Jurado n. 2: Um mergulho provocativo na consciência. Na de cada um de nós!
Juror #2. Diretor: Clint Eastwood. Nicholas Hoult, Toni Collette, J.K. Simmons, Amy Aquino, Chris Messina, , Zoey Deutch, , Kiefer Sutherland, Leslie Bibb, Gabriel Basso. USA 2024. 114 min.
Clint Eastwood, com 94 anos, já transitou em muitos mundos. Cada vez mais humanos, mais densos. Um homem dessa idade, tem claras as suas prioridades e vai àquilo que realmente importa. O resto é descartável. E as prioridades deste que diz ser o seu último filme -isso nunca se sabe, mas a prudência lhe sugere sublinhar deste modo- é a consciência. Isso é o filme. Um passeio pelas consciências, de todas e cada uma das personagens. Um diálogo com a consciência de cada um . O policial, que é membro do Juri. O advogado de defesa. A promotora pública. O jurado número 2. E os coadjuvantes também. E quando sai de um diálogo com a consciência de um, passa para a consciência do outro. E obviamente, acaba entrando na consciência do expectador. Um filme superior, provocativo, impactante. Um filme necessário.
Gostei muito, não tanto pelo impacto fílmico -por chamá-lo de algum modo- mas pela densidade de conteúdo. E pelos desdobramentos, processo natural em qualquer filme que te faz pensar e, neste caso, te mergulha nos diálogos com a tua própria consciência. É bom esclarecer isto, porque é a grande pegada do filme. Quem quiser assistir um filme isento, digamos, asséptico -daqueles que não te contaminam- certamente este não é uma boa opção. Agarra, sacode, mexe com o teu interior, transforma.
Nesse mergulho na própria consciência foram muitas as coisas que vieram à mente. Tantas que é preciso sentar e ordenar. Esse é o propósito destas linhas. E o primeiro que saltou na minha memória foi o Cardeal Newman, e o seu brinde famoso. Um dos biógrafos do humanista inglês recolhe o comentário dele: “Se fosse obrigado a trazer um assunto de religião para um brinde após o jantar –coisa que nem sempre me parece conveniente- brindaria pelo Papa, se assim o desejam os comensais; mas, antes que pelo Papa brindaria pela consciência”.
Dito assim, sem mais, poderia ser mal interpretado, algo como cada um faz o que bem entende, e nada a se preocupar. Mas não era esse o sentir da consciência em Newman, como bem explica Bento XVI quando viajou a Inglaterra para Beatificar Newman pessoalmente. Esse foi um fato noticiado parcamente pela imprensa, se pensarmos na dimensão histórica da visita de um Papa a Inglaterra, de modo oficial, após quase 500 anos de ausência de diálogo.
Diz o Papa em discurso naquelas datas (2010): “Em Newman, a forma motriz que impelia pelo caminho da conversão era a consciência. Com isto, porém, que se entende? No pensamento moderno, a palavra «consciência» significa que, em matéria de moral e de religião, a dimensão subjetiva, o indivíduo, constitui a última instância de decisão (…) A concepção que Newman tem da consciência é diametralmente oposta. Para ele, consciência significa a capacidade de verdade do homem: a capacidade de reconhecer, precisamente nos âmbitos decisivos da sua existência – religião e moral –, uma verdade, a verdade. E, com isto, a consciência, a capacidade do homem de reconhecer a verdade, impõe-lhe, ao mesmo tempo, o dever de se encaminhar para a verdade, procurá-la e submeter-se a ela onde quer que a encontre. Consciência é capacidade de verdade e obediência à verdade, que se mostra ao homem que procura de coração aberto”.
E para não deixar fios soltos, o famoso brinde de Newman entra também na pauta de Bento XVI: “Para poder afirmar a identidade entre o conceito que Newman tinha da consciência e a noção subjetiva moderna da consciência, comprazem-se em fazer referência à sua palavra, segundo a qual ele – no caso de ter de fazer um brinde – teria brindado primeiro à consciência e depois ao Papa. Mas, nesta afirmação, consciência não significa a obrigatoriedade última da intuição subjetiva; é a expressão da acessibilidade e da força vinculadora da verdade: nisto se funda o seu primado. Ao Papa pode ser dedicado o segundo brinde, porque a sua missão é exigir a obediência à verdade”.
Conhecendo Newman através de outras biografias que também tive oportunidade de ler, entende-se o porquê dessa viagem de Bento XVI à Inglaterra e a sintonia imensa que o Professor Ratzinger tinha com o seu colega cardeal inglês. Dois interlocutores de um nível que o mundo de hoje dificilmente alcança, embora possa e deva aprender muito de ambos.
Mas, enquanto escrevo estas linhas -recordações esparsas nos meus arquivos, porque muito me impactaram no seu dia- penso que a distância com o quotidiano de hoje é talvez imensa, e dificilmente o filme evocaria o brinde de Newman ou mesmo os comentários de Ratzinger. Por isso, passeio pelas minhas anotações onde tropeço com temas sugestivos, e muito atuais, que dizem relação ao diálogo com a consciência própria.
Susanna Tamaro, naquela obra inesquecível Va aonde seu coração mandar, da uma pista magnífica que exige reflexão. Anota a escritora italiana: “O único mestre existente, o único verdadeiro mestre de confiança, é a nossa consciência. Para encontrá-la, precisamos ficar em silêncio -sozinhos e em silêncio- precisamos estar nus na terra nua, sem nada em volta, como si já tivéssemos morrido. No começo, nada percebemos senão o medo, mas então lá no fundo, passamos a ouvir uma voz longínqua, uma voz tranquila que de saída pode mesmo chegar a irritar com sua banalidade”. Silêncio, quietude, calma, serenidade. Condições para dialogar com a consciência frutuosamente.
É talvez este um ponto que explica a epidémica falta de conhecimento próprio, fruto da falta de frequentar o diálogo com a consciência: a ausência de silêncio. O medo, verdadeiro pavor, ao silêncio. Já dizia Pascal que muitos dos males do mundo procedem da incapacidade do homem recolher-se no seu quarto em silêncio, e pensar calmamente. Não apalpamos silêncio em nenhuma circunstância, nem envolvendo ninguém, nem a nós mesmos. Não apenas o barulho exterior, mas o que nós mesmos provocamos: desde a continua música no carro, a TV ligada quando chegamos em casa a modo de aconchego, até o surdo barulho interior que nos proporcionamos pela continua interação com mensagens, redes sociais, e todas as variações sobre o mesmo tema. Somos incapazes de estar “saudavelmente desligados”, desfrutando do silêncio. Obviamente o diálogo com a consciência não tem vez nesse cenário.
Um autor que frequento, comenta em outra das suas obras (La Sociedad Invisible) um aspecto que cito habitualmente nas minhas aulas e conferências. Diz assim: “Do mesmo modo que o barulho atrapalha a comunicação, a profusão de imagens pode mascarar a realidade. Nosso grande inimigo não é o segredo mas a banalidade. As incertezas não se compensam com o excesso de informação. Estamos informados muito além do nosso espaço de ação. Nunca soubemos tanto mas o acúmulo de dados de nada serve se não é articulado com sabedoria”. Esse é o grande tema: o excesso de informação, numa tentativa frustrada de organizar as próprias prioridades, provocando um barulho que desorienta. As muitas árvores que impedem ver o bosque. Falamos amplamente deste tópico, neste espaço, em recente comentário de outro livro magnífico, A geração ansiosa.
O diálogo silencioso conosco mesmo, frequentando a própria consciência, a capacidade de pensar -em palavras de Hannah Arendt – é o que nos impede de cair naquilo que a pensadora alemã denomina a banalidade do mal: o mal perpetrado por pessoas normais (não demônios malignos) que simplesmente pararam de pensar, de frequentar o diálogo com sua consciência. O tema dá pano para manga.
E no silencio, enquanto frequentamos nossa consciência, também Deus se torna de algum modo presente. É o que afirma o Cardeal Sarah na sua obra A Força do Silêncio, onde também cita a Newman: “Quanto mais perto estamos do Espírito Santo, mais silenciosos ficamos; e, quanto mais nos afastamos Dele, mais charlatães”. Sem deixar de apontar que o silêncio, junto com essa dimensão transcendente, é também necessário para funcionar na vida, já que “o silêncio da escuta é atenção, é dom de si e sinal de elegância moral”.
Quem sabe desfrutar do silêncio e do diálogo com a consciência, também aprende a escutar os outros, e se envolve com generosidade. Novamente Susanna Tamaro sublinha o tema na obra citada. Escreve a italiana nos diálogos da avó com a neta rebelde: “Por trás da máscara da liberdade, esconde-se amiúde o descuido, o desejo de não nos envolver-nos. A fronteira é extremamente sutil, superá-la ou não é questão de momento, de uma decisão que tomamos na hora ou não tomamos nunca; e só percebemos sua importância depois do momento já ter passado. E só então podemos nos arrepender, só então percebemos que naquela hora não devia haver liberdade, mas intrusão: estávamos lá, tínhamos consciência, dessa consciência devia ter nascido a obrigação de agir. O amor não combina com os preguiçosos; para existir na sua plenitude muitas vezes exige gestos decididos e fortes. Está entendendo? Eu disfarçara minha covardia e indolência dando-lhes o nome de liberdade”.
Não é fácil este mergulho na própria consciência. A viagem é árdua, porque os obstáculos -desde a falta de silencio, até a desatenção- são lombadas a superar. E também porque distanciar-se sistematicamente desse diálogo, gera hábitos nocivos que se convertem em verdadeiras barreiras para a reflexão. Disso fala Bernanos, na sua conhecida obra, Diário de um Pároco de Aldeia quando aponta essa “lenta cristalização em torno da consciência de insignificantes mentiras, de subterfúgios, de equívocos (…) Com o hábito e com o tempo até os menos subtis acabam por criar uma linguagem própria, que se mantém extraordinariamente abstrata. Não esconde grande coisa, mas a sua manhosa franqueza parece-se com estes vidros despolidos que não deixam passar senão uma luz difusa em que os nossos olhos não distinguem nada”. São as meias-verdades, o vidro fosco que mal mostra os contornos, uma legítima média com o engano. Por tudo isso -e por muito mais, cada um fale por si- o filme de Clint Eastwood pode ser uma verdadeira catarse. Um desafio a percorrer, para nesse mergulho pessoal ser capaz de unir-se ao brinde do Cardeal Newman, em busca da verdade que se esconde dentro de cada um de nós.