Agota Kristof: Trilogia dos Gêmeos
El Gran Cuaderno. Epublibre. Editor digital: Titivillus. 125 págs..
La Prueba. Epublibre .Editor digital: Titivillus. 126 págs.
La Tercera Mentira. Epublibre .Editor digital: Titivillus. 108 págs.

Encontrei na seção literária do jornal , um comentário sobre a Trilogia dos Gêmeos, de esta escritora húngara. Reconheço que o que tenho lido dos húngaros sempre me agradou. É o caso de Sandor Marai, ou de Magda Szabo, de quem li alguns livros. São intimistas, familiares, e examinam minuciosamente as personagens. Com este espírito aproximei-me desta trilogia mas o resultado não foi o mesmo. Encontro uma prosa fácil, dura, onde não se sabe muito bem se o relato é narrativo ou sonhado. Leio a versão em espanhol, por ser a que tinha disponível e traduzo aqui livremente. A verdade é que a escritora viveu fora da Hungria e escreveu toda sua obra em francês.
Os gêmeos Claus e Lucas são deixados ao cuidado da avó, que não mostra nenhum aprecio aparente por eles. Esse é o cenário do primeiro volume, O Gran Caderno, que é o mais palatável, quer dizer, onde a narrativa tem uma sequência lógica, sabe-se o que estamos contemplando. E os diálogos com a avó, peculiares, é o que permite conhecer com quem estamos lidando: a velha e, sobretudo, os garotos. “Durante o jantar, a vovó diz: 1Vocês já entenderam. Abrigo e comida têm que ser conquistados’- Nós dizemos: ‘Não é isso. Trabalhar é difícil, mas ficar parado enquanto alguém trabalha é ainda mais difícil, especialmente se for velho’- A vovó diz sarcasticamente: ‘Seus filhos da mãe! Quer dizer que sentem pena de mim?’ – Não, vovó. Só temos vergonha de nós mesmos”
Os exemplos são variados e contínuos: “Quando um animal precisa ser morto, você nos chama. Nós fazemos isso- Ela diz: ‘Vocês gostam, né?’ -Não, vovó, nós não gostamos. E é por isso que temos que nos acostumar.” Ela diz: ‘Eu entendo. É um exercício novo. Você tem razão. Você tem que saber matar quando necessário’ (…) Há também um cachorro para pegar ladrões e um gato para pegar ratos e camundongos. Você não precisa alimentá-lo, então ele está sempre com fome (…) A vovó se tranca no quarto com o pacote ou o dinheiro. Se há uma carta, ela a joga no fogo. Perguntamos a ela: ‘Vovó, por que você está jogando a carta fora sem lê-la?’ – Ela responde: ‘Eu não sei ler. Nunca fui à escola, não fiz nada além de trabalhar. Não fui mimada como vocês’- ‘Nós poderíamos ler as cartas que você recebe’ – ‘Ninguém deveria ler as cartas que eu recebo’ – Perguntamos a ela: ‘Quem envia o dinheiro? Quem envia os pacotes? Quem envia as cartas?’- Ela não responde”.
Aparecem outras personagens, em degrade de bizarrice , que sintonizam com os gêmeos, também muito peculiares. A garota pobre, carente de carinho: “Não quero vossa frutas, vossos peixes, vosso leite! Posso roubar tudo isso. O que eu quero é que vocês me amem. Ninguém me ama. Nem minha mãe. Mas eu também não amo ninguém. Nem minha mãe, nem vocês! Eu vos odeio!” O homem que discute com a avó, e que leva a pior: “Cale a boca. As mulheres não viram nada da guerra.- A mulher diz: – Nós não vimos nada? Seu idiota! Nós fazemos todo o trabalho, temos todas as preocupações: alimentar as crianças, cuidar dos feridos… Vocês, quando a guerra acaba, são todos heróis. Mortos: heróis. Sobreviventes: heróis. Mutilados: heróis. E é por isso que vocês, homens, inventaram a guerra. É a sua guerra. Vocês a queriam; travem-na então, seus heróis de merda! (…) Calma, vovó. Não vamos desenterrar os mortos. Já temos problemas suficientes para enterrá-los”
E, naturalmente, a opressão sobre o pais -quero pensar que é a própria Hungria, sob a bota soviética- um grito que não poderia faltar: “Mais tarde, teremos novamente nosso próprio exército e governo, mas são os libertadores que lideram nosso exército e nosso governo. A bandeira deles tremula em todos os prédios públicos. A imagem de seu líder aparece em todos os lugares. Eles nos ensinam suas canções, suas danças e exibem seus filmes em nossos cinemas. Nas escolas, a língua dos libertadores é obrigatória, enquanto outras línguas estrangeiras são proibidas. Nenhuma crítica ou piada contra nossos libertadores ou nosso governo é permitida. Com uma simples denúncia, qualquer um é jogado na prisão, sem julgamento ou devido processo legal. Homens e mulheres desaparecem sem que ninguém saiba o porquê, e suas famílias nunca mais têm notícias deles. Eles reconstroem a fronteira. Agora ela está intransitável. Nosso país está cercado por arame farpado; estamos totalmente isolados do resto do mundo”
O segundo volume, A Prova, corre por conta de um dos gêmeos, Lucas porque o outro conseguiu ultrapassar a fronteira, desaparece do cenário. Lucas alterna ações repletas de altruísmo, de cuidados atentos, com outras mesquinhas e até repugnantes. Carece de bussola moral, tudo é espasmódico: o bom e o ruim. Esse é o ponto que choca, talvez porque a escritora queira mostrar que o bem e o mal, o heroísmo e a mesquinhez são capazes de surgir do mesmo coração humano.
Ações notáveis com o garoto filho de uma jovem, de quem acaba cuidando com esmero: “O menino diz: Eu não vou crescer, sabia? O médico disse isso. – Você o entendeu mal, Mathias. Sim, você vai crescer. Mais devagar que as outras crianças, mas vai crescer.- O menino pergunta: E por que mais devagar?- Porque cada um é diferente. Você será mais baixo que os outros, mas mais inteligente. A altura não importa; só a inteligência conta (…) O menino diz: -Órfãos são crianças que não têm pais. Eu também não tenho mais pais – Sim. Você tem sua mãe, Yasmine – Yasmine se foi. E meu pai? Onde ele está?- Eu sou seu pai – Mas e o outro? O verdadeiro?- Lucas fica em silêncio por um momento antes de responder. Ele morreu antes de você nascer, em um acidente, como o meu – Pais sempre morrem em acidentes. Você também vai sofrer um acidente em breve?- Não. Sou muito cuidadoso.”
Também com o padre da aldeia a quem sempre leva a janta: “Após um silêncio, o padre continua: -Você cuidou de mim por anos como se fosse meu próprio filho. Eu gostaria de lhe agradecer. Mas como posso expressar minha gratidão por tanto amor e gentileza?- Lucas diz: Não me agradeça. Não há amor nem gentileza em mim- É o que você pensa, Lucas. Estou convencido do contrário. Você recebeu uma ferida da qual ainda não se curou.”
E simultaneamente o ceticismo em relação ao amor, as convicções, aos próprios ideais: “Você ama? -Eu não sei o que essa palavra significa. Ninguém sabe. Eu não me faria esse tipo de pergunta- No entanto, ao longo da sua vida, você ouvirá esse tipo de pergunta muitas vezes. E talvez seja forçado a responder- E você? Às vezes, você também terá que responder a certas perguntas. Já participei de suas reuniões políticas algumas vezes. Você faz discursos, a sala o aplaude. Você acredita sinceramente no que diz? – Sou forçado a acreditar – Mas, no fundo, o que você pensa? – Eu não penso. Não posso me dar a esse luxo. Carrego o medo dentro de mim desde a infância.”
Quase no final, num diálogo com o garoto, a escritora dá o recado que justifica este volume e toda a trilogia: a necessidade de escrever para entender o mundo, para entender-nos a nós mesmo. “Durma bem, Mathias. E quando estiver com muita dor, muita tristeza, e não quiser contar a ninguém, escreva. Isso vai te ajudar (…) Eu já escrevi. Anotei tudo. Tudo o que me aconteceu desde que moramos aqui. Meus pesadelos, a escola, tudo. Eu também tenho meu caderno grande, como você. Você tem vários, eu só tenho um; ele ainda é fino. Nunca vou deixar você lê-lo. Você me proibiu de ler o seu, e eu o proíbo de ler o meu (…) Estou convencido, Lucas, de que todo ser humano nasceu para escrever um livro, e apenas para escrever um. Um livro brilhante ou um livro medíocre, pouco importa, mas quem não escreve nada é um ser perdido; não fez nada mais do que passar pela Terra sem deixar rastros”.
A Terceira Mentira, terceiro volume -também relativamente curto com os outros- é o mais desconcertante. Os anos passaram, os gêmeos envelheceram, não se sabe bem de quem se está falando, de se tudo não passa de ficção, de um sonho, que tenta conquistar uma realidade ausente. Ou, talvez fugir de uma realidade insuportável como deixa entrever Kristof quando escreve: “Tento escrever coisas que realmente aconteceram, mas, a certa altura, a história se torna insuportável por causa da sua própria verdade, e então sou forçada a mudá-la. Digo a ele que tento contar a minha história, mas não consigo; não tenho coragem; isso me machuca demais. Então, embelezo tudo e descrevo as coisas não como aconteceram, mas como eu gostaria que tivessem acontecido. Sim. Há vidas mais tristes que os livros mais tristes”.
Desse modo, fugindo de dura realidade, a escritora vai alinhavando as páginas finais da trilogia: “Tenho medo de ir para uma casa onde queiram cuidar de mim, onde queiram me salvar. Preciso sair daqui. Fico pensando para onde irei. Compro um mapa do país e um mapa da capital. Vou à estação todos os dias, verifico os horários. Pergunto o preço das passagens para diferentes cidades. Tenho muito pouco dinheiro e não quero tocar no que a vovó me deixou. Ela já tinha me avisado: Ninguém deve saber que você tem. Vão te fazer perguntas, te prender, tirar tudo de você. E nunca vão dizer a verdade. Finja que não entende o que estão te perguntando. Se te acharem idiota, melhor ainda. A herança da vovó está enterrada debaixo do banco em frente à casa, num saco de lona contendo joias, moedas de ouro e prata. Se eu tentasse vendê-la, me acusariam de roubo”.
Por isso, não surpreende a conclusão que estampa no final da trilogia: “Você tem razão. Estou velho agora. A guerra engoliu minha juventude. Você sabe muito bem que não passo de um sonho. Você tem que aceitar. Não há nada, em lugar nenhum. É tudo mentira. Eu sei perfeitamente que nesta cidade, na casa da minha avó, eu morava sozinho, que mesmo então eu imaginava que éramos dois, meu irmão e eu, para tornar suportável a solidão insuportável” Fecho o último volume. Pergunto-me se valeu a pena a leitura. Não era o que eu esperava, mas devo reconhecer que os escritores húngaros têm pegada, dissecam as personagens. Neste caso, sem importar-se com realidade ou ficção. Mas sempre enriquecem, ampliam tua perspectiva cultural. E, sem faltar o humor, como a escritora anota num diálogo com um interlocutor fictício que lhe espeta: “O que eu acho é que você está confundindo realidade com literatura. Com a sua literatura”.