Leonardo Padura: “Como poeira ao vento”.
Leonardo Padura: “Como poeira ao vento”. Ed. Boitempo, 2021. São Paulo 580 págs. (“Como polvo en el viento”. Tusquets. Barcelona. 2020. 658 págs)
Conhecendo a prosa cativante de Leonardo Padura, escalamos o seu último romance para a nossa tertúlia literária. Narrativa magnífica quando mergulha em romances com fundo histórico, como O homem que amava os cachorros para mim, sua obra prima. Também vale destacar Hereges. E outras, no meu modo de ver, menos atraentes, como onde delega o protagonismo no inspector Mario Conde, com aquém não me alinho totalmente.
Mais uma vez, Padura aborda um tema muito pessoal, telúrico, com sabor da sua terra: os emigrantes cubanos que se dispersam -por um motivo ou outro- como poeira ao vento. Um romance longo, de leitura fácil -confesso que é difícil parar de ler- embora não faltem tropeços, lombadas molestas. Me pergunto -e aqui coloco o meu porém a esta obra de Padura- como alguém que consegue uma delicadeza impar para descrever a morte de um cavalo, nos serve incômodas grosserias nos atritos sexuais. A rigor, não precisaria desse apelo, pois não é isso que vende, pelo menos no caso do escritor cubano, que tem uma texto corrido de prosa mais do que superior. Uma deficiência que poderia ser evitada, tudo seja dito.
Os exilados cubanos, que no novo destino “não conseguiam deixar de bailar se o disc-jockey colocava uma música chegada de uma ilha da qual renegavam vinte e quatro horas do dia, mas da qual não queriam (ou não podiam) desprender-se”. Um pais -diz com elegante ironia referindo-se a USA- onde era mais fácil e barato ser astronauta do que revalidar um título de doutor em veterinária, obtido em alguma universidade cubana.
A descrição das personagens é magnífica, transparente, uma radiografia de cada figura. Porque isso são as personagens de Padura, figuras singulares. A garota, filha de uma cubana que renega sua origem, tenta voltar às raízes que sua mãe odeia. Percebe, a jovem, uma secreta atração pelo cubano, quando na realidade não passa de uma nova iorquina com cidadania americana. O pai da garota, um argentino de ascendência judia, que também abomina seu pais de origem, com exceção da seleção de futebol, os cortes de carne, e a sanfona de Piazzolla.
Vale o exemplo de um diálogo entre pai e filha:
-Vocês os argentinos, quando se juntam…..se fazem mais argentinos?
-É uma desgraça nacional. E cuidado, porque a segunda pessoa que um argentino quer detonar (eufemismo para substituir o verbo original, já que obviamente lei Padura em espanhol) é outro argentino. Porque a quem prefere mesmo detonar é a um uruguaio.
As personagens se alternam, em histórias paralelas, que arrancam de Cuba para chegar a USA, a Espanha, a outros lugares. Alguns fazem do seu novo pais, uma réplica da ilha caribenha. “Quando Marcos chegou à cidade, comprovou que os poucos nativos resistentes, se distinguiam colocando uma bandeira da União, em algum ponto visível da sua morada, para lembrar-se do pais onde estavam vivendo agora. Os centro-americanos, os porto-riquenhos, os venezuelanos, fugiam dali assim que possível, pois mal suportavam o peso do orgulho e a prepotência dos cubanos, que até morrendo de fome, se comportavam com seres superiores (…) A essência daquele bairro (Hialeah) é que ali era possível viver com um pé em território colonizado em USA e com ou outro em Cuba. Refugiados que se empenhavam em continuar usando dessa condição, e que se conseguiam falar inglês de forma fluente, se convertiam em pessoas de vantagem”.
A jovem, Adela, que é o início da história, junto com o seu noivo-marido, Marcos, sente que é possível compreender os cubanos, mas nunca replicá-los, falta-lhe algo para ser o que eles sempre foram. “Vocês, os cubanos como minha mãe, passam o dia falando, mas nunca dizem tudo o que pensam”.
Tudo isso porque o grupo do qual arrancam -jovens rebeldes que vão se amoldando ao novo regime, ou migram da ilha- amigos que “com seu romanticismo e sua fé em ebulição, renegaram seu vanguardismo burguês, e se colocaram à disposição para construir obras funcionais e resolver as necessidades coletivas…..E, enquanto isso, foram pendurando nas paredes do seu estúdio fotos de Mao-Tse Tung (convenientemente substituída por outra com Ho Chi Minh), Jean Paul Sartre (em algum momento trocada por outra com Salvador Allende) ou com um sorridente Yuri Gagarin (onde anteriormente estava uma de Nikita Kruschev)”. Com esta descrição lembrei de Delírio Americano, livro que recentemente comentei neste espaço, onde por algum motivo não se fala de Padura, uma falha que também apontei.
Magníficas descrições da decadência cubana, gente “confinada em um apartamento que já teve um toque de graça, um ar de casa, e agora parecia um depósito de detritos: transbordando de frascos de remédios vazios, eletrodomésticos inúteis, móveis estripados, livros empoeirados, paredes sem memória da última vez em que receberam uma demão de tinta, ondas de fedor por dentro e por fora. O que fora seu lar agora lhe era apresentado como o prelúdio de todas as mortes, o panteão de suas memórias”.
E os emigrantes em busca de nova vida, querendo esquecer, sem conseguir, suas raízes. Como Dario, que “apenas algumas semanas antes de partir para o exílio, sob o inclemente sol cubano que bronzeava o couro, cavava no pátio da casa de Fontanar, decidido a desenterrar batatas-doces ralas para o almoço, sem chapéu ou camisa ou saber que havia cremes L’Occitane en Provence como aquele que já o perfumava e lhe dava a aparência de um tigre domesticado”. E que chegando a Espanha, a Barcelona, se esforçava por ser “mais catalão que os catalães e escondendo de si mesmo as suas origens agrestes, e ao mesmo tempo tentando não o dizer a si próprio, sabia muito bem que nunca seria um verdadeiro catalão (nem para ele nem para os radicais e irredimíveis catalães) e que realmente não estava interessado em ser aceito como catalão: porque, na verdade, ele só queria se tornar outra coisa, outro Dario, não importava se ele era catalão ou marciano, mas sempre mais longe do Dario original. Enterre o passado, conte os ganhos, nunca as perdas. Derrote qualquer indício de nostalgia (…) Apesar de tudo que sofreu, Dario nunca sentiu vontade de odiar, mas também não foi capaz de amar, muito menos de perdoar”.
Figuras tocantes, como Clara, Santa Clara dos amigos a chama Padura, que é quem une o grupo. Na verdade o unia no passado, e agora faz o que pode. Uma “competente graduada universitária, analfabeta tecnológica”, que vê partir os membros da sua família: “ por fim o jovem transpôs a barreira: a mesma barreira que em outras duas ocasiões e em diferentes layouts e salas daquele aeroporto ela vira transpor o marido e o filho mais velho, sempre com a sensação avassaladora de que os estava perdendo, que talvez os via pela última vez. Com a certeza de que na possível viagem sem volta levavam consigo mais que um pedaço de sua vida, uma parte de seu corpo, a cada partida mais diminuída por amputações radicais”
Os que permanecem na ilha, como Clara e Bernardo, “passaram a ter mais tempo, embora para a maioria o ganho fosse inútil, pois era um tempo vazio ou errático, distorcido, como se passasse por um relógio macio de Dalí”. E Bernardo, outra figura que o escritor apresenta com doçura, afirma em magnífico resumo: “O que nos aconteceu? Aconteceu tudo e sem nos pedir licença. Os sonhos agora são insônia ou pesadelos. Aconteceu-nos que perdemos. Este é o destino de uma geração – sentenciou, e recuperou seu copo com a mão já trêmula e com um só golpe bebeu a bebida-. E assim vamos, camaradas, irmãos de luta: de derrota em derrota… Até a vitória final!”
Loreta , por dar-lhe um nome entre muitos, figura tormentosa, azeda, quase nauseante, que “se sentia melhor rodeada de animais que lhe agradeciam a sua existência e carinho do que de pessoas determinadas a exigir-lhe cuidados, palavras, fidelidade, empenho? Loreta Fitzberg não gostava de Loreta Fitzberg nem da vida que levava, nem do meio que a rodeava, como Elisa Correa anos atrás, na encruzilhada mais sórdida de sua existência, tinha nojo de ser Elisa Correa e de viver no mundo. perigoso e decadente em que vivia, e por isso foi necessário tentar, de novo, uma nova encarnação? Ou, mais precisamente, um verdadeiro renascimento”.
As quase 600 páginas, riquíssimas na descrição de personagens, estão continuamente salpicadas de críticas a Cuba: não somente ao regime, mas ao modo de ser cubano, algo que Padura critica sem piedade. “Não estamos na memória de ninguém e ninguém está na nossa memória. Somos e ao mesmo tempo não somos, e ainda levará muitos anos para começarmos a ser algo mais do que fantasmas. Vivemos a deplorável atitude cubana de colocar o que os outros pensam antes do que se prefere. Todos cubanos. Odiando-se, desde o início e até a eternidade… Irving sempre diz: em Cuba não importa que o sol brilhe, que não faça calor e que o dia esteja lindo. Em algum momento alguém vem e detona (novo eufemismo na tradução livre) tudo. Será um castigo histórico?”
E o regime? Uma desculpa pare um modo de ser negativo? O escritor coloca estas palavras em boca de Loreta, mas nota-se que saem de dentro dele: “Seria mais fácil colocar a culpa de tudo no comunismo… Mas como sempre digo, o comunismo é uma consequência, não uma causa. Uma consequência que pode agravar certas coisas, por muitas razões, mas a condição humana é a mesma em qualquer sistema, porque é eterna… Uma das poucas coisas eternas… O que está no fundo de tudo é a vaidade, a o mais falso orgulho, uma capacidade de fazer o mal que os domina… É uma doença nacional”.
Exilados, remanescentes, todos enfrentando seu passado e suas raízes. “No socialismo nunca se sabe o passado que te espera”, quer dizer, os sustos que levas quando o frequentas. E a frase de José Marti, o poeta da independência de finais do XIX, que escrevia: “Prefiro ser estrangeiro em outros países do que no meu. Prefiro ser estrangeiro a ser escravo no meu próprio pais”.
Um livro que, tocando a realidade, é uma aventura fenomenológica da mão das personagens. Algo que Padura adverte na nota final, com a que encerramos esta viagem: “Como escritor, alimento-me da realidade, mas não sou responsável por ela para além das minhas vicissitudes individuais e do meu compromisso civil, como cidadão e como testemunha com voz, que apenas pretende deixar um testemunho pessoal do meu tempo humano”. Toda uma epopeia: cubana e, principalmente, humana!
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Gerações nascidas e criadas dentro de um sistema amarrado e distorcido! Funcionando de forma distorcida! Como consertar isso quando deparada com um sistema livre e solto? É difícil, em uma geração, mudar por dentro e por fora. Belo romance.