Cabrini: Santidade na Trincheira

Pablo González Blasco Livros 2 Comments

Diretor: Alejandro Monteverde. Cristiana Dell’Anna,, David MorseJohn LithgowGiancarlo GianniniJeremy Bobb,  Federico Castelluccio,  Katherine BoecherPatch DarraghRolando VillazónVirginia Bocelli. USA. 125 min.

Forçoso é reconhecer que não sou muito chegado em filmes de Santos. Respeito e admiro o exemplo, desses homens e mulheres que tiveram uma vida que, de algum modo, foi transformando o mundo, e que todos os que queremos sair da mediocridade, nos esforçamos em imitar, cada um dentro das suas possibilidades. Nada, pois, contra os Santos. A pedra no meu sapato são os filmes, as tentativas de projetar esses exemplos de modo nem sempre feliz. Explico.

Um santo contemporâneo – S. Josemaria Escrivá, o Santo do ordinário em palavras de João Paulo II, outro santo de hoje- dizia que temos de andar com os pés na terra, e com a cabeça no Céu. Os filmes de santos, a maioria, situam eles sim com a cabeça no Céu, mas pouco mostram dos pés na terra. Uma terra que é com frequência lama, barro, e -como diz nosso Guimarães Rosa por boca do jagunço- um pais de pessoas, de carne e sangue e mil e tantas misérias. Quer dizer, falta nesses filmes uma conexão com a realidade que os simples mortais -mesmo os que aspiram à santidade- têm de enfrentar diariamente.

Obviamente há exceções, como a vida de Thomas More -um advogado e político- em filme inesquecível que arrebatou o Oscar de 1967. E a história de Giuseppe Moscati, um médico napolitano, numa longa e magnífica produção  da RAI. Note-se que ambos são cidadãos comuns -quer dizer, não são frades, nem monges, nem religiosos, ou mesmo sacerdotes. Visualizamos os pés na terra que pisam, e intuímos que tem a cabeça no Céu, para cumprir suas obrigações. Digo intuímos, porque não se lhes mostra rezando a toda hora. Quando o santo tem um hábito religioso, o desafio de mostrar os pés na terra é muito maior. E aqui uma exceção notável -onde o habito é obvio, pois trata-se da reformadora do Carmelo- é a série produzia há 40 anos por TV Espanhola, sobre Teresa de Ávila. Uma mulher que sendo freira de clausura, poderia dar cursos aos CEOs em escolas de negócios! Um furação, onde o hábito de carmelita é um detalhe.

Assisti Cabrini, gostei imenso. Lembrei de Teresa de Avila porque Francesca Cabrini, sendo freira, também o hábito – a armadura como dizem as outras personagens- passa desapercebido. Assisti de novo, e decidi escrever sobre a santidade na trincheira, em que os pés na terra -na lama, no lixo- aparecem claramente. 

Uma criança  de saúde delicada -por não dizer péssima- , a última de 13 irmãos (entendia de jovens desde as próprias raízes), torna-se freira, comanda um orfanato na Lombardia , funda uma ordem religiosa focada no cuidado dos órfãos, e crianças pobres abandonadas. Seu olhar dirige-se a oriente: China, e outros países.  Solicita a permissão de Roma, mas seu pedido é negado 11 vezes. Finalmente é convocada ….para lhe negarem de novo. Ai surge a mulher forte, que roda a baiana. Enfrenta cardeais e monsenhores: “Ninguém liga para mim, porque sou mulher, É isso? Não foi Maria Madalena a que levou a notícia da Ressurreição aos apóstolos?”. A postura contundente de Francesca, capta a atenção do próprio Papa que, desmarcando os seus compromissos, decide tomar um chá com a Madre Cabrini.

Leão XIII senta para conversar com ela, abre uma caixa onde repousam cartas que relatam tragédias ao Papa. “Vou aprovar sua missão, mas já que a senhora quer conquistar o mundo, tanto faz o lugar por onde comece. Não oriente, mas ocidente, do outro lado do Atlântico, Nova Iorque onde há cadáveres de crianças italianas nas ruas”. Francesca volta para Lombardia, e dá a largada: “A partir de agora somente falaremos em inglês”.

Uma cidade próspera, onde os ricos não querem olhar para os pobres, para os imigrantes, que vivem como ratos. Abrir os olhos daqueles  que não querem ver a miséria que têm em volta. Lutar contra a indiferença. Essa é a empreitada de Cabrini, começando por Five Points, um local infecto, saturado de miséria, perpassado pela prostituição -como recurso extremo de sobrevivência-, crianças morando em esgotos, e morrendo. Como ratos.

As tentativas de cuidar estabelecidas “oficialmente” -desde o Arcebispo até encarregado,  Pe. Morelli, que já jogou a toalha- não funcionam.  Francesca assume o comando, supera as desconfianças. E, como um trator de paz, iluminando o cenário com o seu sorriso, começa a trabalhar. Freiras que se fecham no quarto de um bordel para poder passar a noite. Crianças que são um projeto de criminosos conquistadas. Prostitutas que endereçam a vida, no vácuo dessa mulher incrível, que não se poupa. Os pés na terra, afundados na lama, provocando o espanto do establishment oficial, magnificamente plasmado na frase chocante do Pe. Morelli: “Quer dizer que um órfão, disparou num cafetão, enquanto a senhora bloqueava a porta para manter dentro do orfanato a uma prostituta…..Cuidado Madre, que esse lugar vai comê-la viva”.

Busca recursos, supera dificuldades e má vontades. Conquista para sua batalha o editor do New York times que começa a incomodar a sociedade novaiorquina com suas crônicas. Convoca lideranças, filhos de imigrantes de todas as origens: poloneses, irlandeses, judeus, até italianos, embora estes últimos pouco podem contribuir. E, na busca de meios, seduz a alma do cantor de ópera –interpretado por Rolando Villazón, o famosos tenor mexicano- colocando suas crianças para dar a serenata cantando Va pensiero, o tocante coro dos peregrinos de Nabucco. Até o arcebispo -filho de imigrantes irlandeses- passa a jogar no time de Cabrini. Enfim, uma influencer tremenda, no final do século XIX.

As contrariedades não são poucas, incluídas sabotagens organizadas contra a sua empreitada. Roma receia que essa mulher está colocando as manguinhas de fora. O governo italiano faz ouvidos surdos. Mas Francesca, veste sua armadura -o hábito, do qual confesso que me esqueço enquanto vejo o filme- e entra no senado italiano por conta própria, enfrentando uma manada de homens que não querem ouvir…..mas tem que escutar os gritos da freira, e curvar-se. 

O prefeito de Nova Iorque -um John Lithgow insuportável e magnífico na performance, impossível esquecer seu papel como Churchill em The Crown– é o último bastião para esta nova Joana D’Arc conquistar. “Se não tenho o seu apoio, pelo menos exijo a sua proteção contra os criminosos”. O homem dá o braço a torcer, levanta-se, serve-se um uísque e oferece outro para Francesca, que o toma num gole elegante. “A senhora teria que ter sido homem. Poderíamos ter feito grandes coisas juntos”. Cabrini sorri: “Senhor Prefeito, homem nenhum faria o que eu fiz!”. E, sublinha: “Algum dia, um italiano sentará nessa cadeira sua; espero que não tenha de limpá-la”.

Fui checar o que já desconfiava, porque é de domínio público. Os italianos e emigrantes  na  lista de prefeitos de Nova Iorque. E lá encontro, com destaque a Fiorello La Guardia (que dá nome ao aeroporto de N. Iorque), a Rudy Giuliani. E também Michael Bloomberg, filho de emigrantes judeus, que com um salário de 1 US$ por mês, ficou 12 anos no comando, e colocou bastantes milhões do próprio bolso para melhorar a cidade. “São italianos , judeus, imigrantes. Mas são americanos”. A profecia de Cabrini cumpriu-se plenamente.

Um império de esperança, esse é o título da crónica do NYT que fecha os créditos do filme. Esse é o resumo, preciso e grandioso, da missão de Francesca Cabrini. Esse é o papel dos educadores, dos formadores, dos santos. Apontar uma luz no final do túnel, controlar o clima como diz sedutoramente  Ken Robinson, quando fala do Vale da morte que estava apenas dormindo, esperando pela chuva. Um belo modelo para a liderança que consegue extrair dos outros o seu melhor. Santidade na trincheira, abraçar o que chega, com os pés no chão, na lama, no lixo, nos desafios diários. No país da carne, sangue e mil e tantas misérias do jagunço. Na vida que é terra, e que quando se vive vira lodo, como nos diz Fernando Pessoa. E onde está a cabeça destes santos? O filme não mostra, porque está focado nos pés. Mas a pouco que paremos e reflitamos, não pode estar em outro lugar que no Céu. Do contrário a conta não fecha. E quando é preciso equilibrar o balanço, da lama da trincheira sentimos a necessidade de dirigir a cabeça para cima, e voar, subir, começando pelo nosso interior, para atingir o cume. E subir a tal altura “que conseguimos dar alcance à caça, a águia”, em palavras de João de Yepes, S. João da Cruz, que era amigo de Teresa de Avila. Um time imbatível de personagens: polivalentes, capazes de ganhar a Champions, vencer as batalhas diárias, conquistar o mundo em revolução pacífica, alegre e eficaz.

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