Revisitando The Crown: De volta ás reflexões, com novos aprendizados.
A recente morte da Rainha Elizabeth II, levou-me de volta até esta grande série. Mas não foi uma decisão nostálgica, e sim um acordar para uma responsabilidade, uma pendência que se arrastava há algum tempo, vários meses, quase anos. Tempos atrás, assisti as duas primeiras temporadas, e comentei amplamente o muito que aprendi. Assisti também as temporadas seguintes, aprendi, tomei notas….mas não escrevi. Deixei em compasso de espera, e agora surge como um débito a resolver. Voltei até o início da série, assisti novamente os 40 episódios, não como diletantismo, mas com um olhar de aluno sedento de aprendizado. E, finalizada essa revisitação, sento na frente do computador para rascunhar estas linhas, para captar as reflexões -muitas- que inundaram novamente a minha mente. Com luz nova, com sabor de aprendizados magníficos.
Pontos altos? Muitos; e todos, como aulas pontuais, decantam em sabedoria e estimulam a incorporar atitudes. Foi assim que contemplei, com sabor novo, cada uma destas aulas, que isso são para mim, e por isso escrevo -para eu não esquecer- e por se aproveitam a outros.
O episódio trágico em Gales, Aberfan, uma mina afundando, um descolamento de terras, muitos mortos, a maioria crianças de uma escola. A Rainha hesita em visitar o local, confortar as famílias. Finalmente se decide, mas sente que lhe falta emoção. O diálogo com Harold Wilson -primeiro ministro do partido trabalhista- é uma pérola. A rainha confia a ele sua falta de empatia, de emoção prática. Wilson esclarece: “Sou o líder do partido trabalhista, mas nunca fiz trabalho manual, nem um só dia. Sou um académico, um professor de economia de Oxford. Gosto de charuto e de comer steak. Mas quando estou com o partido, permito-me fumar cachimbo -não charuto- e comer outras coisas. Majestade, se queremos ser tudo para todos a todo momento, deixamos de ser nós mesmos, perdemos a identidade. A senhora fez o que tinha de fazer, não importa o que sentiu ou deixou de sentir. Fazemos o que temos de fazer como líderes, é o nosso trabalho, acalmar mais crises das que criamos. Em certo modo, sua falta de emoção é uma benção: ninguém quer uma chefe de estado histérica”. Fazer o que se deve, sem importar-se com o sentimento, mas estar focado nos outros, aos que temos de servir. Essa é a função da monarquia, que um ministro trabalhista vem lembrar à soberana.
O primeiro diálogo entre Elizabeth e a recém eleita primeiro ministro, Margareth Thatcher, ambas da mesma idade, a rainha 6 meses mais nova. Um momento emblemático entre duas mulheres, onde a rainha adivinha todo o gabinete que Thatcher pretende nomear, sabendo que não haverá mulheres nele: “Melhor assim, são muito emocionais no momento de decidir”. Margareth fica admirada, diz que gostou da rainha e que acha que vão se entender. E o comenta enquanto passa as camisas do marido, porque é uma dona de casa prendada.
Mas entender-se bem, não significa estar de acordo em tudo, e muito menos no modus faciendi. O impasse frente ao apartheid imposto a Africa do Sul, a decisão de entrar na guerra das Malvinas, e alguns outros momentos onde a Rainha lembra-lhe que as vezes, o melhor, é esperar e não fazer nada. Algo que aprendeu da avó -Queen Mary-: “muitas vezes, não fazer nada implica um esforço tremendo”.
Pensei muito no assunto, dei voltas na minha memória às inúmeras vezes em que queremos entrar no operacional, quando o sábio seria esperar, sorrir, não fazer nada. Mas depois de uma certa idade, a tentação de assumir e resolver -querer resolver, o que nem sempre acontece- é imensa. Também disto se fala no episódio do encontro com os astronautas que chegaram na lua: Moondust, chama-se; poeira lunar. O príncipe Philipe tem admiração por pessoas que atuam e não ficam especulando. Até que a admiração se transforma no título, em poeira, em nada. O ativismo alavancado pela experiência -já vi este filme outras vezes- o primum primi, quer dizer, o agir de bate pronto, são uma constante provocação para quem tem o mando, e sabe que pode dar as cartas. E no meio das reflexões, veio à mente aquele texto de Ortega que define o que é o poder: “Talleyrand disse certa vez a Napoleão: ‘Com baionetas, senhor, pode-se fazer tudo, exceto uma coisa: sentar nelas.’ Comandar não é um gesto de tomada do poder, mas um exercício calmo dele. Em suma, comandar é sentar. Trono, cadeira, banco azul, cadeira ministerial, assento. Ao contrário do que supõe uma perspectiva inocente, comandar não é tanto uma questão de punhos, mas de glúteos”.
Aprender a não fazer nada, a esperar, a sorrir. E sorrir em silêncio, sem desgastar-se em dar explicações que não levam a nada. Basta contemplar o mundo que vivemos -comunicação tóxica, pandémica, angustiante- para entender a força do silêncio. E aqui, é inevitável lembrar de Thomas More, acusado de traição, encerrado na torre de Londres, sem dar nenhuma explicação, o que irrita ao soberano, Henrique VIII que exclama: “O silêncio de More ecoa por toda Europa”.
Tropecei nestes dias, com um texto magnífico de um livro provocante do Cardeal Robert Sarah, A Força do Silêncio. Copio: “Nosso mundo parou de ouvir a Deus, porque ele continua falando em um ritmo mortal e com velocidade letal para não dizer nada. A civilização moderna não sabe calar. Ela vive em monólogo permanente. A sociedade pós-moderna rejeita o passado e considera o presente um vil objeto de consumo: contempla o futuro pelos raios de um progresso quase obsessivo. Seu sonho, transformado em triste realidade, foi encerrar o silêncio em um calabouço úmido e escuro. A partir daí, estabelece-se uma ditadura da palavra, uma ditadura da ênfase verbal. Nesse cenário sombrio, resta apenas uma chaga purulenta de palavras mecânicas, sem alívio, sem verdade e sem fundamento. Muitas vezes a verdade nada mais é do que uma criação midiática enganosa consolidada por imagens e testemunhos inventados”.
Rejeitar o passado, perder as raízes, viver num presente sem genealogia prévia. Chegar ao mundo, desprezando tudo o que já foi vivido, com arrogante complexo messiânico de que, agora sim, eu cheguei, vou resolver. Novamente sou obrigado a voltar a Ortega. No Prólogo para Franceses da sua obra magna, A Rebelião das Massas, escreve o filósofo espanhol: “À minha frente está um jornal no qual acabei de ler o relato das festividades com que a Inglaterra celebrou a coroação do novo rei (Jorge VI, pai de Elizabeth II) . Diz-se que a monarquia inglesa há muito é uma instituição meramente simbólica. Isso é verdade, mas dizendo assim, deixamos escapar o melhor. Porque, com efeito, a monarquia não exerce nenhuma função material e palpável no Império Britânico. Seu papel não é governar, administrar a justiça ou comandar o exército. Mas não é por isso que é uma instituição vazia, vaga para o serviço. A monarquia na Inglaterra exerce uma função muito determinada e altamente eficaz: a de simbolizar. É por isso que o povo inglês, com propósito deliberado, deu agora uma solenidade incomum ao rito da coroação. Perante a atual turbulência no continente, quis afirmar as regras permanentes que regulam a sua vida. Ele nos deu mais uma lição”
E a seguir, Ortega sublinha a importância da tradição que revela as raízes. Sem passado, um povo não é nada, carece de presente, seu futuro é incerto: “Este é o povo que sempre chegou antes do futuro, que antecipou a todos em quase todas as encomendas. E eis que este povo obriga-nos, com certa impertinência, a presenciar uma cerimónia antiga e a ver como as obras mais antigas e mágicas da sua história, a coroa e o cetro. O inglês está determinado a deixar claro para nós que seu passado, precisamente porque aconteceu, porque aconteceu com ele, continua existindo para ele, mostra-nos a exuberante validade de seu passado. Este povo circula ao longo do seu tempo, é verdadeiramente senhor dos seus séculos, que preserva com posse ativa. E é isso que significa ser um povo de homens: poder hoje continuar no seu ontem sem deixar de viver para o futuro; poder existir no verdadeiro presente, pois o presente é apenas a presença do passado e do futuro, o lugar onde o passado e o futuro realmente existem”. Palavras definitivas e contundentes; até mais relevantes, se consideramos que os ingleses nunca foram especialmente simpáticos para os espanhóis…desde a época de Felipe II”.
A carta de Lord Mountbatten ao jovem Charles, que não senta cabeça, e que se reveste de especial simbolismo, porque chega ao Príncipe de Gales após o atentado que acaba com a vida de Mountbatten. “Assume teus deveres, aprende com o passado que todos vivemos neste pais, decide com maturidade”. Lembra muito a carta que Queen Mary enviou à neta Elizabeth quando a morte repentina do pai a transforma em Rainha. No fundo, um chamado à responsabilidade. Algo que se a idade e o temperamento não estão ainda prontos para assumir, o peso do cargo se encarregará de catalisar e fazer amadurecer. Um tema recorrente entre os britânicos, como bem mostra Shakespeare em Henrique V, otimamente representado neste filme de corte moderno.
Os aprendizados, como disse, são muitos, vários em cada episódio. As vezes representados por uma breve situação, ou uma simples frase. “Como diz o poeta, que não tem nenhum inimigo, é porque não faz nada direito na vida” -responde Thatcher à rainha, quando é questionada sobre o seu modo de gerenciar o governo. O teste de Balmoral, o castelo de verão na Escócia, pelo qual passam todos: a primeiro ministro, e Diana, a futura princesa de Gales. O momento onde ela ajuda a encontrar o cervo ferido, com os compassos de La Traviata como telão de fundo, é de uma estética especial e comovente.
O trabalho e desafios contínuos que o poder -esse saber sentar-se de que nos fala Ortega- entranha. Um trabalho difícil, porque é preciso manejar as crises, não provocar outras com as respostas indevidas. Não existe velocidade de cruzeiro em quem comanda. O que deve ser, sim, velocidade de cruzeiro, é a serenidade interior. E saber esperar, obedecendo aquele pensamento repleto de sabedoria: as coisas urgentes, podem esperar; as que são muito urgentes, essas devem esperar! A espera nos faz enxergar a relevância das coisas. Mas para isso é preciso aprender a fazer sem fazer nada, sorrindo, em silêncio. Um desafio enorme nos dias de hoje. Um requisito imprescindível em quem -por vocação, ou por que lhe caiu no colo- tem o comando como missão na vida.
Comments 1
Excelente reflexão! Você consegue exprimir brilhantemente em palavras o que muitos de nós sentimos, quando nos deparamos com obras maravilhosas através da leitura, teatro, cinema e a nossa própria vida!
Poucos têm essa capacidade!
Trabalhar e alimentar o silêncio nessa vida não é tarefa fácil mas, muitas vezes, a melhor coisa a se fazer!
Parabéns!
Grande abraço