A.E.W. Mason: As quatro penas brancas.

Pablo González BlascoLivros 1 Comments

A.E.W. Mason: As quatro penas brancas. Ed Lacerda. 2000. 352 págs.

Quero lembrar que a recomendação desta leitura partiu de algum dos boletins literários que recebo habitualmente. E algo se falava lá de aventuras, de um clássico da época vitoriana, de lealdade, traição, honra e culpa. Também soube -e comprovei depois- que tinha sido adaptada ao cinema algumas vezes. Com esses predicados, escalamos o romance para a tertúlia literária mensal.

A trama gira em volta das quatro penas brancas que Harry Feversham recebe -como símbolo de cobardia- quando já noivo de Ethne, se recusa a partir com o seu batalhão para combater na África pelo império britânico. Na verdade, são três as penas que recebe -uma de cada um dos seus colegas oficiais-, mas a quarta é acrescentada pela própria noiva, ao saber da decisão de Harry. A tentativa de livrar-se dessas penas que apontam culpa e infâmia, é o motor de todo o romance.

A conduta aparentemente reprovável de Harry, requer uma explicação que o autor coloca no início do romance. Não tinha vocação militar, apenas seguia os sonhos do pai, um general reformado. “Os longos anos de infância, adolescência e juventude vividos na presença de um pai antipático e dos implacáveis ​​mortos que o olhavam dos retratos da galeria (familiares militares), causaram seus danos. O rapaz não tinha ninguém por perto em quem pudesse confiar. O medo da covardia minou incessantemente seu coração, passava o dia com ele e o levava para a cama.  Tinha havia povoado seus sonhos e sido seu companheiro perpétuo e ameaçador. O medo o impediu de se aproximar dos amigos, por receio de que uma palavra impulsiva o denunciasse”.

Após a decisão que renderá as penas da cobardia, “Harry hesitou na soleira, assustado, e parecia estar se preparando para recuar para a sala iluminada, temeroso de que algum perigo o aguardasse no vazio escuro. E assim foi: o perigo dos seus próprios pensamentos.  Contemplou com olhar irado um mundo que lhe parecia desordenado e com o qual só se reconciliava com o álcool”.  Mas a evolução do romance -o que o torna um clássico atraente- é o desenrolar desses pensamentos, e de um medo que não era tal. “Era um credo simples, de acordo com a simplicidade do homem que o professava. Resumia-se a isto: morrer com honra valia mais do que viver muitos anos”.

Por isso, Harry guarda as penas e confia seus planos a um velho amigo da família que já tinha feito o diagnóstico da incapacidade do jovem para servir o exército. “Tirou a carteira e quatro penas brancas e as colocou na sua frente, sobre a mesa. —Você as guarda -perguntou o amigo. —Como um tesouro. Vai parecer estranho para você. Para você eles são o símbolo da minha desgraça; para mim são muito mais: representam as oportunidades para recuperar a minha honra”. E ai arranca a aventura que é preciso ler e degustar.

O outro fator da equação é, naturalmente, Ethne que mediante a sua pena branca renunciou a Harry. “O caráter da jovem combinava com sua aparência. Era sincera e possuía a franqueza e a simplicidade de alguém forte, mas capaz de uma grande doçura sem relação com a violência”.

Os encontros com outras personagens, vão desenhando o caráter dessa mulher como mostra este diálogo que aprofunda no modo feminino: “Sempre fico surpreso ao ver você, pois você sempre supera a imagem que minha mente cria. As mulheres sofrem muito mais que os homens quando o mundo as trata mal. Sei muito pouco, é claro. Eu só posso adivinhar. Mas acredito que as mulheres recolhem, absorvem e retêm o que sofreram muito mais do que nós. Para elas, o passado torna-se parte do seu ser, tão integral quanto um membro, por exemplo. Para nós, homens, é sempre algo externo, no máximo um degrau de escada ou, no máximo, um peso no calcanhar. Você não pensa o mesmo? Expresso mal o pensamento. Vamos colocar desta forma: as mulheres olham para trás; o infortúnio causa muito mais danos a elas, não acha?”.

O interlocutor é Jack Durrance, outro oficial amigo de Harry, que nada teve a ver com as penas recriminatórias. “A vocação substituiu a inteligência em Durrance. A simpatia deu-lhe paciência e força para compreender; de modo que, nesses três anos de campanha, ele deixou para trás homens muito mais inteligentes do que ele, graças ao seu conhecimento das tribos duramente hostilizadas do leste do Sudão”.

Um acidente de guerra, priva a Jack da visão. E não estou contando o argumento, porque a cegueira de Durrance, rende momentos importantes no romance: “Eu sei o que a cegueira significa para todos os homens… Ela produz um egoísmo crescente, a menos que estejamos constantemente em guarda. A cegueira significa isso para todos os homens Mas deve significar mais para mim, já que estou privado de qualquer ocupação. Se eu fosse um escritor, ainda poderia ditar. Se eu fosse um empresário, poderia administrar meu negócio. Mas sou um soldado e não um soldado inteligente. O ciúme, uma curiosidade contínua e irritável… (não há maior bisbilhoteiro que um cego), as exigências suspeitas com que tentarei monopolizar a sua atenção… Estes são os principais perigos que represento”.

A cegueira de Jack é um permanente desassossego para Ethne, que descobre a força de enxergar no fundo, naquele que nada vê. Assim o relata para uma vizinha: “Você não percebeu como  se torna esperto a cada dia? Afiado na interpretação dos silêncios; em inferir sobre o que alguém silencia. Na expansão das frases; em converter nossos movimentos em comentários de nossas palavras. Laura, você não percebeu? Às vezes penso que até os recônditos mais profundos da minha mente lhe são revelados. Ele me lê como em um livro infantil”.

Laura, a vizinha, outra personagem curiosa, “era daquelas pessoas que prefere espiar pelo buraco da fechadura, mesmo quando nada nem ninguém a impede de entrar pela porta. O que ela poderia descobrir através de manobras lhe parecia mais desejável e de maior valor do que qualquer informação obtida por meio de uma simples pergunta. Na verdade, evitava sistematicamente qualquer tipo de pergunta direta e considerava muito bem passado o dia se, ao final dele, conseguisse, desperdiçando o engenho, fazer com que alguém lhe contasse alguma notícia trivial que poderia ter aprendido, logo pela manhã, apenas perguntando abertamente”.

Outras personagens coadjuvantes surgem ao longo das páginas. O tenente Sutch -a quem Harry confia sua estratégia de reabilitação- , quem como muitos homens que passam a maior parte do tempo sozinhos, o tenente desenvolveu o hábito de pensar em voz alta. E também o pai de Ethne, o general Feversham, e os colegas que enviaram as penas.

Mas o núcleo é mesmo a recuperação da honra de Harry e com ela o olhar compreensivo da sua antiga noiva, já que como Jack Durrance afirmara, “as mulheres, muito mais que os homens, colhem os frutos da sua experiência e vivem dela, pensando no passado”.

Por isso, é “ necessária a fé de uma mulher para conceber aquele plano… Um incentivo de mulher para que o homem que tentasse colocá-lo em prática não desanimasse e abandonasse a tarefa” As penas, as quatro, pesavam no ânimo e na carteira de Harry até conseguir desfazer-se delas. Mas, sem dúvida, a quarta pesava mais do que as outras. É disso que o romance trata: de como liberar-se daquele lastro, encarnado em suaves penas brancas, e do peso, imenso, da pena da mulher amada. E, por isso, é um clássico que transpira romantismo e esforço. A determinação de um homem, em busca da honra perdida. 

Comments 1

  1. Excelente escolha! Interessante tema para discutir essa necessidade de sempre corresponder às expectativas da sociedade e da família para receber aprovação e se sentir aceito.
    O que seria covardia? Aceitar um papel que não condiz com seu ideal por medo de se posicionar e de desagradar? Ou demonstrar um sinal de fraqueza e fugir dos desafios que se configuram na vida?
    Difícil responder. Talvez dependa da capacidade de lidar com as críticas e de se resguardar das rejeições.
    Obrigada por compartilhar e parabéns pela análise!

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