Homens e Deuses: A Liderança do Exemplo, a Sabedoria das Prioridades
Des hommes et des Dieux. Diretor. Lambert Wilson, Michael Lonsdale, Jean-Marie Frin, Jacques Herlin, Philippe Laudenbach. 120 min.
Estava atrás deste filme há tempo. A edificante história dos monges cistercienses tinha chegado ao meu conhecimento. Também tinha lido alguns comentários sobre o filme; algo diferente sem dúvida, um testemunho de fortaleza, não na Roma dos Césares, mas em plena década dos 90, na Argélia. Mas, reconheço que a minha curiosidade ficou espicaçada quando soube que o filme tinha ganhado o prêmio especial no festival de Cannes, e que três milhões de espectadores estouraram o recorde de bilheteria. E tudo isso na França! Um país que se vangloria de laico congrega uma multidão para ver nove frades defender a sua fé até as últimas consequências. Um mistério provocante que havia que decifrar.
O filme é simples, direto, de orçamento enxuto, teatro filmado da melhor qualidade. Os atores têm de ser necessariamente formidáveis, pois exige-se deles, para fechar o balanço em positivo, o que se economizou dispensando efeitos especiais e parafernália que aqui sobra. Tudo é puro recurso humano. Humano em toda sua dimensão: corporal, anímica, espiritual, mística. Homens e Deuses, encontrando-se na transcendência, sem distinção de credos ou culturas. Não porque cheguem a soluções de compromisso – essas alianças medíocres dos políticos, água no vinho, uísque com guaraná – mas justamente pela fidelidade clara às próprias convicções, que permitem a compreensão profunda do ser humano.
Vejo monges que acordam de madrugada para rezar as matinas na capela humilde, sabem falar do amor humano com a paixão de quem possui um amor divino no coração, prestigiam as festas da comunidade muçulmana que vive à volta do mosteiro. Vejo famílias de camponeses que, apoiando-se na serenidade dos monges, tiram forças para o árduo trabalho diário. E vejo os frades que encontram no serviço abnegado e no exemplo, o complemento da sua vocação, e trabalham a terra num mano a mano presidido pela amizade e pelo amor. Vejo tudo isto e penso no esforço das potencias internacionais–não sei até que ponto sincero- em promover a paz entre as diferentes culturas. Penso também nas tentativas de entendimento ecumênico, onde as dificuldades não são tanto de conteúdo doutrinal, como do orgulho que não se permite ceder. E me lembro da famosa sentença –acho que era do Eça de Queiroz- de que “nada é tão desconcertante como o caso concreto”.
O que as teorias não conseguem, o consegue o carinho, o amor. “Nada arrasta tanto como o carinho” – afirma um santo dos nossos dias. Uma verdade que encontra seu complemento na frase de outro frade, São João da Cruz: “Onde não há amor, coloca amor, e obterás amor”. Bem sabia o místico de Castela, que no final, o saldo é mesmo o amor que se colocou: “No entardecer da nossa vida, seremos julgado no amor”. O ritmo lento do filme, que incita à reflexão, permite entreter-se com estes pensamentos, afloram ideias revolucionárias atemporais, algo assim como colocar Bernardo de Claraval ou Teresa de Ávila, na Secretaria Geral da ONU!
Onde foi parar o mistério que tínhamos de decifrar, o encanto que o filme provocou entre os franceses? As respostas não vêm de imediato, mas os interrogantes funcionam como ímãs que atraem vivências e leituras, para aglutinar uma solução. Encontrava-me nessa tessitura, quando tropecei com um trecho da recente entrevista que Bento XVI concede a Peter Seewald, publicado sob o título “Luz do Mundo”. É conhecido o empenho do Professor Raztinger na promoção do ecumenismo, assim como na defesa de muitos outros valores, aparentemente menos espirituais: a ecologia, a paz, a promoção do bem estar global. Afirma na entrevista: “Há uma consciência da responsabilidade global, de que a ética vai além do próprio grupo ou nação, e deve levar em conta a Terra no seu conjunto, todos os homens. Existe um reconhecimento disto no campo moral. Mas a tradução de tudo isto em vontade política e em ações políticas se vê impossibilitado pela falta de disposição para a renuncia. Isso deve se refletir nos orçamentos nacionais, e no final, acaba repercutindo sobre os indivíduos concretos. A vontade politica é ineficaz se não encontra uma consciência moral nos indivíduos que terão de tomar decisões a nível pessoal. Cada um vai ter que renunciar como decisão pessoal”.
Esse é o problema! Defendemos os valores globalmente, até que isso me atinge e tenho de abrir mão do conforto. Por que eu? Eu andar de bicicleta para preservar o ambiente, se tem gente roubando? Eu, não! O governo é que tem de fazer isso, cuidar da pobreza. Eu aumentar o salário da minha empregada, que chega tarde e falta no serviço? Isso é um problema do sindicato. Ainda é capaz de me processar por maus tratos. Lembrei-me de uma professora que tive no primário, sábia mulher. Era a década de sessenta, promoviam-se campanhas para recolher esmolas para as crianças da Africa. A professora comentou: “É ótimo dar esmolas para as criancinhas do Congo, sobretudo porque o dinheiro vem dos pais. Mas bom mesmo é dividir o teu lanche –que está na tua mochila- com o colega da carteira do lado. O Congo está muito longe, gente; vamos dar esmola por aqui mesmo”. Naturalmente, o bicho pegava por dizê-lo de modo simples e claro.
Deixo a minha professora na lembrança e continuo lendo o que diz Bento XVI: “Quem pode alcançar essa consciência moral, sensibilizar as pessoas para que tomem essas decisões? Somente alguém que toque a consciência, que dê exemplo e não se limite a convocar essas manifestações aparatosas e ineficazes? Talvez aqui esteja o desafio da Igreja”. É isso mesmo, pensei. Somente se encontro outro motivo para andar de bicicleta é que vou conseguir decidir-me. A ecologia não tira o sono de ninguém. E agora é a lembrança da Madre Teresa de Calcutá quem se agrega para resolver o mistério. Perguntaram-lhe uma vez como conseguia cuidar de gente miserável, apodrecida, que cheirava mal. “Eu não faria isso –disse o jornalista que a entrevistava- nem por mil dólares ao dia”. E a Madre Teresa respondeu: “Eu também não! Eu faço é por Deus. Por mil dólares ao dia, nem pensar”.
Aceitamos a teoria, mas no fundo pensamos: isso não vai me afetar a mim, não pretendo modificar a minha vida por um motivo “global”, nem abrir mão do meu status. O egoísmo individual e o grupal falam mais alto que qualquer teoria. É preciso uma cutucada, no calcanhar de Aquiles, em outra dimensão, na dimensão da consciência moral. E o golpe vem em forma de exemplo, uma liderança silenciosa e eficaz, a liderança do exemplo. Um parágrafo adiante Bento XVI dá a dica para resolver o enigma: “Não há modelos. Neste sentido, as comunidades religiosas têm uma importância exemplar, por manifestarem um estilo de vida de renuncia racional, moral; mostram que é praticável, que essa possibilidade existe e se vive no nosso tempo atual”.
Voltamos ao filme. Como sempre acontece nas guerras civis, a razão absoluta não está de nenhum dos lados e a corrupção corre solta em ambos os bandos. Os revolucionários ameaçam a governo que, por sua vez, teme pelos estrangeiros e se vê na obrigação de pedir aos frades que abandonem o mosteiro e regressem à França. Sair, deixar tudo, abandonar a comunidade que confia e se apoia neles? Arriscar a vida, ficando a mercê de fanáticos agitadores que praticam a limpeza étnica?
A Liderança do exemplo convive com as limitações e misérias da condição humana, porque está diluída nas vicissitudes do mundo real. E nesse mistura –humana e divina- encontramos a dúvida, o medo, a hesitação. O Superior coloca o dilema em pauta de discussão. Sinto, que a minha missão não está completa, talvez tenhamos que ficar. O que vou fazer de volta na França? Retomar um escritório, trabalhar como se nada tivesse acontecido na minha vida? Será que a minha vocação –afinal sou um frade- me exige ter de morrer como mártir? Sinto fraquejar, não sou capaz. As frases entrecortadas dos frades perfilam o tamanho do desafio; a profundidade de uma decisão que, podendo ser individual, clama pelo consenso para trazer paz à consciência.
O veterano, um ancião, fala calmamente: “Penso que temos de rezar mais para saber o que devemos fazer. Ainda não estou em condições de decidir”. Rezar para saber qual é o caminho, para obter a ciência de acertar no que é essencial, sem preocupar-se com o periférico. A mesma que Salomão pediu a Deus para governar um povo rebelde e tumultuado. É a sabedoria das prioridades.
E essa sabedoria concentra o olhar sobre o ponto crítico. O problema não é o que vem de fora, mas a resposta que surge do interior. Um belo ensinamento, aplicável a qualquer cidadão do século XXI que busque honrar a sua vocação, completar a missão para a qual foi chamado. Como é fácil colocar a culpa nas dificuldades externas! Muito mais árduo resulta perguntar-se qual é o meu papel nesta circunstância adversa e difícil. Afinal ninguém se faz frade para enfrentar uma guerra civil, mas a vida é do modo como nos chega; no dizer de Ortega y Gasset, ela nos é disparada a queima-roupa. E solicita uma resposta. A sabedoria das prioridades é fidelidade à própria missão, cumprir o papel que nos foi assinado. Fernando Pessoa canta a integridade do rei de Portugal: “Assim vivi a vida/ Calmo, sob mudos céus/ Fiel à palavra dada, à ideia tida/ Tudo o mais é com Deus”. É preciso fazer a nossa parte, e deixar que Deus cuide do resto.
O ímã do interrogante continua agregando pensamentos. O enigma da silenciosa liderança de um punhado de humildes frades que estremece o festival de Cannes. Agora é Sulco, o livro de Josemaria Escrivá que contém, a modo de fatorial, o processo para adquirir as virtudes da excelência humana e divina. “O que é preciso para conseguir a felicidade não é uma vida cômoda, mas um coração enamorado”. É de novo o amor, o mesmo de João da Cruz, de Teresa de Calcutá, o que faz a diferença. Um amor que vemos incarnado na vida dos frades, que extravasa, como as lágrimas de alegria derramadas, na cena sublime – uma verdadeira última ceia!- emoldurado pela abertura do Lago dos Cisnes.
O espectador se comove e se assusta. Aquilo não é apenas uma história de monges na Argélia, mas um exemplo de que é possível a renuncia, um modelo que pede resposta na vida de cada um para ser fiel à missão que lhe é confiada. E a fidelidade começa por colocar em jogo todos os talentos e possibilidades que cada um possui. Sem poupar-se, sem desculpas, sentindo-se responsável por fazer um mundo melhor lá onde atuamos, dividindo o lanche da mochila, sem enganar-se com campanhas globais!
Acabo de ler –e de fazer um merecido elogio- um livro de Mercedes Salisachs, uma escritora espanhola de 94 anos que continua nos encantando com seus romances. O mérito não é manter-se lúcida nessa idade, pois afinal nem tudo depende dela. Padecer de Alzheimer, ou de Parkinson, ou ser liquidado por um câncer, não é opção de escolha, mas da vida disparada a queima-roupa. O que é sim opção é manter-se ativa, por em jogo os talentos, não buscar a merecida aposentadoria, quando se pode trabalhar. Salisachs faz render os talentos, sem poupar-se. Vai ver que isso tem muito a ver com encher o coração de amor para alcançar a fidelidade. Ela diz que desse modo se consegue a paz, que neste mundo é o mais próximo da felicidade. Em outras palavras, não existe aposentadoria da alma.
Faz já alguns anos, conversando de coisas análogas com um velho professor a quem muito devo, e mostrando meu entusiasmo por desempenhar o papel que sempre pensei me cabe na vida, me interpelou com uma frase contundente: “Quer dizer que você é uma espécie de monge da Avenida Paulista!”. O resumo foi bizarro, mas o sentido que pretendia não andava muito equivocado. O episódio voltou também à memória, convocado pelo ímã do questionamento que até aqui já rendeu bons dividendos. Os frades da Argélia, cistercienses, têm o seu modo próprio de viver a fé em plena coerência. Cada um terá de encontrar a maneira de vivê-la na Avenida Paulista, em Wall Street, no mundo corporativo, no trânsito paulistano, no condomínio do prédio, ou no estádio de futebol. E no relacionamento com os seres humanos, uma caixa de surpresas nem sempre agradáveis, nesta selva pós-moderna. Esses são os desafios que enfrentamos.
“O homem – novamente as palavras de Bento XVI na comentada entrevista- está ameaçado, ameaça-se a si mesmo e ameaça o mundo: isso é visível através das provas científicas. Somente pode ser salvo se no seu coração crescem as forças morais, forças que somente podem provir do encontro com Deus”. Ai está uma possível explicação para o sucesso do filme. Para mim, serve. Toca agora a cada um descobrir a resposta, enquanto se emociona, no silêncio eloquente dos monges, com a música de Tchaikovsky.
Comments 6
Caro Pablo, como é bom ler tantas ideias que se podem tirar de um filme. Obrigado pelo envio. Vou passar essas ideias para os amigos. Abraço, Ettore.
Ótimo filme; melhor ainda, depois de seus comentários. Obrigada.
Doutor Pablo, estás ficando, com o passar da idade, mais sábio. Parabéns.
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