Byung-Chul Han : No enxame- Perspectivas do digital

Pablo González BlascoLivros 2 Comments

Byung-Chul Han : No enxame- Perspectivas do digital. Petrópolis, RJ : Vozes, 2018. 85 págs.

Petrópolis, RJ : Vozes, 2018. 85 págs.

Após ter lido várias obras deste engenheiro-filósofo, sul coreano-alemão, cai nas minhas mãos mais um dos seus livros. E mantém as caraterísticas dos anteriores: curto, mais um ensaio -aula do que um livro, e repetição de ideias anteriormente abordadas ( o que não é nenhum demérito, mas sim foco: água mole em pedra dura…..). A variante desta obra é o mundo digital…e as suas consequências para o ser humano, se for capaz de conviver sadiamente com ele, no fim, de sobreviver aos desafios que lhe apresenta. E assim o apresenta no prefácio: “Embriagamo-nos hoje em dia da mídia digital, sem que possamos avaliar inteiramente as consequências dessa embriaguez. Essa cegueira e a estupidez simultânea a ela constituem a crise atual”.

O mundo digital que devassa a intimidade é consequência da falta de respeito. Assim explica Han: “O respeito pressupõe um olhar distanciado, um pathos da distância . Hoje, ele dá lugar a um ver sem distância, caraterístico do espetáculo . O verbo latino spectare , ao qual espetáculo remonta, é um olhar voyeurístico, ao qual falta a consideração distanciada, o respeito ( respectare ). A distância distingue o respectare do spectare . Uma sociedade sem respeito, sem o pathos da distância, leva à sociedade do escândalo. A falta de distância leva a que o privado e o público se misturem. A comunicação digital fornece essa exposição pornográfica da intimidade e da esfera privada. Também as redes sociais se mostram como espaços de exposição do privado”. Lembrei do comentário de Ortega quando diz que é preciso essa distância sentimental que se denomina respeito, “porque cada coisa no impõe uma distância peculiar e uma determinada perspectiva; quem quiser ver o universo como ele é, tem de aceitar essa lei de cósmica cortesia”.

Contrapõe as diferenças evidentes da comunicação epistolar com a digital, que mais se assemelha a espasmos: “Uma outra temporalidade caracteriza a carta de leitor. Enquanto se a redige esforçadamente a mão ou com a máquina de escrever, a exaltação imediata já desvaneceu. A comunicação digital, em contrapartida, torna uma descarga de afetos instantânea possível. Já por conta de sua temporalidade ela transporta mais afetos do que a comunicação analógica. A mídia digital é, desse ponto de vista, uma mídia de afetos”.

E as consequências são o que ele denomina a sociedade da indignação, “que é uma sociedade do escândalo. Ela não tem contenance, não tem compostura. A desobediência, a histeria e a rebeldia – que são características das ondas de indignação – não permitem nenhuma comunicação discreta e factual, nenhum diálogo, nenhum discurso . A compostura, porém, é constitutiva para a esfera pública. A distância, porém, é necessária para formação da esfera pública. Também o zelo do assim chamado cidadão enraivecido não é [um zelo] por toda a sociedade, mas sim, em larga medida, um zelo por si mesmo. Por isso, ele se desfaz de novo rapidamente”.

E exemplifica com os clássicos, de modo acertado: “A Ilíada é um canto da cólera . Essa cólera é narrativa, épica, porque ela produz determinadas ações. Nisso, a cólera se distingue fundamentalmente da raiva como afeto das ondas de indignação. A indignação digital não é cantável . Ela não é capaz nem de [levar à] ação, nem de [levar à] narrativa. Ela é, antes, um estado afetivo, que não desenvolve nenhuma força com poder de ação”. O já comentado: espasmos, quase vômitos digitais, que observamos diariamente. Um contrassenso absoluto.

Chega-lhe o momento ao homem  digital: “O homo digitalis é tudo, menos um “ninguém”. Ele preserva a sua identidade privada, mesmo quando ele se comporta como parte do enxame. Ele se externa, de fato, de maneira anônima, mas via de regra ele tem um perfil e trabalha ininterruptamente em sua otimização. Em vez de ser “ninguém”, ele é um alguém penetrante, que se expõe e que compete por atenção. O homo digitalis apresenta-se frequentemente, de fato, anonimamente, mas não é um ninguém , mas sim alguém, a saber, um alguém anônimo”.

A digitalização moderna, que acaba com o silencio, devassa a intimidade, sucateando o mistério que cerca o interior de cada ser humano. Assim escreve o autor: “O médium do espírito é o silêncio . Claramente, a comunicação digital destrói o silêncio. O aditivo, que produz o barulho comunicativo, não é o modo de proceder do espírito (…) Passar o dedo pela touchscreen é um movimento que tem uma consequência na relação ao outro. Ele elimina aquela distância que constitui o outro em sua alteridade. Pode-se passar o dedo na imagem, tocá-la diretamente, porque ela já perdeu o olhar, o rosto. Com o pinçar [a imagem], eu disponho do outro. Descartamos o outro com o passar do dedo, a fim de deixar que nossa imagem espelhada se apresente. Leonardo da Vinci teria supostamente notado, sobre um retrato coberto: “Non iscoprire se liberta t’è cara ché ‘l volto mio è cárcere d’amore” (Não o descubra se tens amor à liberdade, pois meu rosto é o cárcere do amor). Esse ditado expressa uma experiência especial do rosto que hoje, na era do Facebook , não é mais possível. A face que se expõe e que anseia por atenção não é um rosto . Nela não habita nenhum olhar”.

Já notei inúmeras vezes, durante as viagens, que as pessoas estão mais conectadas em tirar fotos do que em viver o presente, em deliciar-se com o momento. Registram algo que nem chegam a vivenciar. Também Han sublinha esse paradoxo: “Deve-se admitir que a tendência compulsiva, quase histérica, dos turistas japoneses de tirar fotos representa uma reação inconsciente de defesa, que visa banir a chocante realidade por meio de imagens.  Fotos belas , como imagens ideais, os protegem da realidade suja. Também essa produção massiva de imagens pode ser interpretada como uma reação de proteção e de fuga. Hoje a mania de otimização abrange também a produção de imagens. Em vista da realidade sentida como incompleta, nos refugiamos nas imagens”.

O que significa essa compulsão por fotos, por selfies, essa adição aos espasmos digitais, a não ser um narcisismo doentio? “A comunicação digital, muito antes, faz com que a comunidade, nos eroda. Ela destrói o espaço público e aguça a individualização do ser humano. Não o “amor ao próximo”, mas sim o narcisismo domina a comunicação digital. A técnica digital não é uma “técnica do amor ao próximo”. Ela se mostra, muito antes, como uma máquina de ego narcisista (…) A sociedade atual não é uma sociedade do “amor ao próximo”, na qual nos realizaríamos reciprocamente. Ela é, muito antes, uma sociedade do desempenho, que nos individualiza. O sujeito de desempenho explora a si mesmo até ruir. E ele desenvolve uma autoagressividade que não raramente desemboca no suicídio. O Si como belo projeto se mostra como projétil , que ele, agora, aponta contra si mesmo”.

Algo disso apontava Kafka que chegou a entrever superficialidade …..até nas cartas. “Para Kafka, a carta aparece como um meio de comunicação inumano. Ela teria trazido um assustador arruinamento das almas ao mundo. Em uma carta, ele escreve a Milena: ‘Como se chegou à ideia de que seres humanos poderiam se relacionar uns com os outros por cartas! Pode-se pensar em uma pessoa distante e pode-se tocar uma pessoa próxima, todo o resto vai além da força humana’. A carta se relaciona com fantasmas. Beijos escritos não chegam à sua destinação. No meio do caminho, eles são presos e esvaziados por fantasmas. A comunicação postal fornece sustento apenas para fantasmas. Por meio desse rico sustento eles cresceram em números de maneira inaudita. A humanidade luta contra isso. Assim eles inventaram trens e carros, a fim de eliminar o máximo possível o fantasmagórico entre os seres humanos e alcançar o intercurso natural, a paz das almas. O lado oposto seria, porém, muito mais forte. Assim, eles inventaram, depois do correio, o telefone e a telegrafia. Kafka, então, extrai disso a conclusão: “Os fantasmas não morrerão de fome, mas nós afundaremos”.  Imaginemos o que diria o escritor Tcheco da comunicação digital. Um desastre universal fantasiado de fantasma de comunicação!

Han volta sobre um tema que abordou -como muitos outros pontos- na Sociedade do Cansaço, o Síndrome da Fadiga da Informação (SFI), “uma enfermidade psíquica que é causada por um excesso de informação. Os afligidos reclamam do estupor crescente das capacidades analíticas, de déficits de atenção, de inquietude generalizada ou de incapacidade de tomar responsabilidades. Em 1996 o psicólogo britânico David Lewis cunhou esse conceito. SFI se referia primeiramente àquelas pessoas que precisavam trabalhar profissionalmente por um longo tempo uma grande quantidade de informação. Hoje todos são vítimas da SFI. A razão disso é que todos somos confrontados com quantias rapidamente crescentes de informação (…) Um dos principais sintomas da SFI é o estupor das capacidades analíticas. Justamente a capacidade analítica constitui o pensamento. O excesso de informação faz com que o pensamento definhe. A faculdade analítica consiste em deixar de lado todo material perceptivo que não é essencial ao que está em questão. Ela é, em última instância, a capacidade de distinguir o essencial do não essencial. A enxurrada de informações à qual estamos hoje entregues prejudica, evidentemente, a capacidade de reduzir as coisas ao essencial”.

E esclarece que o excesso de informação nada ajuda. As muitas árvores impedem de ver o bosque: “Mais informação não leva necessariamente a melhores decisões. Justamente devido à crescente massa de informação a faculdade do juízo definha hoje. Frequentemente, menos informação gera mais. A negatividade do deixar de fora e do esquecer é produtiva. Mais informação e comunicação não esclarecem o mundo por si mesmo. A transparência não torna também por si mesma nada clarividente. A massa de informação não produz por si mesma nenhuma verdade. Ela não traz nenhuma luz à escuridão. Quanto mais informação é liberada, mais o mundo se torna não abrangível, fantasmagórico. A partir de um determinado ponto, a informação não é mais informativa, mas sim deformadora, e a comunicação não é mais comunicativa, mas sim cumulativa”.

As consequências vão além da simples ignorância, pois atingem o plano moral do agir, que se dilui no meio do imediatismo: “Pertence ao quadro de sintomas da SFI também a incapacidade de tomar responsabilidade. A responsabilidade é um ato que está ligado a certas condições mentais e também temporais. Ela pressupõe, primeiramente, obrigatoriedade. Os meios de comunicação atuais promovem, em contrapartida, a não obrigatoriedade, a arbitrariedade e a duração de curto prazo. A absoluta prioridade do presente caracteriza o nosso tempo. O tempo é desmontado em uma mera sucessão de presentes disponíveis. O futuro definha, aí, em um presente otimizado”.

O relacionamento com os outros também sofre a erosão de uma frívola superficialidade: “A sociedade da informação descredita toda crença. A confiança torna possível relações com outros sem conhecimentos precisos sobre eles. A possibilidade de uma aquisição rápida e fácil de conhecimento é prejudicial à confiança. Arrastamo-nos por trás da mídia digital, que, aquém da decisão consciente, transforma decisivamente nosso comportamento, nossa percepção, nossa sensação, nosso pensamento, nossa vida em conjunto”.

A todo esse conjunto que decorre da contradição essencial, do excesso de informação que não digerido produz desorientação e ignorância é o que o nosso autor denomina, o enxame. “A nova massa é o enxame digital. Ela apresenta propriedades que a distinguem radicalmente da clássica formação dos muitos, a saber, da massa. O enxame digital não é nenhuma massa porque, nele, não habita nenhuma alma, nenhum espírito. A alma é aglomerante e unificante. O enxame digital consiste em indivíduos singularizados”.

Uma massa digital, em formato 5G, de traços modernos mas sem espirito, sem propósito, sem objetivo. No fundo, nada muito diferente do que Ortega advertia na sua obra magna, A Rebelião das Massas. Vale reler a definição do homem massa anotada pelo filósofo espanhol, para concluir estas linhas:  “um homem feito às pressas, montado em nada mais do que algumas pobres abstrações, esvaziado de sua própria história, sem as entranhas do passado e, portanto, dócil a todas as disciplinas ditas ‘internacionais’. Mais do que um homem, ele é apenas a casca de um homem feito de mera idola fori; falta-lhe um ‘interior’, uma intimidade inexorável e inalienável própria, um eu que não pode ser revogado. Portanto, está sempre disponível para fingir ser qualquer coisa. O homem-massa é o homem cuja vida carece de projetos. É por isso que ele não constrói nada, embora suas possibilidades, seus poderes, sejam enormes. É esse tipo de homem quem decide em nosso tempo”. Tremendo, profético, atualíssimo. Lembrando que o homem massa nos cerca, está dentro de nós mesmos, esperando nos seduzir com o enxame da informação, se abrimos mão da verdadeira sabedoria.

Comments 2

  1. O antídoto para a formação digital ou a desinformação digital começa pela
    educação familiar, centrada na moral natural e na perspectiva da existência de Deus, criador do gênero humano, superior a todos as coisas, que com seus preceitos estruturam e dão consistência ao homem, abrindo seus olhos, inclusive, para a realidade da vida que passa, ajudando-o a tomar as decisões que valorizem o ser humano e tudo a ele relacionado. Sem esta base moral não dá!

  2. A escolha do tema foi excelente e os comentários, muito pertinentes. Talvez a humanidade não esteja emocionalmente preparada para lidar com a rapidez das inovações digitais e esteja se tornando escrava da modernidade. Nota-se, de fato, que as pessoas estão abrindo mão da privacidade, da contemplação, da crítica e dos momentos de meditação e interiorização do pensamento. É uma opção que leva à anulação de si mesmo em prol de uma fantasia de sucesso e aprovação nas redes sociais. Um plano de vida fútil, desprovido de conteúdo real. A vida se transforma em um jogo pela internet.
    Obrigada por compartilhar!

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