Resistência: As razões do coração, que a razão (e a Inteligência Artificial) não entendem.
The Creator. Diretor: Gareth Edwards. John David Washington. Gemma Chan, Ken Watanabe, Madeleine Yuna Voyles, Allison Janney, 133 min. USA. 2023.
Tinha lido alguma crítica sobre este filme, destacando-o como um dos melhores do ano. Confesso que em se tratando de ficção -e aqui, de ficção digital, 5G, e todos os derivativos- meu entusiasmo não era dos melhores. Mas com a idade aprendemos a desconfiar das próprias opiniões para abrir-nos a novas perspectivas. Nem sempre, tudo seja dito. E ai está a diferença entre o velho que reclama e desconfia -este filme eu já vi, obviamente entendendo por “filme” situações da vida- e quem procura conservar a alma jovem, e se desarma de preconceitos para ser surpreendido. Essa é a raiz da contemplação, de permitir ser tocado, uma vez e outra, pela beleza, pela estética, pelo bom gosto.
Assisti o filme acompanhando do jeito que foi possível, porque o argumento não é linear, mas repleto de meandros. Humanos combatendo máquinas, que parecem humanos, criados pelo próprio homem, e agora revelando-se. Não alcanço a saber se é rebelião ou grito de independência, porque o seu criador -o homem- deixou de ser quem se supunha tinha de ser. Uma troca de papeis que no início aparece confusa, depois se ilumina, faz pensar. Muito. Apesar do protagonismo da Inteligência Artificial -responsável pelas catástrofes que desfilam pelos fotogramas- fui entendendo, aos poucos, que tudo isto não era simples ficção, mas algo mais denso, um recado de liberação prolongada, uma carga de profundidade.
Por essas coincidências da vida -que nunca são coincidências, talvez providencia- tinha acabado de ler mais um livro de Byung-Chul Han. O formato habitual em que o filósofo coreano-alemão escreve, ensaio curto, carregado, outra carga de profundidade. Desta vez o título não podia ser mais adequado ao filme que estava assistindo: No Enxame: Perspectivas do Digital. E lá, logo de cara, no prefácio, adverte: “Embriagamo-nos hoje em dia da mídia digital, sem que possamos avaliar inteiramente as consequências dessa embriaguez. Essa cegueira e a estupidez simultânea a ela constituem a crise atual”. Foi uma luz que iluminou as cenas que estava assistindo.
A embriaguez do digital, das possibilidades tremendas que a técnica nos oferece, chega a escurecer a realidade e, pior ainda, obnubila as intenções humanas, as razões e o sentido do próprio viver. A moderna tecnologia, que avança por segundos, transmite informações -nos afoga nelas, porque somos incapazes de discernir o que realmente importa- transporta-nos com rapidez, nos faz viver em vários mundos simultâneos. Sim, é verdade. Mas a técnica não nos diz o que deve ser transmitido, nem onde queremos livremente chegar. Somos, sem saber, conduzidos pela nossa criatura. Somos -como alguém acertadamente disse- escravos digitais. E nem reparamos na nossa condição de submissão.
“Espelho, espelho meu, quem é mais bela do que eu”. A Madrasta Má, certifica-se da sua beleza impar em regularidade quotidiana. Até que aparece a Branca de Neve e a megera enfurece-se com o espelho, que nada tinha a ver com os padrões estéticos. Eram tempos distantes da IA, e os contos e fábulas, sempre repletos de fantasia, ainda se ancoravam no mundo real,
O Facebook, o Instagram, as redes sociais são nossos espelhos de hoje, cujo compromisso com a verdade não é o mesmo que nos tempos da Branca de Neve. Aliás, não existe nenhum compromisso; são espelhos dóceis, maleáveis, que sempre respondem ao gosto do freguês. Se algum deles colocar as manguinhas de fora, cancela-se e parte-se para outro. Até desenhar nosso Barbieland, confortável e sob medida. A nossa Pasárgada, onde somos amigos do rei….e dos espelhos. E nos divertimos falando com os nossos botões -ou com o nosso umbigo; botões que, no dizer de Machado de Assis, são aquele senado que sempre vota ao nosso favor.
Andava eu nesta toada enquanto assistia o filme e, sobretudo, depois, refletindo no vácuo das impressões deixadas. Uma espécie de revolução dos espelhos modernos, da IA que criamos e, subitamente, volta-se aos tempos de Branca de Neve e nos diz: “Para com isso, larga mão de ser besta e pensar que você é o rei da cocada preta. Você me criou para te ajudar a fazer um mundo melhor e agora nem sabes o mundo que queres, perdes-te a noção da realidade. Chega!”. E a seguir a guerra, as catástrofes, o caos.
Evidentemente, tudo isto fica mais claro quando a gente sente, e escreve as percepções. No fogo cruzado dos fotogramas e dos efeitos especiais, nem sabemos de onde nos chegam os golpes, quem é o bandido e quem é o mocinho. Escrever nos obriga a refletir, a ponderar, a parar. E também a abrir mão de consultar recursos tecnológicos que, naturalmente, não poderão nos oferecer respostas. Ou até podem nos enganar, no meio dessa revolução dos espelhos. É preciso deixar de ser ingênuo e parar de procurar no Google as respostas que estão dentro de nós, na nossa alma……e no nosso coração.
E ai vem a grande virada. O coração, os afetos, esse comboio de corda que gira a entreter a razão, como escreve Fernando Pessoa na autobiografia do poeta fingidor. A razão confusa -não sabe mais em quem ou no que acreditar no meio da revolução dos espelhos- é salva pelo coração. A criança, máquina doce que transpira sentimentos e conquista; o líder das máquinas -imenso Ken Watanabe, impossível dissocia-lo daquele Último Samurai; a mãe que nos afaga e nos faz encontrar os caminhos que a técnica dos humanos desumanizados entortou.
Anotamos neste espaço, a propósito de outro filme distopico, Finch, reflexões análogas. Para que o robô consiga seu objetivo -para nos substituir quando não estivermos mais aqui- não bastam toneladas de conhecimento, mas é preciso entrar no ambiente da afetividade, do coração. Repito em aberto auto plágio: “Para funcionar neste mundo, não basta ter um conhecimento imenso. É preciso contar com aquilo que não é calculável, e que costuma chegar embrulhado nas imprevisíveis emoções do ser humano. O robô escuta, assente, parece entender, embora não saiba muito bem o que fazer com esses dados…não computáveis”.
Naquele filme havia boa vontade do humano, colaboração aberta para humanizar o robô. Neste filme que nos ocupa, o que temos é uma guerra entre as máquinas e os humanos que se desumanizaram. O único caminho -e aqui reside, ao meu modo de ver, o recado da produção- é fazer com que as máquinas destilem humanidade. Para tentar resgatar o humano perdido, empreitada difícil por aquilo de que corruptio optimi péssima (a corrupção dos melhores é sempre um desastre). Ou para tentar salvar-se elas mesmas. Ou, pelo menos, para salvar o espectador. Foi isso que eu senti. Salvei-me pela humanidade das máquinas
Quando um grupo de amigos me perguntou sobre o filme -antes de eles assistirem- tentei resumir tudo numa frase, o que talvez foi uma pretensão. Lembro de ter comentado: “Não é simples ficção. É um filme que lembra Pascal: as razões do coração, que a razão não entende. E a IA também não”. Não sei se funcionou. Até porque as vivências de cada um, quando assistimos um filme, são diferentes. Aqui não trabalhamos com uma narrativa horizontal, nem com dados de um romance. São impactos, golpes afetivos, que tentam nos salvar de sucumbir à revolução dos espelhos que criamos para nosso deleite narcisista.
Esse é o motivo destas linhas, desconexas, que podem fazer o leitor sentir a dor lida do poeta fingidor, e abrir-se a esse conhecimento fascinante que chega até nós do coração dos outros. Os corações se falam e têm seu idioma. Cor ad cor loquitur -dizia Newman, e o colocou no seu escudo de Cardeal. Talvez deveria ter incluído o santo intelectual inglês na minha recomendação, junto com Pascal. Algo a ter presente numa próxima ocasião.
Comments 2
Pablo você nos traz para a realidade com um toque sublime ! Acreditar que o real é melhor e é maior do que a fantasia do espelho da Branca de Neve.
Um privilégio ter os seus “ insights “nos trazendo a reflexão e tangenciando a razão. !
Que escolha excelente de filme!
Até que ponto a IA será usada como um instrumento para o bem?
Qual o limite para se tornar uma inimiga ou um agente que nos escraviza?
Um tema profundo e oportuno.
Será que estamos preparados para isso?
Obrigada pela discussão.
Vou assistir!