O Feminismo de um liberal.

Pablo González BlascoLivros 3 Comments

O Feminismo de um liberal. José Ortega y Gasset: “Estudios sobre el amor”

Volto a este livro que me impactou quando o li pela primeira vez, há mais de três décadas. Pensamentos, fichas extraídas, citações inúmeras vezes utilizadas em conferências e aulas, e a memória deste ensaio de Ortega como exemplo sempre atual do verdadeiro feminismo. Um magnífico elogio ao eterno feminino. Lembro-me que em 1995, pouco antes do início da Conferência de Pequim sobre a Mulher, me atrevi a escrever um ensaio tecendo as ideias de Ortega. Acabei de encontrá-lo perdido entre os arquivos do meu computador. Reli com prazer, antes de começar a digitar estas linhas.

Não vou resumir aqui o livro, porque já o fiz, em espanhol -sinto-me incapaz de tentar uma tradução que transmita o vitalismo de Ortega neste tema- e quem tiver gosto e tempo, poderá consultar aqui. Vou apenas tentar alinhavar as ideias de Ortega, de modo algo desordenado, mas que -como quadro impressionista- com tempo, e com distância surgirão os traços mais importantes. Distância que, no dizer de Ortega, é o que nos permite contemplar a silhueta de uma catedral, sem naufragar nas porosidades das pedras que a constroem. Uma distância que ele denomina respeito.

Feminismo é -assim o entendemos os homens- o relativo à feminilidade, o característico e próprio das mulheres. Mas é preciso admitir que com o uso, o conteúdo de tão simples conceito foi descolorindo pelo manuseio, tornando seus limites imprecisos. Estabelece o filósofo espanhol (ideia desenvolvida pêlos seus seguidores, entre eles Julián Marías) o que denomina condição sexuada da pessoa que não é o mesmo que condição sexual. A sexualidade é uma parte, um caso particular da condição sexuada, relativa à genitalidade e às funções da mesma. Condição sexuada implica que o ser homem -ou, no caso, mulher- é muito mais do que um mero acidente inserido perifericamente na natureza humana. É todo um modo de ser que afecta a própria essência e condiciona todo o atuar desse ser humano.

Trocando em miúdos: a mulher é mulher em tudo o que faz, sente, ama e vive. A sua feminilidade é marca registrada não apenas nas atividades onde a sexualidade está envolvida (entre as quais a maternidade), como também no modo de sorrir, de escrever, de fechar uma porta ou escovar os dentes. Até na atuação mais mecânica -digamos, por exemplo, carimbar um documento- a mulher o fará de um modo feminino, colocando no carimbo sua alma feminina junto com a tinta que fica impressa. Isto traz, no sentir de Ortega, implicações notáveis. Vejamos os desdobramentos.

Querer medir a influência feminina na história, por exemplo, com parâmetros masculinos, é condená-la ao fracasso logo de cara, e isto porque as medidas, simplesmente, são outras: as próprias da sua feminilidade. As comparações -as forçadas igualdades de algo que não é igual, não tem como ser e, graças a Deus, nunca será- pecam por simplórias. E nesta afirmação o filósofo desabrocha nos maiores elogios às mulheres não sem antes insistir em que não podem ser colocados em pauta de igualdade, elementos que se medem por medidas diferentes. Para nos entender: não é possível somar quilómetros com litros, nem comparar o camarão à grega com o 2º concerto para piano de Rachmaninoff, ambos excelentes.

Continua Ortega. O homem vale por aquilo que faz, sua excelência consiste em “fazer”. A mulher vale por aquilo que é, seu valor é o ser, e o estar. Neste modo de ser e de valer, entrevemos o tamanho das diferenças. A influência da mulher -única e magnífica, peculiaríssima- não consiste em fazer e transformar, como a do homem, mas sim na presença, serena e imóvel que, como a luz, sem nenhum esforço aparente, ilumina o que está à sua volta. Uma influência, no dizer de Ortega, que é atmosférica, operando lentamente, como o clima sobre o vegetal, transformando-o. E transforma silenciosamente, sem o barulho e a turbulência que o atuar masculino leva acoplado. Um modelo “quase-ecológico” de influência feminina que, 90 anos após conserva uma atualidade inegável. A influência da mulher envolve atmosféricamente a sociedade, penetrando suas porosidades, fecundando-as com sua alma feminina.

É  possível que alguém considere isto pouca coisa, tarefa de segunda, concedendo a primazia à atuação criativa e técnica do homem. E Ortega, que não deixa ponto sem nó, desdobra seu raciocínio. O simples estar da mulher não é quietismo nem passividade, já que não por mexer-se o mérito é maior. Afinal, exemplifica, o próprio Deus governa o mundo sem mexer-se, sendo seu fazer apenas ser -que não é pouco: é tudo- chamando para si todas as coisas criadas. Argumento definitivo, pela sua procedência desprovido de qualquer confessionalismo suspeito, e que satisfará até os que se incomodam por ter se atribuído a Deus um modo “excessivamente masculino”. Não parecer ser este o sentir do filósofo.

Um desafio final: pautar o nível da sociedade e dos homens pelo grau de exigência que as mulheres impõem. Diz Ortega textualmente: “Esta é a suprema missão da mulher na terra: exigir a perfeição do homem. O homem aproxima-se dela procurando ser o preferido e por isto procura recolher o melhor da sua pessoa para apresentá-lo à bela julgadora”. Quer dizer, que quando as mulheres exigem pouco dos homens, estes se acomodam. Um comodismo de amplo espectro, desde a barba por fazer até o baixo nível moral, passando pela desordem caótica do guardarropa. Quando exigem, sempre delicadamente, “quietas, como a rosa na roseira, a golpe de gestos” vão cincelando a personalidade do homem, fazendo-o subir, superar-se, até atingir o nível por elas estabelecido. Em linguagem popular: atrás de um grande homem sempre há uma grande mulher. Ou, mais popular ainda, vindo de umas das minhas primeiras pacientes, mulher simples: “Mulher que se preze coloca qualquer homem na linha. Mas se a mulher estraga, aí nada feito…”Boa sabedoria a desta senhora que, certamente, nunca ouviu falar de Ortega.

São estas mulheres exigentes as que se “constituem em diapasão de humanidade, mais eficazes que pedagogos e políticos, que fazem o coração do homem bater com novo ritmo, protagonistas de um feminismo que faz florescer uma histórica primavera, toda uma vida nova”.

A mulher  -a grande mulher que Ortega nos descreve- domina o mundo, e domina o lar. É a mulher que converte com sua constância, com a arte da “sua alma quotidiana que faz de tudo um costume” a mesa de trabalho (no escritório ou na cozinha) a Universidade, as ONGs, o mercado corporativo, e até o próprio mundo,  num recanto do seu lar. É desse modo que ela domina e governa. E os homens, cientes da transcendência deste feminismo atmosférico, deixamo-nos governar.

Comments 3

  1. Texto interessante e capaz de gerar controvérsias sobre o papel da mulher. Um papel que, naturalmente, depende de como cada mulher se vê e o que deseja em cada fase da vida.
    Lembrando que nenhum papel é pouco ou demais, cabendo a cada mulher decidir onde pode transitar melhor.
    Há espaço para tudo: maternidade, família, amor, religião, trabalho, carreira, esportes, conquistas materiais, política, etc. Todos são importantes, se equilibram e complementam numa vida plena.
    Não vejo limites, nem restrições, apenas necessidade de responsabilidade e ética nas decisões adotadas em cada momento da vida.
    Também não vejo razões para cultivar ideias de um feminismo radical que tentam remover a sensibilidade, a delicadeza e a ternura femininas.
    Excelente texto! Obrigada por compartilhar e suscitar reflexões.

  2. Mais uma vez excelente artigo Pablo. Espero q logo vc converta todos eles em livro. Eu os tinha arquivados no celular, mas , por uma barbeiragem, acabei apagando-os! E eram alguns anos de coleção!!!
    Gde abç
    Eugenio

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