Dietrich von Hildebrand: O Coração

Pablo González BlascoLivros Leave a Comment

Cultor de Livros, S. Paulo, 2024. 199 págs.

Algum tempo atras anotei que a recente Encíclica do Papa Francisco, Dilexit-nos, dedica uma primeira parte para falar do coração humano, o que me levou a comentar um livro também lá citado, O universo religioso de Dostoievsky. Mas o tema do coração dá para muito, e revela-se particularmente importante nos dias de hoje. Dai prosseguir o estudo com esta obra clássica do pensador alemão, que enfrenta o assunto com audácia. Vale lembrar que se trata de um pensador católico, e escreve, em primeiro lugar para os que professam sua fé. Dai a defesa aberta e valente da importância do coração e da afetividade, tema que nem sempre foi contemplado pelos teólogos e filósofos católicos. Um belo complemento, no vácuo dos pensamentos do Papa Francisco.

Logo no início, Von Hildebrand adverte: “Por muitos anos, o tema das emoções, e o lado afetivo da natureza humana em geral, foi ou negligenciado pelos filósofos ou tratado superficialmente dentro do espectro de uma psicologia moral empirista que colocava os sentimentos na esfera do desejo subjetivo. Nem sempre foi assim. Se na Antiguidade razão e paixão eram contrapostas, já em Tomás de Aquino passa a existir um grau de reconhecimento e normatividade das respostas emocionais. Mesmo na filosofia de Aristóteles onde se diz na Ética a Nicómaco que ‘o homem bom não só quer o bem, mas também se regozija quando o realiza’, o coração tem um lugar rebaixado e desvalorizado”.

E continua destacando a importância da afetividade: “Uma felicidade somente pensada ou desejada (razão e vontade em ação) não é felicidade. A felicidade se torna uma palavra sem significado se a separamos do sentimento, única forma de experiência na qual pode ser vivida conscientemente”. E a seguir esclarece que “uma das razões para desvalorizar o âmbito afeito -para recusar em reconhecer ao coração uma posição análoga ao intelecto e à vontade- é identificar a afetividade com os tipos mais baixos de experiência afetiva. Consequentemente, o que se nega aos sentimentos corporais, estados emocionais ou paixões , acaba se negando também, de modo errado e injusto, a experiências afetivas como a alegria , o amor profundo, o entusiasmo nobre (….) A variedade de experiências dentro do âmbito afetivo é tão grande que seria desastroso encará-lo como algo homogêneo”.  

Talvez a principal razão para o descrédito no qual se mantém o âmbito afetivo seja encontrada na caricatura de afetividade que se faz quando uma resposta afetiva é separada do objeto que a motiva. Esse é o ponto central desta reflexão. Anota o pensador: “Tomar o entusiasmo, a alegria ou o pesar como coisas que têm significado em si, prescindindo do objeto que as provoca teremos falsificado a própria natureza desses sentimentos. Para serem valorizados,  os sentimentos têm de se contemplar o objeto que os origina, a sua raison d’etre (razão de ser). Um sentimento desvinculado do objeto que o provoca é como uma gesticulação no vazio (…) Essa desvinculação pode se originar na própria pessoa, numa falsificação retórica, presidida pelo orgulho e pelo sentimentalismo. É o próprio sujeito quem não olha para os motivos da suas reações afetivas, e se deixa governar pelo sentimento em si. A disposição de nos deixarmos comover esta indissoluvelmente conectada com uma percepção completa e profunda de certos valores. Essa desconexão -cegueira sentimental- não pode ser motivo para que se condene a afetividade como um todo”.

Nessa apologia da afetividade, como elemento integrante necessário do ser humano, Von Hildebrand sabe separar a afetividade dos espasmos emotivos, que são muitas vezes cegos, carentes de sentido e de objeto. Assim diz: “Rotular a afetividade intensa de sentimental é equivocado. A antítese ao sentimentalismo não é uma indiferença neutra, um engessamento, mas o sentimento genuíno do coração nobre e profundo. Desconfiar da afetividade porque às vezes é tomada nesse sentido equivocado, seria como desconfiar do intelecto por conta das muitas incoerências que também já vimos nesse âmbito. Fazer a apologia do intelecto não cultivado -uma douta ignorância- para se proteger dos desvios da razão, é tão absurdo como condenar a afetividade por conta dos abusos sentimentais (…) Tem-se medo de qualquer afetividade intensa, mesmo nobre, por ela ter o caráter de uma aventura. ….É um grave erro acreditar que o perigo de uma transição súbita ou do envenenamento repentino de algo obre se restrinja à área da afetividade Nada há no homem que não possa ser envenenado. Não existem perigos análogos no domínio do intelecto?”.

Feito esse esclarecimento -existem desvios no intelecto e na vontade e nem por isso desconfiamos da sua importância- prossegue com a integração necessária desses componentes: “No homem existe uma tríade de núcleos espirituais -intelecto, vontade e coração- que se ordenam para cooperar e fecundar um ao outro. A afetividade é uma grande realidade na vida do homem, que não pode se subordinar ao intelecto ou à vontade. Na literatura e na linguagem cotidiana, o termo “coração” refere-se ao centro dessa afetividade. Coração significa o ponto focal do âmbito afetivo, aquilo que é afetado de modo mais crucial se comparado a todo o restante(…) Os sentimentos e necessidades corporais no homem não são experiências espirituais, mas definitivamente são experiências pessoais. Ainda que alguns processos fisiológicos sejam homólogos,  na vida consciente do homem tudo é radicalmente diferente ao ser inserido no mundo misteriosamente profundo da pessoa  aso ser vivido e experimentado por essa única e mesma identidade”.

Também pontua a diferença entre afetividade, estados psíquicos, paixões, outro esclarecimento necessário: “Os estados psíquicos são causados, seja por processos corporais ou psíquicos, enquanto as respostas afetivas são motivadas. Nunca chegam por casualidade mas apenas por motivação. A alegria verdadeira necessariamente implica não apenas a consciência de um objeto com o qual nos alegramos, mas também a consciência de que é esse objeto a razão dessa alegria. É preciso distinguir a radical diferença entre paixões e experiências afetivas motivadas por bens dotados de valores”. Parece-me que aqui está outro núcleo importantíssimo: a afetividade, boa, sadia, necessária é sempre motivada, tem uma causa identificável. Não é uma alegria fisiológica, simples bem estar, mas algo que toma conta do ser humano, e o eleva. Enquanto escrevo estas linhas vem à minha mente o dueto na ópera de Carlos Gomes,Il Guarani, quando Peri canta: Sento una forza indómita…..(min. 38 aprox..)

Também no âmbito espiritual a afetividade é necessária, o que nem sempre se teve em consideração, como explica o autor: “Mesmo no campo das devoções religiosas não se sabe navegar corretamente no tema da afetividade. Ao invés de procurar a solução numa afetividade genuína, acaba-se no seu banimento completo, porque se vê em toda ênfase dada ao amor, à comoção, aos anseios, um subjetivismo mesquinho que precisa ser combatido em nome de uma saudável sobriedade e do espirito objetivo”. E acrescenta: “A afetividade terna se manifesta no amor em todas as suas categorias: amor filial e paternal, amizade, amor entre irmãos, amor conjugal e amor ao próximo. Mostra-se no comover-se, no entusiasmo, na tristeza autentica e profunda, na gratidão, nas lágrimas de grata alegria, na contrição. É o tipo de afetividade que inclui a capacidade de uma entrega nobre, que envolve o coração”. Ocorre-me pensar que, talvez por isso, um humanista/teólogo imenso, um santo, como John Henry Newman, colocou no seu escudo a divisa: Cor ad cor loquitur, O Coração fala ao coração!!!

A timidez seletiva, que leva a esconder a afetividade, é também outro tópico abordado: “Algumas pessoas são incapazes de mostrar sus sentimentos ou têm vergonha deles, e os escondem atrás de uma aparente indiferença. É a afetividade terna o que tentam esconder. Não ocultam a fúria ou a raiva, a irritação ou o mau humor. Não se envergonham de demonstrar antipatia, desprezo ou entusiasmo em relação aos seus negócios ou de se divertir diante de algo cômico. Às vezes até demonstram raiva ou irritação sem nenhum pudor”.

Uma análise que critica aqueles que condenam os aspectos subjetivos, sem perceber que o subjetivo, aquilo que é propriamente do sujeito, faz parte do modo de ser daquela pessoa:  “Enxergar toda a afetividade terna à luz de certo antipersonalismo para o qual tudo que é pessoal, necessariamente é subjetivo no sentido pejorativo do termo. Para esses, a própria ideia de pessoa carrega o caráter de uma subjetividade ruim, egocêntrico, destacado do que é objetivo e válido. Do modo como o enxergam, quanto mais pessoal e consciente, quanto mais afetivo algo for, tanto mais limitado e insubstancial. E contrastam forças como instintos ou fatores políticos ou econômicos, que se referem à comunidades como um todo, e não à pessoa individualmente”.

É justamente essa dimensão subjetiva a luz que ilumina a realidade, o detalhe, o que de fato importa: “O homem verdadeiramente afetivo, de coração desperto, é quem justamente capta que o que importa é a situação objetiva e se há razão para se regozijar e ser feliz. É tomando uma situação objetiva a sério, perguntando-se se convida à felicidade, alegria ou tristeza, que se engendram as grandes experiencias afetivas espirituais. Ao contrário, o ‘aleijado’ afetivamente nunca é realmente objetivo. Ao não conseguir responder com o coração no caso objetivo onde valores estão em jogo, e onde se exige uma resposta objetiva, esse indivíduo carece de objetividade”.

Von Hildebrand se detém também analisando os desvios da afetividade, o que também deve ser contemplado numa apologia sadia do coração. Assim fala da Hipertrofia do coração, quando o coração ultrapassa o próprio domínio e usurpa papeis que nunca foi destinado a  cumprir, coloca a afetividade em descrédito e causa uma desconfiança generalizada contra si mesmo, inclusive no seu próprio domínio. Não é o grau de afetividade o que causa as perversões, mas um estado da alma desordenado. A afetividade nunca será intensa demais enquanto a cooperação entre coração, vontade e intelecto desejada por Deus não for perturbada”.

E outro desvio, oposto, que é a Atrofia da afetividade. Os homens acometidos de hipertrofia intelectual deslizam para uma atitude em que todo objeto dado imediatamente se torna um tópico de pesquisa científica ou diletante. Não entendem que muitas situações pedem uma resposta afetiva da sua parte. Um outro tipo de afetividade aleijada é a de quem tem uma hipertrofia de eficiência pragmática, utilitária. Considera a experiência afetiva como supérflua e perda de tempo. Também naqueles que tem hipertrofia da vontade .O ideal kantiano -imperativo categórico- onde a componente afetiva é vista com suspeita, como prejudicial ao padrão moral, ou pelo menos desnecessário. O mundo em que um homem vive depende da amplitude, profundidade e diferenciação de sua percepção de valores. Para isso é indispensável que seja ‘afetado’ e que responda com respostas afetivas. É no âmbito afetivo, no coração, onde se encontra o segredo de uma pessoa onde se fala a palavra mais intima. O coração representa o próprio núcleo da pessoa, mais do que a vontade ou o intelecto”.

E conclui com aquilo que seria a falta de coração, “que é silenciado em qualquer homem que esteja dominado pelo orgulho e pela concupiscência, onde a moralidade não tem vez. Também certas paixões como a ambição, amor ao poder, cobiça e avareza podem silenciar e endurecer o coração. Quem acrescenta o cinismo aos seus vícios, também carece de coração. Outro silenciador é o esteta refinado, onde tudo é considerado em função da estética: o coração está distante e frio, mero espectador. O egocentrismo, um desordenado desejo de ser amado, outro filtro que abafa o coração. Assim como as suscetibilidades”.

O capítulo final, como acontece na Encíclica do Papa Francisco, foca-se no Coração de Cristo. Uma vez feita a defesa da afetividade como integrante do ser humano completo, faz sentido olhar para o Coração de Deus feito homem, o que também chancela a importância da dimensão afetiva. O autor discorre sobre o Coração de Cristo e o amor humano/divino de Deus. Fala da ausência de limites, já que a divina  é de uma ordem diferente dos limites -mesmo ampliados- humanos. Um amor de outra ordem, que é parte da infinitude de Deus. Ausência de limites da afetividade de Cristo, uma gloriosa superabundância que conquista todas as categorias naturais e nos inebria a alma com o sopro da infinitude. A transformação do nosso etos depende de ter uma imagem verdadeira do Coração de Cristo. Não devemos projetar nossa mediocridade e mesquinhez para contemplar essa realidade, pois estaremos presos a nós mesmos”. Esse mergulho teológico traz consequências para o homem aprender a educar sua própria afetividade espelhando-se nesse modelo: “A transformação do nosso coração em Cristo, não implica banir a afetividade. Mas sim ter um coração mais sensível, ardente, dotado de uma afetividade inaudita. E purificado de toda afetividade ilegítima, com caráter novo, intenso e profundo. Para transformar o coração é preciso superar, em primeiro lugar, toda dureza, dissolver as rijezas, dissipar a indiferença perante os valores e necessidades dos outros” E, desta consideração, arranca uma audaz  conclusão: “O coração e a vontade não tem porque falar sempre a mesma coisa. Deus confiou ao coração uma palavra própria. Silenciar o coração para ouvir apenas a vontade não é o projeto de Deus. E melhor, do ponto de vista moral, nos alegrarmos ao ajudar outra pessoa do que fazê-lo apenas por força de vontade. Melhor é que o coração extravase de amor ao próximo do que fazer o bem com um coração indiferente”. Não basta pensar corretamente, nem fazer o que deve ser feito. É preciso colocar o coração nas ações. Como dizia um santo moderno, Josemaria Escrivá: “Não só com o coração, mas sempre com o coração”. E acrescentava: “Nada arrasta tanto como o carinho”. Está servido esse convidativo e apaixonante desafio, esse modo de andar no mundo e de relacionar-se com os que temos à nossa volta.

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