Stendhal: A Cartuxa de Parma

Pablo González Blasco Não categorizado Leave a Comment

Editora Globo. São Paulo, 2004. 571 págs.

Faz quase 20 anos li a obra de Henry Beyle, conhecido pelo pseudônimo de Stendhal, O Vermelho e o Negro, e devo confessar que não guardei praticamente nada. Fui consultar minhas anotações daquela época -muito mais sucintas do que os atuais comentários- e deparei-me apenas com três frases que copio ipsis litteris  A tirania da opinião – e que opinião!!- é tão estúpida nas cidadezinhas da França como nos Estados Unidos de América”.  A segunda, sugestiva da superficialidade das personagens:  “A senhora Renal tivera bastante bom-senso para logo esquecer, como absurdo, tudo o  que aprendera no convento; em troca, não pôs nada em seu lugar e acabou por não saber nada”.E na mesma toada frívola, a terceira: “Julien percebeu que a menor reflexão o irritava, longe de lhe tranquilizar; via nisso a linguagem do inferno”. Ai acabou minha relação com Stendhal, sem pena nem gloria, como se diz em linguagem popular.

Mas a leitura de um livro que me impactou sobre Madrid -as memórias de um escritor moderno que sabe encontrar as palavras adequadas para descrever as situações- provocou-me. La encontrei -em livre tradução ao português- parágrafos como os seguintes: “Perguntou-me o que eu iria fazer em Madrid e eu lhe disse que o amor da minha vida estava me esperando lá. Eu tinha acabado de ler A Cartuxa de Parma e, quatro ou cinco semanas antes, tive a fantasia de que estava desmiolado  com a primeira garota que beijei (…..) Vidas de segunda mão, homens e mulheres soltos em edições baratas (que foi onde lemos os livros que mudaram as nossas vidas, como aquele exemplar de  A Cartuxa de Parma que mudou a minha vida). Foi isso que nos interessou acima de tudo, procurando naquelas pilhas de livros velhos e de vidas maltratadas e monótonas, as obras imortais e luminosas”.

Com semelhante perspectiva -um livro que mudou a vida de um escritor que admiro- tomei nota, e coloquei  A Cartuxa na minha lista de pendências. Meses depois me aventurei com a leitura da obra. Na nota introdutória sublinhei algumas frases a modo de advertência: “Serei conhecido em 1880; serei compreendido em 1930.” A famosa frase de Stendhal realça o caráter duplamente extemporâneo de sua obra. Ao afirmar que só seria conhecido e compreendido muitas décadas depois de sua morte, Stendhal apostava na ressurreição da espontaneidade, da empolgação, da leveza de espírito, enfim, dessa energia altiva que torna suas crônicas políticas indissociáveis da conquista amorosa e do desejo de atingir a felicidade (…) Stendhal parece anacrônico: formalmente, por força de seu estilo seco, é um clássico na era do romance burguês; como anatomista das emoções individuais, é um romântico às vésperas do triunfo do realismo”.

E avancei na leitura que me resultou densa, quase plúmbea; não decolava. Ao menos dentro de mim. Pode ser -pensei- como acontece, e Borges o advertiu com acerto,  que meu ânimo nesses dias não era para acompanhar os sonhos de um idealista imaturo, Fabrício del Dongo, que parece desfilar pelo romance sem perceber onde se encontra. Um nobre mimado pela tia, desprezado pelo pai, que admira Napoleão, entra na batalha de Waterloo sem perceber, como se participasse de um videogame em 5G.

Anoto alguns parágrafos soltos, a modo de exemplo, dessa personagem desconcertante: “A carreira militar para Fabrício é a vida do esquilo movendo-se na gaiola: muito movimento sem avançar um passo (….) O ruído das minhas pistolas quase fez com que me prendessem. Aí mesmo é que a duquesa me diria, se acaso me fosse concedido tornar a ver seus belos olhos, que minha alma acha prazer em contemplar o que acontecerá dentro de dez anos, e esquece de olhar para o que se passa atualmente a meu lado (…) Esses olhares tiraram um peso de cem libras de cima do coração de Fabrício: era um desses corações de fabricação muito delicada que necessitam da amizade dos que o cercam. Era um filho segundo descontente por não ser primogênito. Um desses infelizes atormentados por sua imaginação; é com frequência o defeito das pessoas de espírito na Itália”.

E agora que junto esses espasmos confirmo a minha percepção. Uma personagem desengonçada, alguém que não sabe -como diríamos em gíria- se casa ou se compra uma bicicleta. Sendo que aqui a hesitação é maior, porque as possibilidades de com quem casar -a quem amar- oscilam em gangorra continua, não por espirito donjuanesco, mas por um idealismo patológico. E as bicicletas são o exército, os passaportes, as prisões, as fugas continuas  e por ai afora.  Nem sei porque importar-se com semelhante sujeito, pensei. Mas continuei a empreitada……

As outras personagens também não ajudaram a suscitar um mínimo entusiasmo na leitura. Arrastei-me pelas páginas, apelei para olhares em diagonal, e nada me cativava. Sublinhei alguns destaques da prosa -que imagino elegante no original – sempre para descrever questões frívolas. Valha mais uma colcha de retalhos: “Com esses franceses não é permitido dizer a verdade, quando ela lhes ofende a vaidade (…) Um dos contrastes entre o caráter italiano e o francês; este último é sem dúvida o mais feliz, desliza por sobre os acontecimentos da vida e não guarda rancor(…) — Sabe que o que me está propondo com isso é muito imoral? — disse a condessa. — Não é mais imoral do que o que se faz na nossa corte e em vinte outras. O poder absoluto tem isso de cômodo que tudo santifica aos olhos dos povos; ora, que é um ridículo que ninguém vê? (…) Esse cônego tinha muito espírito; compareceu sem hesitar ao encontro marcado: patenteou uma bondade completa e uma franqueza sem reservas que não se encontram a não ser nos países em que a vaidade não domina todos os sentimentos”.

E outra, um mosaico que revela a mediocridade: “Que sei eu a mais a respeito de um cavalo depois que me ensinaram que em latim ele se chama Equus? (…) Ele jamais tivera talento para negócios, e catorze anos passados no campo, entre seus lacaios, seu notário e seu médico, somados ao mau humor da velhice que sobreviera, tinham feito dele um homem de uma incapacidade completa (…) Por mais cuidado que eu tome, é sobretudo meu olhar que deve estar velho em mim! Minha alegria não se aproxima sempre da ironia? (….) Aqui temos um homem de espírito que nos chega de Nápoles, e eu não gosto dessa gentinha; um homem de espírito, por mais que marche dentro dos melhores princípios e que esteja de boa-fé, sempre por qualquer lado é primo-irmão de Voltaire e de Rousseau (…) Lembra-te de que uma proclamação, um capricho do coração precipita o homem entusiasta no partido contrário àquele a que serviu durante a vida toda! (…) Todos aqui roubam; e como não roubar num país onde a gratidão pelos maiores serviços não chega a durar um mês”.

Duquesas, condes, marquesas, e toda uma fauna curiosa povoam o romance de Stendhal, como satélites em volta de um Fabrício perdido como cego em tiroteio. Um tiroteio onde não há nem mortos nem feridos. Apenas possibilidades que esgotam o leitor. Agora que releio os sublinhados que fiz  ao longo da leitura -para tentar costurar alguma lógica- percebo que a maioria são fios soltos, não há como tecer algo substancial. Opto por descartá-los por longos e cansativos, gratuitos, não enriquecem o argumento.

Uma luz parece brilhar na figura de Clélia Conti, outro dos amores platónicos de Fabricio. “Tinha cabelos louro-cinza, que se destacavam suavemente sobre suas faces de um colorido fino, mas de modo geral um pouco pálido demais. Só a forma da fronte poderia ter revelado a um observador meticuloso que aquele ar tão nobre, aqueles ademanes tão acima das graças comuns, eram devidos a uma profunda incúria por tudo que é vulgar. Era aparência e não a impossibilidade de interesse por alguma coisa”.

Mas o desenrolar desta relação, Fabrício preso na torre de Parma e Clélia deixando-se ver, é idealismo patológico bilateral, tedioso, esgotador. Outro mosaico de espasmos :  “Clélia vinha duas ou três vezes por dia ver seus pássaros, algumas vezes por alguns momentos: se Fabrício não a amasse tanto, teria percebido que era amado; mas a esse respeito tinha dúvidas mortais. Clélia mandara colocar um piano no viveiro. Enquanto tocava nas teclas para que o som do instrumento pudesse revelar sua presença e ocupasse as sentinelas que passeavam sob as suas janelas, com os olhos respondia às interrogações de Fabrício. Sobre um único assunto ela nunca dava resposta, e mesmo, nas grandes circunstâncias, fugia, e por vezes desaparecia durante um dia inteiro; era quando os sinais de Fabrício indicavam sentimentos cuja confissão dificilmente podia deixar de ser compreendida. Sobre esse ponto era inexorável (….) Assim, embora estreitamente apertado numa pequena gaiola, Fabrício tinha uma vida muito atarefada: toda ela estava ocupada em buscar a solução deste problema tão importante: “Ela me ama?”. O resultado de milhares de observações continuamente renovadas, mas também continuamente postas em dúvida, era este: “Todos os seus gestos voluntários dizem não, mas o que é involuntário no movimento de seus olhos parece confessar que ela tem afeição por mim” (….) Fabrício esperava que os olhos de Clélia vissem essa carta, e seu rosto estava banhado em lágrimas enquanto escrevia. Terminou-a por uma frase bastante graciosa: atrevia-se a dizer que, achando-se em liberdade, acontecia-lhe muitas vezes ter saudades de seu pequeno quarto da torre Farnese. Era esse o pensamento capital de sua carta; esperava que Clélia o compreendesse”.

Encerro estes comentários -que sempre me proponho fazer, uma questão de honra, uma advertência para mim mesmo (talvez para outros), um justificar o investimento do tempo de leitura- , também cansado. E copio dois parágrafos que resumem a minha percepção deste clássico que, confesso, não consegui visualizar. Diz a duquesa-tia do protagonista: “Juro-lhe perante Deus, e pela vida de Fabrício, que jamais entre mim e ele se passou a mínima coisa que não pudesse ser vista por um terceiro. Não lhe direi tampouco que o amo exatamente como o faria uma irmã; amo-o por instinto, se assim posso dizer. Amo nele sua coragem tão simples e tão perfeita, que, pode dizer-se, ele próprio ignora”. E outro, um espasmo de Fabrício: “Devo uma gratidão eterna ao conde e à duquesa; eles acreditarão, talvez, que eu tive medo, mas não fugirei. Algum dia alguém evadiu-se de um lugar onde está no cúmulo de felicidade, para ir atirar-se num exílio horrível onde terá falta de tudo, mesmo de ar para respirar? Que farei depois de estar um mês em Florença? Envergarei um disfarce para vir rondar junto à porta desta fortaleza, e tentar colher um olhar!”.

Confesso que nesta altura dos comentários pergunto-me, mais de uma vez, como este livro mudou a vida de um escritor que considero em alta estima. E também como rendeu tantos comentários dos críticos. Vai ver -pensei- que tem a ver com a idade em que se enfrenta semelhante obra, na juventude, no rebelde sem causa, na síndrome de um James Dean do século passado. E, por um momento, percebi, que talvez a minha incompreensão das novas gerações é por não entender que há muitos mais Fabrícios del Dongo por ai, do que eu suspeitava. Nas redes sociais, no dia a dia, nas hesitações por absoluta falta de propósito. Por isso, deixei para o final uma frase que me parece consistente: “Se a vida cessasse de ser uma busca, ela não seria mais nada”. Consistente para explicar, embora nada resolve. E enquanto permanecemos nessa hesitação, toma sentido o fecho de ouro que, esse sim, resume todas minhas percepções. Diz Stendhal: “O gênero de infelicidade que um amor contrariado implanta na alma faz com que todas as coisas que exigem atenção e ação se tornem uma tarefa maçante”. Neste ponto, concordo completamente.

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