Salvador de Madariaga: Hernán Cortes.

Pablo González BlascoLivros Leave a Comment

Ed. Espasa. Madrid 1948. 739 págs. Português: Ed. Ibrasa São Paulo. 1961. 425 págs..

Uma recente viagem, passando pela Cidade de México, por conta de uma conferência sobre Humanismo Médico em Tempos de Crise, foi um dos estopins para voltar sobre este livro, que já tinha lido há mais de três décadas. Mas houve outro: o recente musical, Malinche, criado por Nacho Cano, um roqueiro dos anos 80 na Espanha, que após 12 anos de pesquisa, reedita a história de Cortés e da mulher que, do seu lado, foi a ponte das culturas hispânica e mexicana. Melhor do que falar do musical, vale ler a entrevista que o compositor deu há um par de meses. E ainda, assistir o making-off da produção que é magnífico. 

A biografia de Cortés é um dos trabalhos mais consagrados de Salvador de Madariaga: profunda, séria, repleta de bibliografia. Um retrato -externo e interno-  do conquistador espanhol. Uma história que, com frequência, se desfoca e se reconta com narrativas variadas, todas elas carentes de rigor científico. Por isso, após ver Malinche, e admirar o trabalho investigativo do compositor, não consegui evitar reler a obra de Madariaga.

Está fora de propósito fazer nestas linhas um resumo desta obra, até porque a leitura, pausada e atenta, é necessária para entender Cortés e seu entorno Vale sim, apontar alguns aspectos a modo de destaque, pois são muitas vezes os que se tergiversam em narrativas recontadas e superficiais.

O primeiro destaque corre por conta da educação de Hernán Cortes, nascido em Medellin, província de Badajoz (Extremadura, Espanha) enviado pelos seus pais para estudar em Salamanca com 14 anos. Quer dizer, Cortés se inicia como acadêmico, estudioso das leis, aspecto essencial para o futuro que a vida lhe prepara. Aponta Madariaga: “ Os académicos de Salamanca não sabiam que, perdido na multidão de estudantes de direito, estava um garoto de quatorze anos que estava reservado para dar o verdadeiro significado à descoberta, conquistando um esplêndido Império exótico naquele Novo Mundo mais sonhado do que realmente descoberto por Cristóvão Colombo (…) Estimamos que Cortés tenha passado dois anos em Salamanca sem esperar o diploma de direito: era um bom latino e respondia em latim a quem lhe falava latim (..) Hernán Cortés nasceu tanto para as letras quanto para a ação. Sua inteligência era viva e capaz de dominar conceitos mentais não menos que os seres humanos. Ele era tão inteligente quanto bravo, tinha a mesma aptidão para as letras e para as armas; incrível capacidade de estar sempre presente – presença de vontade em ação, de mente em pensamento – uma mão de mestre em lidar com os homens, uma mente de mestre em lidar com as coisas; o dom da expressão, na ação, adaptando o ato ao momento, no pensamento, adaptando a palavra à ocasião, sempre pontual; e, finalmente, o olhar rápido e a garra poderosa da águia, mas também a habilidade tortuosa e da serpente – unindo assim em sua complexa personalidade a águia e a serpente, símbolo ao mesmo tempo do povo que ele estava destinado a conquistar e do deus Quetzalcoatl ou Serpente Alada que por esse povo encarnou”.

E acrescenta: “Essa característica persistirá por toda a vida: sempre pronto para lutar se necessário, Cortés está sempre mais disposto a negociar (…) Cortés foi um grande capitão no campo de batalha, e sua bravura, para dizê-lo friamente e com objetividade histórica, chegou ao heroísmo; mas ele também era um diplomata astuto e negociador astuto, um verdadeiro artista na arte de manipular os homens, e essa característica fez muito mais do que a primeira para elevá-lo nos primeiros anos de sua maravilhosa ascensão”.

Outro destaque necessário é o trabalho de Bernal Diaz del Castillo, soldado e escritor, de quem Madariaga empresta relatos, detalhes, perspectivas. Não pertencem a um simples cronista, mas a um soldado que teve a iluminação de relatar e escrever o que estava vivendo: a honestidade em pessoa, o define Madariaga, e anota: “ Permaneceu até hoje como o maior dos cronistas espanhóis. Bernal Díaz del Castillo nasceu em Medina del Campo em 1492, no mesmo ano da descoberta da América, de uma família em que, como ele mesmo diz com discreto orgulho, “meus antepassados ​​e meu pai e um irmão sempre foram servidores da Coroa real.” O seu carácter franco, sério, corajoso, modesto mas íntegro, religioso e, no entanto, irónico e sem superstições, ilumina os atos da vida de Cortés com páginas de espantosa vitalidade às quais nos voltaremos frequentemente em busca da sua ainda pulsante verdade. Ele escreveu seu relato, ele nos diz, porque “não tenho outra riqueza para deixar para meus filhos e descendentes, exceto este meu verdadeiro e notável relacionamento”. Decidiu continuar escrevendo em defesa da verdade. Gramática não era o seu forte, mas também não precisava dela para tornar sua história um dos livros mais vívidos já escritos”.

Esse rigor investigativo torna-se essencial para entender os tempos das descobertas e conquistas no início do século XVI. O tema da conquista e da submissão dos índios como escravos -frequente distorção histórica- é abordado pelo autor: “Ninguém que se aproxime do estudo deste período com boa inteligência e boas intenções duvidará por um instante que Isabel a Católica e seus conselheiros próximos, homens como Hernando de Talavera, Arcebispo de Granada, e o Cardeal Cisneros, ambos escolhidos por ela não apenas como diretores de sua política, mas como confessores de sua consciência, cumpriram seu dever religioso com a maior seriedade e consideraram a salvação dos “índios” como a primeira obrigação que o descobrimento impôs à Coroa da Espanha (…) Naqueles dias a vida religiosa era o coração da vida cívica; ninguém discordou do sentimento comum. Havia pecadores, claro, mas até os mais inveterados reconheciam como tal a única verdade que existia. Assim, mosteiros e paróquias eram os centros religiosos da comunidade. Deles emanava a luz na qual os homens se moviam, pensavam e pecavam (…)  É duvidoso que alguma nação tenha dado à causa da caridade humana e da igualdade uma falange mais dedicada, ativa e destemida do que aquela que a Espanha então colocou em linha para defender os índios contra seus próprios homens de rapina. Las Casas, Motolinia, Mendieta, Sahagún, Montesinos e muitos outros definiram os princípios em nome dos quais tantos conquistadores e colonizadores espanhóis foram condenados, quase todos, embora não todos, merecidamente”.

Desse homens -que conquistavam e pecavam- nos fala Madariaga, para situar o cenário onde Cortés se movia. A dificuldade de gestão -como diríamos hoje- era tremenda. Havia lealdade, heroísmo, mas também busca dos próprios interesses: enfim, a condição humana de sempre. “Esses governadores enviados pela Espanha ao Novo Mundo tiveram que enfrentar uma situação difícil. O objeto ou assunto de seu governo era mutável e fluido, além de novo. Imagine um escultor cuja argila se transforma em água. Tal era a situação de nossos estadistas coloniais lidando com uma coletividade em que tradições e modos de ser e agir estavam em conflito perpétuo à beira de duas raças distintas e na anarquia de novos espaços a conquistar. A metrópole mandava caravelas e mais caravelas com novos colonos para ilhas já habitadas por aborígenes com um modo de vida totalmente diferente. Era preciso distribuir terras, fundar cidades, abrir estradas, prover portos, organizar mão-de-obra, reprimir revoltas e levantes, arrecadar, guardar e remeter o quinto real de ouro extraído das minas, colher informações sobre o que acontecia nas ilhas vizinhas e no continente”.

E continua: “À primeira vista, há algo desagradável e até repulsivo nesta cadeia de infidelidades e insubordinações em que, pelo menos nos seus primeiros dias, se desenrola a conquista do Novo Mundo, tornando-se mesmo uma espécie de desígnio permanente da sua história; e, no entanto, embora sempre valiosa como indício do caráter deste ou daquele conquistador, a insubordinação vem se revelando como um processo biológico pelo qual a vida europeia se espalha pelos vastos territórios indianos. A célula mãe da ilha Hispaniola deu de si as células da Jamaica, San Juan ou Porto Rico, Castilla del Oro, Andaluzia, Flórida, Nova Espanha ou México, Peru e outras, graças a esta tendência do ibérico de se desvincular da autoridade central; e no seu conjunto, tudo isto vem a constituir um monumento impressionante do vigor que o princípio monárquico tinha então em Espanha, porque apesar da corrupção de alguns dos altos dignitários da Coroa, apesar da atitude de desvio e ingratidão de Carlos V, nenhum desses conquistadores tão corajosos quanto rebeldes sonhou em esculpir um império para si com a espada nas terras distantes e vazias que conquistaram com seus próprios esforços (…)  O Estado espanhol não estava em condições de organizar a descoberta e a conquista do Novo Mundo, situação análoga à de nossos dias, em que nem mesmo as poderosas nações do Ocidente se sentiam em condições de organizar a conquista do ar quando a aviação foi descoberta. Em ambos os casos, a tarefa histórica teve que ser deixada para aventureiros individuais”.

Por isso, Madariaga arremete contra o simplismo histórico, e as bandeiras lugar-comum de tantos que encaram o tema com uma superficialidade que transparece enorme ignorância. Anota o historiador: “Engana-se e perde tempo quem, acompanhando Las Casas, imagina que aquelas expedições se lançaram todas ao desconhecido e ao perigo com o desejo de espoliar, assassinar ou capturar para a escravidão os infelizes e indefesos indígenas. Surgiram diretamente do espírito dos colonos e conquistadores e a sua natureza dependia do carácter de quem as concebeu e de quem as executou: algumas, lançadas por mesquinhos, com a estreita ambição de reconstituir as reservas de gado humano que em suas minas e fazendas dizimaram os maus tratos, a varíola e sem dúvida também a dor da liberdade perdida; outros por ser homens magnânimos, em busca de honra e riqueza, descobrindo novas terras que, claro, como todas as terras por descobrir, eram fabulosamente ricas. É difícil imaginar hoje qual era a imaginação dos nossos antepassados, pois a nossa já tem fronteiras nitidamente traçadas e fechadas no mapa do conhecimento concreto, enquanto a deles se abria para um continente desconhecido, nunca mais fascinante e prenhe de promessas do que naqueles tempos, os primeiros anos do século XVI”.

Traçado o cenário, voltamos a Cortés que, agora com 33 anos é alcaide de Santiago de Cuba, e se prepara para o grande salto, a conquista do México. Sem pressa, com serenidade, sabendo lidar com as invejas dos seus superiores, -com destaque para Diego Velázquez, governador de Cuba- que tinham uma estatura humana muito inferior à do futuro conquistador “Cortés tinha então trinta e três anos. Era vigoroso, próspero, são de corpo e espírito, influente, prefeito de Santiago, um dos notáveis ​​da ilha. Ninguém pode duvidar de seu ímpeto vital, de seu espírito empreendedor, de sua imaginação, de sua capacidade de lidar com pessoas, de sua capacidade de liderança (…)Devemos acreditar que Cortés, entretanto, permaneceu mergulhado em mera indolência, ausente de espírito e vontade, incapaz de perceber o que se passava diante de seus olhos? Não: ele permaneceu deliberadamente nas sombras, reservando suas energias, sua influência e seus amigos para o momento em que todos aqueles exploradores fracassados ​​lhe abriram caminho para o triunfo que só ele era capaz de alcançar”

É chegado o momento da ação, a partida para o México, e Cortes -hábil com a espada e com a diplomacia- dá a largada: “Mandou fazer proclamações e tocar trombetas e tambores (…) para que qualquer povo que quisesse ir na sua companhia às terras recém-descobertas para as conquistar e povoar, lhes desse a sua parte do ouro e da prata e riquezas que ficaram e parcelas indígenas após a pacificação. Observe-se a sagacidade deste ato. Ao tornar público o segredo de Velázquez, ele torna o governador seu cúmplice para amanhã: ou Velázquez aceita que Cortés se instale no México ou, se lhe nega a autoridade para se estabelecer, pode acusá-lo de ter enganado seus homens ao permitir que tal proclamação fosse feita. A combinação dessas instruções sombrias e elásticas com esta proclamação pública ousada e específica para “conquistar e povoar”; ele colocou em suas mãos uma arma poderosa que manejará em seus dias com habilidade incomparável (..) Perplexo, Velázquez acabou cedendo ao inevitável. Não foi falta de caráter. Sua atitude revela claramente que se sentia fraco contra o rebelde, o que tende a confirmar que ele não tinha influência financeira suficiente sobre a frota. Audácia, aliás, e ação positiva, sempre prevalecem, e não há dúvida de que naquela manhã de 18 de novembro de 1518, a marinha, quebrando as amarras não só do porto, mas do governador, percebeu que ele havia finalmente encontrei um verdadeiro campeão.”

Bernal Diaz elenca o poder de fogo de Cortés quando parte em direção à conquista: “Os dezesseis cavalos que compunham toda a sua artilharia. Bernal Díaz registra detalhadamente a lista desses dezesseis cavalos que descreve e julga com tanta imparcialidade como se fossem pessoas. Aqui está ele, no limiar de sua grande aventura, com onze navios, quinhentos e oitenta soldados e capitães, cem marinheiros contando pilotos e mestres, dezesseis cavalos, dez canhões de bronze, quatro falconetes e treze arcabuzes – líder de todos não tanto por lei como por natureza, porque a todos havia conquistado e iria provar sua capacidade de conquistá-los novamente sempre que necessário (…) Ele era muito afável com todos os seus capitães e companheiros, principalmente com aqueles que vieram com ele da ilha de Cuba pela primeira vez, e ele era latino e ouvi dizer que ele era formado em direito, e quando falava com advogados ou latinos homens ele respondeu ao que eles disseram a ele em latim.  Aqui nesta ilha —acrescenta Bernal Díaz— Cortés começou a mandar muito de facto, e Nosso Senhor agradeceu-lhe, porque onde quer que pusesse a mão lhe fazia bem (…) Foram para o Novo Mundo para “fazer novos lares” e “ganhar o pão” com sua lança e espada, e estavam tão longe de alimentar a menor dúvida sobre a ética de sua profissão quanto o acionista de uma empresa está hoje de entreter dúvidas sobre a ética de seus dividendos ou o trabalhador especializado sobre seus altos salários”. Um belo texto que nos sugere a mentalidade histórica para se aproximar destes momentos acontecidos há quase 500 anos.

A lealdade de Cortés à Coroa Espanhola, assim como a consciência de missão que a todo momento ilumina suas decisões, é também outro destaque presente ao longo desta imensa obra biográfica.  “Cortés costumava repetir a seu respeito: “Não tenho outro pensamento senão servir a Deus e ao Rei”. O que ele quis dizer com servir a Deus? Um homem do seu século, profundamente imerso na fé, ainda mais, com a alma tecida com a fibra da mesma fé, para Cortés essas palavras não eram uma frase ociosa. Como poderíamos nós, para quem a fé é uma loteria que se ganha ou se perde de acordo com o destino de cada alma, entender aquela época em que a fé era como o ar e a luz, uma das próprias condições da existência, o sopro com que era falada, a clareza com que foi visto? Tenha-se em mente que, naqueles tempos, Estado e religião, civilização e fé eram a mesma coisa, de modo que o serviço de Deus e o do Rei eram um e o mesmo”

Adverte a seguir Madariaga: “Não nos surpreendemos com esta atitude: não sorriamos com um sorriso de superioridade, porque os homens de nossos dias pensam e agem da mesma forma no que diz respeito à sua religião, que chamam de Civilização Ocidental. Eles acreditam nela com fé não menos ingênua, considerando-a a felicidade óbvia para todo homem de bom senso, e nessa fé ganham força para impor o progresso e a liberdade a todas as raças que não compartilham sua religião cívica. A letra mudou, mas a música é a mesma, consciente de seu dever de nunca recorrer às armas até que tenha esgotado todos os meios pacíficos para conquistar a vontade dos indígenas. Essa atitude não era apenas um mero desejo de economizar em suas escassas tropas; foi também uma consequência de sua opinião teórica baseada em sua concepção religiosa, como evidenciado por sua prática de ter ofertas de paz lidas pelo notário público três vezes antes de lançar um ataque”.

Consciência de missão que leva a colocar todas as fichas -tudo o que ele tem seu- em jogo: “Não havia outro apoio financeiro para o empreendimento senão o de sua fortuna particular e, portanto, era uma questão de vida ou morte para ele que em todos os momentos a conquista fosse autossuficiente. Não era apenas um homem, um soldado, um Capitão: era um Estado”. Consciência de missão que leva Cortés a “uma combinação de suavidade na forma e energia no fundo”, como Bernal Diaz anota nos momentos de enfrentamento e de conquista: “Ele deu a ordem de parar um pouco e não disparar besta, espingarda ou tiro, e como queria carregar tudo com muita justificativa, fez outro pedido a um escrivão do rei chamado Diego de Godoy, e pela língua de Aguilar, para que nos deixassem saltar em terra e beber água e falar-lhes de Deus e de Sua Majestade. Ele o repreendeu seriamente e disse-lhe que as terras não deveriam ser apaziguadas dessa forma, tirando suas propriedades dos nativos (…) Essa exigência não foi uma improvisação de Cortés. Era a expressão de uma política deliberada, definida pelo Conselho das Índias para estabelecer a conquista em bases jurídicas, não mais hispânicas, mas “católicas”, isto é, universais. (…) O impacto direto daquele serviço divino de música e símbolo em um povo cuja religião estava encharcada de sangue foi a maneira mais eficaz, talvez a única, de trazer o novo espírito a eles”.

E anota Madariaga esculpindo a personalidade do conquistador: “Com Cortés, sentimos desde o primeiro momento uma contínua troca de influências que circula do chefe para o seu povo e do seu povo para o chefe, pelo que o exército já começa a ser uma cidade. Mas ele não era homem de correr riscos evitáveis. Ele era ousado sem ser imprudente. Esse autocontrole, essa total subordinação do ser ao trabalho é uma das grandes qualidades de Cortés que contribuem para torná-lo um dos homens de ação mais brilhantes que a história conheceu. pois sua política era, obviamente, unir seus amigos e desunir seus inimigos”.

Outro destaque necessário: A presença de dona Marina  -que será Malinche– mulher e intérprete de Cortés, a voz através da qual falará com os caciques, e com o imperador Montezuma. Lemos no texto: “Dona Marina perdeu o marido efetivo. Ela então se tornou a companheira de Cortés, a quem deu um filho. Este fato não parece ter despertado nenhum interesse e Bernal Díaz o registra sem o menor comentário. Dona Marina tinha uma boa presença “e tinha muito carácter”, como diz Bernal Díaz com um vigor inimitável. Logo alcançou uma posição de destaque entre os espanhóis, a tal ponto que os índios lhe deram o nome Malintzin, composto de Marina (transformando-o de acordo com a fonética mexicana) e o sufixo tzin, uma indicação de posição e nobreza. Mas o prestígio de Dona Marina foi ainda maior, pois os indígenas transferiram seu nome para o de seu senhor, passando a referir-se ao próprio Cortés com o nome de sua amante-intérprete, Malintzin, que os espanhóis naturalizaram como Malinche”.

E o episódio histórico emblemático, a queima das naves para que ninguém pudesse voltar atrás, uma vez feita a opção de seguir do lado dele: “Longe de se esquivar da causa do desconforto, a convicção predominante entre seus homens de que, ao destruir os navios, havia interrompido sua retirada, deixando-os sem alternativa a não ser vencer ou morrer, concentrou toda a sua atenção nela e na de seus ouvintes: disse-lhes que daí em diante teriam de lutar, não só por Deus e pelo Rei como sempre, mas também para salvar as suas vidas.  Para os fracos de coração, ele ofereceu o único navio restante – e seu desprezo. Ninguém aceitou nem um nem outro, e Cortés também inutilizou esse último navio” . E Madariaga se pergunta e responde: “Se, portanto, apesar dos obstáculos que ninguém calculou melhor do que ele, decidiu seguir em frente, quais eram as forças que o faziam sentir-se capaz de enfrentar um adversário tão poderoso? A primeira foi uma fé sem limites no valor dos espanhóis. Depois dessa confiança em seus homens, fé na vitória sem a qual a vitória é impossível, ele confiou plenamente na ajuda divina”.

A chegada a México, a fundação de Vera Cruz, o avance calculado recrutando povos que estavam sob o domínio Azteca, ocupa uma boa parte da obra de Madariaga. Mas, entra em cena, somente quando o historiador nos brindou com um magnífico semblante da personalidade de Cortés, do seu modus faciendi. Sem ter isto presente, seria impossível entender a facilidade aparente como o conquistador chegou até as portas de Tenochtitlán. Eis alguns parágrafos entressacados de livro: “Os soldados, tendo decidido que isso era do melhor serviço de Sua Majestade, pediram a Cortés que parasse o resgate do ouro e fundasse uma cidade com autoridades para a administração da justiça e do governo, ou seja, com prefeitos e vereadores. Cortés levou um dia para pensar sobre isso, para melhor simular que estava fazendo por força das circunstâncias e sob pressão popular o que na realidade já havia meditado e resolvido por conta própria. Com a fundação de Vera Cruz, o exército foi transformado em um município espanhol governado democraticamente por seu conselho. Para maior solenidade, Cortés empossou os Prefeitos, Conselheiros e Conselho em nome do Rei (…) Cortés toma suas decisões na solidão do comando e depois faz com que apareçam emergindo das fileiras de seus soldados. A fundação de uma cidade era sempre uma ocasião agradável para Cortés expressar seu gosto pelas letras, reprimido durante sua constante atividade a serviço das armas. Para ele, a caneta era como uma espada mais fina; homem de dois gumes, armas-letras, foi sempre necessário que a pena legal assinasse no papel o que a espada escrevera na terra”.

Nesta fase de conquista, Madariaga sublinha, mais uma vez, o modo de proceder de Cortés. Um estrategista de primeira categoria mas, que chegando o ponto de negociar com a fé, perdia um pouco as estribeiras: “Prudente, astuto, cauteloso, perspicaz, paciente na ação, brando nas palavras… Mas assim que a fé que iluminava seu cérebro e movia seu coração foi frustrada em seu progresso triunfante, ele sentiu um empurrão que o fez saltar. o ato imediato, quebrando abruptamente qualquer compromisso ou negociação. Sua fé foi, portanto, a fonte de sua força e a causa de sua fraqueza, uma nova confirmação, se necessário, da sinceridade e profundidade de seu impulso religioso. Assim, Bernal Díaz, embora devoto como ninguém, aponta discretamente o protesto do bom senso contra o espírito quixotesco de seu patrão”.

A chegada na capital do império Azteca e o encontro com Montezuma nos é apresentada quase como um desfile triunfal, resultado da ação prévia de Cortés no avance estratégico até o coração da conquista: “Cortés percebeu como era difícil conter um grande contingente de guerreiros indígenas em território inimigo. Percebia que o poder de Montezuma repousava na tirania e na opressão. Era sem dúvida sua intenção fazer Montezuma entender que todas as cidades e estados por onde havia passado em sua marcha para a capital estavam com ele, Cortés”. E se produz o encontro: “O espanhol deu alguns passos à frente e abriu os braços. Era o gesto que aquele momento tenso ditava ao seu corpo, a encarnação de um espírito humano que, diante de outro espírito humano, reagia em harmonia com seu próprio sentido íntimo, que era universal. O mundo cristão abriu os braços ao desconhecido num gesto de fraternidade e de absorção. Mas o abraço não pôde ser consumado porque os dois príncipes que guardavam Montezuma estenderam os braços, formando uma barreira entre o cristão e o asteca. O Uei Tlatoani era muito sagrado para qualquer um tocar”.

O encontro, e a seguir, a fé que guiava Cortés, e que se explicita nas palavras de Bernal Diaz: “Voltando-se para o padre Olmedo, Cortés disse: ‘Parece-me, senhor padre, que seria bom para nós darmos a entender a Montezuma nossa fé, para nos deixar construir nossa igreja aqui’.  Ele era constante em sua linha de conduta: conquistar para converter, converter para conquistar. E quando observou o templo Azteca que “tinha tantas crostas de sangue nas paredes e o chão todo banhado nele que nos matadouros de Castela não havia tanto fedor”, sentiu a necessidade imperiosa de tomar cartas no assunto, mas nesse ponto o imperador Azteca não cedeu:  “Esse pensamento deveria aumentar seu zelo religioso, a mais exaltada de suas paixões, a única forte o suficiente para desviá-lo às vezes do caminho claro de seu bom senso. Aconteceu que a fé religiosa era também a paixão dominante de Moteczuma, onde surge um curioso paralelo entre os desígnios mentais do conquistador e do conquistado, pois também em Moteczuma vemos como o zelo religioso chega por vezes a perturbar a lógica e a harmonia da sua atitude (…) Por incrível que pareça ainda hoje, quando já podemos perceber a influência exercida sobre os acontecimentos pelos preconceitos religiosos de Moteczuma, Cortés havia conquistado o Império Mexicano com pouco mais de quatrocentos homens, treze cavalos e alguns pequenos canhões; mas também quase sem lutar”.

A explicação dessa entrada triunfal -onde a fé do espanhol, e o sentido religioso do asteca se encontram- é desenvolvida com precisão: “Quantas vezes nos disseram que a vitória de Cortés se devia à superioridade das suas armas, da sua pólvora e dos seus cavalos! Já sabemos que esta explicação não corresponde aos fatos. Já sabemos como, no primeiro encontro, os índios decapitaram o cavalo de um espanhol com um único golpe de espada de obsidiana, e com certeza os mexicanos não iam se assustar a vida toda com mero barulho. A verdadeira razão da derrota mexicana foi que sua fé sucumbiu a uma fé mais forte (…) Se eles quisessem, ou melhor, se sua fé permitisse que eles o desejassem, os mexicanos poderiam ter feito picadinho dos espanhóis (essa metáfora nunca foi mais precisa); mas foram paralisados, não como costuma-se dizer superficialmente, pela força militar de Cortés, seus cavalos e canhões, mas por seus próprios Vichilobos (deuses)”.

Por isso, quando os espanhóis atacam o recinto sagrado do templo asteca, o equilíbrio se desfaz: “No dia em que Cortés, erguendo-se para derrotar os deuses, demoliu todo o tecido psicológico que Montezuma construíra em sua imaginação, destruiu com as próprias mãos a base de seu domínio sobre os Uei Tlatoani. A partir desse dia, o ressentimento de toda a nação mexicana contra os invasores pôde se manifestar em plena liberdade. Os deuses já lhe eram favoráveis ​​e Huichilobos decretou o extermínio dos estrangeiros”.

Cortés faz prisioneiro a Montezuma, uma prisão doméstica, como diríamos hoje, com todas as regalias. Mas agora o equilíbrio é delicado e insustentável: “Quando Montezuma recebeu seu ultimato, ele respondeu que como ele era seu prisioneiro e seus parentes também eram seus prisioneiros, seria bom que um deles pelo menos recuperasse a liberdade para que pudesse tomar as medidas que Cortés desejava. Cortés então concordou em libertar Cuitlahuac. Desconhecendo os costumes, por assim dizer constitucionais dos mexicanos, ele não percebeu que Cuitlahuac, irmão de Moteczuma e governante de Iztapalapa, possuía autoridade suficiente para convocar o Tlatocan ou assembleia, que imediatamente removeu Moteczuma, nomeando Uei Tlatoani a Cuitlahuac. Esta foi uma manobra de grande perigo para Cortés, pois a partir de então os poderes mágicos que a suprema magistratura carregava consigo se materializaram em um adversário já livre, enquanto os espanhóis ficaram em suas mãos com um prisioneiro que não passava de um vazio escudo do poder supremo”. A morte de Montezuma -desprovido agora do caráter divino de imperador- a mãos do seu próprio povo, a retirada dos espanhóis da Tenochtitlán na noite triste , com milhares de baixas, foi a consequência lógica.

O conquistador voltará depois sobre a cidade, submetendo-a e quase destruindo-a, pois não tinha outra saída. Mas agora a dor toma conta do seu coração, a conquista não é suficiente para preencher seu espírito atormentado. Anota Madariaga: “Cortés havia conquistado a confiança de todo o país por seu senso de justiça, justamente no momento em que a força militar, tanto material quanto moral, à sua disposição havia diminuído ao mínimo (…) Ele também teve que endurecer seus sentimentos tolerando o canibalismo de seus auxiliares indígenas, ele que começou a conquista como uma cruzada contra o sacrifício humano. Fora obrigado a destruir aquela bela cidade que um dia sonhava conquistar pela força da arte política e da ciência maquiavélica. Ele tinha visto companhias inteiras de seus soldados serem sacrificadas a Vichilobos. Ele teve que abrir caminho para a vitória através de pilhas de cadáveres… Cortés não era homem para desfrutar de um triunfo comprado por tal preço”.

Mesmo assim o historiador destaca a tremenda estatura humana e moral de Cortés: “Há apenas uma razão pela qual, com exceção de um número relativamente pequeno de prisioneiros que foram marcados como escravos, a queda do México não acarretou a perda da liberdade para todos os derrotados. Quando Fernando, o Católico, tomou Málaga, após um longo e duro cerco, mas incomparável ao do México, o próprio Rei Católico condenou à escravidão toda a população da cidade derrotada. Por que Cortés adotou uma política diferente? Porque ele era um homem diferente e maior do que Fernando, o Católico”. E conclui: “Cortés foi o primeiro conquistador que conquistou algo que valia a pena conquistar”.

Uma conquista que incorpora México à Coroa do Império espanhol, onde os territórios descobertos e conquistados eram regidos como os outros reinos pelo poder central. Tema este muito bem explicado num magnífico livro, comentado anteriormente neste espaço. “A ideia de colônia em seu sentido moderno não existia na Espanha do século XVI. Conquistado o México, tornou-se mais um dos muitos “Reinos” como os que constituíam a Coroa múltipla do Rei de Espanha, listado com Castela, Leão, Galiza, Granada e outros da Península, com Nápoles e Sicília e outros do Ultramar — reinos de todos aqueles que o Rei da Espanha respondeu diante de Deus. O Rei representava todo o povo e o sistema de governo então considerado não o melhor, mas o único imaginável consistia em colocar toda a responsabilidade pública nas mãos de um homem íntegro cuja primeira consideração era a de sua própria honra”.

Os capítulos finais relatam o final da gesta, e o destino do conquistador. Aponta com ironia Madariaga que “o caráter espanhol, que possui tantos traços admiráveis, sofre de uma das mais tristes doenças da alma humana: não tolera o sucesso…do vizinho. Cortés havia subido ao topo. Ele estava, portanto, condenado aos olhos de seus compatriotas”. E anota a continuação: “Com a ingenuidade interior de um homem que realizou grandes coisas, Cortés sem dúvida imaginou que uma onda de afeto e gratidão viria sobre ele do país e do soberano que ele encheu de poder e glória. Pobre Cortês! Assim que sua própria grandeza o elevou acima do comum de seus compatriotas, ele foi o alvo favorito de injúrias, calúnias, insidiosas, todos os sentimentos vis com os quais os fracos e impotentes tentam obscurecer a odiosa encarnação aos olhos das pessoas um sucesso para todos eles muito evidente. Cortês, embora monótono e tranquilo, estava longe de ser igualitário. Teria sido possível para ele atravessar a onda de pequenos inimigos mesquinhos com um coração destemido e pele insensível; mas possuía o sentido vivo e real e o valor simbólico do monarca, então geral na Espanha, embora hoje desconhecido em todos os lugares, exceto na Inglaterra, e sofria abominavelmente com a indiferença, a frieza, o insuficiente reconhecimento e às vezes até a seca ingratidão que encontrava no imperador”

Mesmo assim, não se abalou nem negociou com as mediocridades. “Cortés recebeu esta notícia com consequente desgosto, vendo seus pacientes esforços para conquistar a boa vontade dos nativos serem destruídos pela intrusão de incompetentes”. E, nas suas próprias palavras -aliás, é notável a prolixa correspondência de Cortés com o Imperador- esclarece que “considero melhor ser rico em fama do que em bens”. Madariaga resume a situação de modo claro e direto: “Ele pediu o governo do México, e não lhe foi dado; porque nenhum conquistador pensa que lhe é devido. O mesmo que o rei Fernando fez com Cristóvão Colombo, que descobriu as Índias;  e com Gonzalo Fernández de Córdoba, O Gran Capitão, que conquistou Nápoles. Os novos ouvidores só tinham duas ideias na cabeça: enriquecer-se e arruinar Cortés. Todo o resto não valeu nada (…) Se Carlos V tivesse mais discernimento na escolha de seus colaboradores, não demoraria a descobrir em Cortés um homem digno, talvez o mais digno, para ser seu primeiro-ministro. Mas ele nem mesmo viu em quem havia conquistado o México o homem mais adequado para governar a Nova Espanha”

“Quase nenhum espanhol alcançou o reconhecimento de seus compatriotas até depois de sua morte” – anota o historiador. E acrescenta: “Mesmo que Cortés não tivesse tido um lugar tão importante na história como o conquistador do México, ele o teria como o homem que organizou a exploração sistemática e científica da costa do Pacífico, do Panamá à Califórnia”. E, voltando-se para o México, a modo de última reflexão que parece extraída do espírito de Cortés, escreve:  “Aquela nação com a qual ele sonhou ainda não encontrou sua alma. Enxerto de uma raça no tronco de outra, ainda não chegou a dar de si o conceito claro e o sentido de seu ser e de seu destino. E vive em constante agitação, em duelo perpétuo entre os dois sangues, de modo que todos os dias Montezuma é apedrejado até a morte e Guatemocín é enforcado, e todos os dias o branco conquista o índio na alma do mexicano”

Finalizo na mesma sintonia em que comecei. No making-off de Malinche, há um momento onde se apresenta o túmulo de Cortés, atualmente no templo do Hospital de Jesús Nazareno, na Cidade do México, hospital que o conquistador tinha fundado. O compositor Nacho Cano pergunta descontraidamente, por que o mantém lá, quase de modo incógnito. E o interlocutor -um professor de história mexicano- confessa: “Parece que ainda sentimos a divisão dentro de nós”. O compositor nos brinda com essa informação -adoçada pela música- a mesma realidade que Madariaga aponta  na sua obra magnífica. Necessária e imprescindível para entender que houve gentes -heróis hoje quase desconhecidos- que não negociavam com a honra que lhes era devida, mesmo tendo que abrir mão de todas as posses legitimamente conquistadas. Um exemplo a ser seguido, mesmo em tempos como os nossos onde impera a mediocridade e o populismo.

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