José Morales. “Newman (1801-1890)”

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José Morales. “Newman (1801-1890)”. Rialp. Madrid. 2010. 470 pgs.

     Agora sim encontro e desfruto com uma biografia formidável do Cardeal Newman. Há um par de anos, aventurei-me com o que pensei ser uma biografia, e resultou um mergulho enciclopédico na consciência deste fascinante personagem. A informação era muita, mas se perdia o fio cronológico. Agora, após ler este livro, seria o momento adequado para voltar sobre o anterior.

     O próprio Newman apontava que uma biografia deveria refletir adequadamente a unidade moral, identidade, crescimento harmônico e personalidade inteira do biografado. Devia conter e conjugar luzes e sombras, com a finalidade de evitar tanto a degradação como o elogio inútil. E, sobre tudo, incluir as cartas e os escritos como ingredientes essenciais. Tudo isto se consegue nesta biografia, muito bem trabalhada, pois a inclusão de citações textuais de Newman –em cartas e obras- ilustra a trajetória biográfica da personagem. No final, fecha-se o livro com o convencimento real de que chegamos a conhecer, com razoável profundidade, a personalidade do Cardeal Inglês.

     Um dos grandes ensinamentos em relação a esta vida singular é que a conversão não foi um fato isolado, a mudança de Igreja anglicana para a católica, quando contava com 45 anos de idade. Foi todo um processo de aprofundamento sério na busca da verdade e da perfeição pessoal, da união com Deus. Ainda adolescente, John Henry Newman, era critico e reflexivo, encontrava débil o cumprimento dos seus deveres para com Deus. E com 15 anos toma a decisão de comportar-se como um verdadeiro cristão, como um cristão sério. Adivinhava-se já um dos traços marcantes da sua personalidade: um homem que não sabe fazer nada pela metade.

     O amor pela educação universitária como instrumento de formação integral do homem em busca da verdade foi também uma caraterística permanente deste grande intelectual. Primeiro como aluno, depois como professor e Fellow no Oriel College de Oxford, Newman acumula funções acadêmicas, e ainda encontra tempo, energias e meios econômicos para atender as necessidades familiares. O pai tinha falecido e a família ficava então a cargo dele, filho primogênito. Deve se dizer que mesmo existindo em Oxford um sistema de tutorias, a relação do tutor com o aluno era distante, rotineira e ineficaz. Newman concebe e põe em prática uma relação tutor-aluno mais estreita, onde o tutor se faria responsável da formação e instrução completa dos estudantes que lhe tinham sido encomendados. Isso despertou alvoroços dos que confiavam no sistema tradicional que, mesmo não sendo eficaz, poupava esforços e dedicação do professorado. A talha intelectual de Newman e o seu compromisso na formação dos universitários desde muito jovem era o anuncio da sua enorme capacidade docente e também mais um motivo que levantaria críticas e comentários nos ambientes saturados de mediocridade.

     Com pouco mais de 30 anos, o professor Newman, já ordenado sacerdote, sente o chamado a sanear a Igreja Anglicana que considera contaminada com posturas protestantes e evangélicas, que primam pela ação mais do que pela ortodoxia de doutrina. A Igreja Anglicana padece de languidez, é dominada por uma religiosidade formal e muitas vezes vazia, servida por um clero com frequência tíbio e ausente, que arrasta as almas para uma vida insulsa e insegura. “Pensam que o bem-estar em religião consiste em que todas as questões permaneçam abertas e em que não se exija de ninguém uma determinada conduta”. Faltavam-lhe à Igreja de Inglaterra argumentos para resistir, ou melhor, incorporar, as novas ideias que a sociedade lhe propunha, além de que exercia um injusto monopólio sobre as consciências com a ajuda da lei.

     Newman, junto com outros acadêmicos amigos –lembremos que Oxford era a cidade sagrada do Anglicanismo- inicia o denominado Movimento de Oxford, na década de 30 do século XIX. O movimento busca renovar a Igreja Anglicana, abordar o tema da sucessão apostólica – a autenticidade como Igreja- a independência do poder civil, o caráter sagrado e hierárquico do ministério pastoral. A renovação deveria tomar mais a figura de uma restauração, do que de uma reforma. “O princípio do Movimento de Oxford foi que a Igreja devia disfrutar de um completo poder sobre o seu credo, sua liturgia e seu ensino, com independência do poder civil”. E foi no Movimento de Oxford, na busca sincera pela verdade para restaura a Igreja de Inglaterra, onde Newman encontra o caminho que leva à conclusão de que é a Igreja Romana a que tem o predicado da sucessão apostólica, a Igreja verdadeira, sendo o Anglicanismo um desvio do tronco principal.

     Deparamo-nos com um Newman incansável nos estudos, na investigação e na oração, pois não basta a perspectiva intelectual para alcançar a verdade. “Quando pessoas presunçosas falam de questões religiosas, comportam-se como cegos falando de cores. O saber humano, que é poderoso quando vá unido a uma fé pura e humilde, de nada serve quando se opõe a ela, e resulta de muito pouco valor para ajudar ao cristão”. E deixa bem claro nas suas obras, repetidamente, que as dificuldades que o homem encontra para receber a fé, não são tanto de natureza intelectual, mas de caráter ético. Não é um problema de objeções, mas de disposições. “Considero que os conhecimentos científicos, sendo excelentes e nobres, dignos de um lugar na educação e fecundos em benefícios temporais, não são nem podem ser instrumento de formação ética. (..) O conhecimento ocupa a inteligência mas não a forma; a apreensão do invisível é o único principio conhecido capaz de vencer o mal moral, educar à multidão, e organizar a sociedade”. Por isso pensava que muitos dos seus sermões da época anglicana, tinham conduzido os não conformistas e protestantes para o anglicanismo “católico”, assim como posteriormente conduziram muitos anglicanos para a igreja Romana.

     A conversão de John Henry Newman, com 45 anos de idade, é um processo lento, meditado, que acompanha a maturidade interior. Ele mesmo não deixa de lembrar aos outros e a si mesmo que uma mudança de religião não deve ser pensamento de um dia: requer anos de oração e de preparação. É preciso evitar passos desesperados. Os amigos anglicanos – que continuariam sendo amigos e admirando-o até o final da vida- esboçam uma reação singular. Assim escreve Pusey, um dos mais íntimos amigos de Newman: “Foi-se, como todos os instrumentos de Deus, inconsciente da sua grandeza. Foi-se por um simples ato de dever, sem pensar em si mesmo, abandonando-se em mãos do Altíssimo. Assim são os homens em quem Deus se apoia. Não podemos dizer que nos deixou, mas que foi transplantado para outra parte da vinha, onde poderá usar as energias da sua poderosa mente”. Newman descreve todo este processo na sua famosa “Apologia pro Vita Sua”, (1864), uma obra definitiva que até os anglicanos, não só os amigos, reconheceram tratar-se de um escrito singular, que a ninguém maltratava: “Havia em suas páginas calor no lugar de gelo, generosidade ao invés de mesquinhez de espírito, afeto onde se poderia esperar desprezo”.

     Recebido na Igreja Romana, ordenado sacerdote, funda uma comunidade seguindo os moldes do Oratório de S. Felipe Neri. Entende que um oratoriano é um retrato intelectual de um Fellow de Oxford, de um gentleman inglês. Representava-lhe, dentro da Igreja Católica, o mais semelhante a um college de Oxford, com seus fellows de vida célibe, seu cultivo do intelecto, e com uma intensa e abnegada atividade pastoral. O objetivo era a atividade apostólica dirigida a pessoas com formação intelectual mais ou menos elevada: thinking classes. Esse era o objetivo do Oratório inglês, tal como Newman o concebeu e a Santa Sé o aprovou.

     O empenho na formação intelectual da sociedade, agora dos católicos, permanece presente em Newman. No projeto da Universidade Católica de Irlanda, que a hierarquia católica lhe confia, Newman propõe envolver gente de nome e prestígio, mesmo tratando-se de leigos conversos do anglicanismo. Naturalmente isso desperta a desconfiança da própria hierarquia que sente perderá o controle. E Newman, que tinha declinado a possibilidade de ser ordenado bispo com funções pastorais, neste momento deixa claro que aceitaria sê-lo, para falar de igual para igual com o resto do episcopado e alavancar o projeto de Universidade Católica. No final, mesmo com a melhor das intenções de garantir a ortodoxia de doutrina, o episcopado inglês e irlandês acaba por anular o projeto de Newman. Queriam, os bispos irlandeses, assegurar o controle da Universidade na própria mão. Newman queria confiar a leigos importantes responsabilidades e tarefas na administração da Universidade. No fundo, ninguém queria entregar a Newman o controla da instituição nem aceitar todos os seus desejos para administrá-la.

     Surge o Oratory School, um colégio desenvolvido desde o Oratório de Birmingham, com a proposta de proporcionar uma educação de nível análogo às mais prestigiosas public school ingleses. A meta era preparar cristãos que teriam de desenvolver suas atividades no meio de uma sociedade que olhava com indiferença e hostilidade as crenças, os valores e comportamento dos católicos. Queria transmitir um saber profundo e competente impregnado de uma coerente visão cristã da existência.

     Na sua paixão por educar, percebe-se em Newman um pioneiro na Teologia dos Leigos “Desejo os leigos não arrogantes nem precipitados no falar, sem discutir, mas feitos de homens que conhecem sua religião, que souberam penetrar nela, que sabem onde estão o que professam e o que não professam, que conhecem tão bem o seu credo que são capazes de dar razão dele e que possuem suficiente conhecimento da historia para defendê-lo. Desejo uns leigos cultos, bem instruídos. Que aumentem o seu conhecimento, que cultivem a razão, e que percebam as relações de uma verdade com outra, vendo as coisas tal como são e compreendendo como se relacionam a razão e a fé” Newman oferece uma visão dos leigos e de suas tarefas de uma perspectiva não clerical: “Não penso que uma verdadeira vocação cristã possa ser destruída pelo simples contato com o mundo, em se tratando de um contato natural e necessário”. Mas, naturalmente, poucos lhe entendiam. Faltavam quase 150 anos para o Concílio Vaticano II onde todas estas ideias teriam sua aceitação institucional.

     Busca da verdade, paixão por educar, perspectiva dos leigos vivendo a sua fé no seio da sociedade. Traços característicos da personalidade e dos ensinamentos do Cardeal Newman, ao qual devemos acrescentar outra característica marcante: o seu amor pela Inglaterra, por tudo o que era inglês. Newman era inglês até o último fio de cabelo, e tinha percebido cada vez melhor o estilo particular de um modo católico de ser que procurava harmonizar a idiossincrasia do caráter britânico e os valores universais incarnados por Roma. Também este predicado lhe rendeu críticas e suscitou receios no mesmo coração do Catolicismo. A anglofilia de Newman é inseparável do seu amor profundo por Oxford, até o ponto de que quase cede a uma nova tentativa da hierarquia católica para fundar um college católico em Oxford. Mas ele sabe que isso não irá para frente. Os católicos terão de se conservar e progredir no meio da educação anglicana tradicional de Oxford que, nessa altura, tinha retirado a proibição de estudarem lá (já não era mais necessário uma adesão formal às teses anglicanas, como anteriormente, o que impedia a entrada dos católicos que deveriam abdicar da sua fé).

     O caráter de Newman tinha muito de solitário. Com extraordinária capacidade para a amizade não era pessoa muito sociável. Visitado por centenas de pessoas não era um homem para a multidão. Estava convencido de que a existência mais verdadeira devia conduzir-se em solidão. Era um homem para os seus íntimos e para os seus amigos. Tudo isto tem muito a ver com a sua altura intelectual, e a profundidade do seu espírito. Sobressaia tanto entre os que lhe rodeavam que não podia senão viver uma vida isolada dos demais. Homem ordenado, trabalhador incansável, copiava as cartas que redigia, ou pelo menos, ficava com um resumo. E as ordenava sempre, pois sabia que é nas cartas onde se conhece a personalidade e o pensamento de um homem.

     Reservado, solitário, mas afável. A descrição da visita que faz a Faber, seu colaborador e depois dissidente que fundou o Oratório de Londres, é impressionante. Foi visita-lo no leito de morte e o tratou com um carinho que uma mãe não seria capaz de superar. Severo quando necessário também era um grande perdoador.

     Com 78 anos é criado Cardeal da Igreja Católica. Escolhe como lema do seu escudo a frase “Cor ad cor loquitur“. Uma frase que nos fala do Coração de Deus que nos entende (dois seres absolutamente evidentes: eu mesmo e o meu Criador). Mas também fala do coração ao qual se tem de falar os homens, da concórdia, desse coração junto ao coração. “As pessoas nos influenciam, há vozes que nos suavizam, olhares que nos prendem, ações que nos inflamam”.

     O Cardeal John Henry Newman foi beatificado recentemente pelo Papa Bento XVI. Lendo esta biografia não é de estranhar a simpatia do Professor Ratzinger por este enorme intelectual do século XIX: um professor universitário, um educador, e, para a Igreja Católica um santo. Para todos os ingleses, independente de credo, uma figura nacional, um orgulho britânico. Penso que para todos os que estamos envolvidos na educação humanista é um exemplo a seguir e a imitar na sua incansável busca pela verdade e no compromisso, medular, na educação personalizada –corpo a corpo, face to face– para construir uma sociedade melhor.

Comments 4

  1. Pingback: Ian Ker: John Henry Newman. Una Biografía. | Pablo González Blasco

  2. Grande Pablo! História semelhante à de Ronald Knox, algumas décadas depois. Muito diferente da (mas também muito parecida com a) vida de André Frossard e Santo Agostinho. Em todos os casos de conversão: humildade (para abdicar do pensamento próprio, das tradições familiares e sociais) e busca sincera da verdade.
    Ricardo Santana, de Florianópolis.

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