivaninha portátil de Austen  (um estojo que contém informações preciosas e particulares, que pode ser trancado com segurança e ser levado consigo nas viagens; a versão georgiana do laptop). O experimento epistolar deu a Austen a chance de encontrar vozes para os tipos específicos. Razão e Sensibilidade chamou-se inicialmente Elinor e Marianne,  um romance epistolar. Depois foi reformulado, por conta de uma grande cirurgia para entrelaçar as cartas entre as irmãs dando lugar ao nome que passaria à posteridade. 

Escreve seus livros “para relaxar, para rir de mim ou de outras pessoas”. A ironia fina, tão britânica, se faz presente: “as viagens a bordo de um navio, castigo que não precisa de outro  para torna-lo muito severo”. Para Austen ler os seus próprios romances em voz alta de forma correta, ao modo de espetáculo dramático- era uma habilidade específica e uma alegria especial. 

Lidou com a rejeição de sucessivos editores , não desistindo, reescrevendo material antigo e recomeçando do zero com algo novo. Estava preparada para correr o risco da publicação às próprias custas. 

Walter Scott comentou em alguma das suas resenhas: “as personagens de Austen são instantaneamente reconhecidas como pessoas reais (…)Mantem-se  próxima de incidentes comuns, de personagens que ocupam as esferas ordinárias da vida; e produz esboços de tamanha vivacidade e originalidade que não sentimos falta da excitação de uma narrativa extraordinária, incomum”. Quer dizer, o quotidiano é suficiente, não precisa de livros de cavalaria para cativar. Talvez fosse esse o pensamento do autor de Ivanhoe e de outros romances que evocavam as epopeias medievais e as lutas dos escoceses. Uma advertência que Byrne faz desde o começo: o encanto do quotidiano, a poesia nos detalhes. Como a pintura Holandesa de Veermer. Como as oportunidades que a todos nos cercam diariamente.

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