A LENDA DO PIANISTA DO MAR
(La leggenda del pianista sullóceano -The legend of 1900).Diretor: Giuseppe Tornatore. Tim Roth, Pruitt Taylor Vince, Melanie Thierry. 116 min
Uma lenda, ou uma história. Em qualquer caso um filme original. 1900 é o nome do protagonista que nasceu nesse ano num navio, e nele ficou pelo resto da sua vida. Toca piano, compõe, movimenta-se com classe no cenário, possui conversas animadas e com substância, tem sentido de realidade. Mas, sempre, no navio. Sair dele é enfrentar-se com o desconhecido, tirar os pés do chão, e partir para uma aventura que não conhece e onde possivelmente não se sairá bem. Outros, sim, devem fazer isso, e o navio é apenas um meio de transporte ou de lazer. Para 1900, o navio é a sua vida, e lá, nesse reduzido espaço, tem de tornar ela útil, fazer da sua existência uma contribuição real para melhorar o mundo à sua volta.
O sentido de realismo é perfeitamente compatível com os sonhos, e com os desafios. Sobrevém uma tempestade e o nosso protagonista encontra-se, como quase sempre, tocando piano. Um salão de festas, vazio, escuro, porque os passageiros retiraram-se, cada um na sua cabine, em luta individual contra a indisposição, enquanto a tripulação se debate com as ondas gigantes.
O pianista, que faz a guerra por sua conta, quer aproveitar o momento de turbulência para criar, e sentado ao piano, toca. “Solte as amarras do piano” –diz ao assustado amigo que luta por manter-se de pé, difícil tarefa pois o navio oscila com violência. “Você está louco” –diz o colega em pânico. “Solte, solte as amarras do piano”. Tremendo, enquanto 1900 não para de tocar, o temeroso colaborador se abaixa, e solta as amarras. O piano desliza-se pelo salão, de um lado a outro, embaixo de lustres de cristal que balançam com furor, querendo cair. O pianista sorri, e toca, com paixão, alegro vivace, uma valsa que o piano, rolando sobre o mármore, parece querer acompanhar. “Sente do meu lado” – diz sorrindo ao interlocutor “Sente agora, ou nunca o conseguirá”. Perplexidade, confirmação da insanidade do pianista, e mil argumentos mais que poderiam deter ao assustado colega, que vai de surpresa em surpresa. Finalmente alcança o piano, que se movimenta também em alegro, e senta ao lado do pianista. Pouco tempo depois comprova que valeu a pena correr o risco. A sensação de patinar sentado no banco acoplado a um piano, como se fosse o seu par na valsa que o instrumento cria enquanto desliza, é realmente única. E, feliz, parte para a comemoração.
Devo confessar que a cena do pianista tocando e criando música sobre piano, livre de amarras, movimentando-se pelo salão de dança, gravou-se fundo na minha alma até o ponto de se transformar num paradigma de atuação, de educação, de postura na vida. “Se você não solta as amarras não consigo tocar, não sai nada”. Um recado para a vida, que está engessada com convencionalismos, com “o que todos fazem”, com uma caricatura de prudência que no fundo é verdadeira covardia. Medo, pavor da inovação, de criar, de ser artista. O primeiro passo é soltar as amarras do piano ….onde o outro está sentado, mas daí a embarcar nessa empreitada, é outra conversa. “Sobe agora, ou perderás o trem”.
Miss the boat, diz a expressão em inglês; aqui, seria miss the piano inside the boat!! E quando subimos ao piano e ao barco, comprovamos que valeu a pena. Não existe conquista sem risco, nem alegria sem colocar todas as fichas naquilo que se está fazendo: isso é o que permite fazer da vida uma aventura. O piano, o pianista, o amigo tomando champagne enquanto saboreia a experiência é uma bofetada para o mundo conformista. A cena gravou-se na minha alma, e pude comprovar ao longo desses anos, envolvido com a educação, como muitos, com lágrimas nos olhos decidiam soltar o piano das suas vidas, embarcarem na aventura e ser felizes. Outros, muitos mais do que os anteriores, também derramaram lágrimas quando entenderam o recado da cena do “pianista louco”, mas lhes faltou audácia e ficaram nas cabines, lutando contra o enjoo da alma. Sem críticas, com olhar sereno, entendo hoje perfeitamente que tocar em piano solto é privilégio de poucos.
Uma festa baile, com a presença de todos os passageiros. O pianista continua tocando, e criando músicas maravilhosas. O amigo, completamente seduzido pela atitude de 1900, pergunta; “De onde você tira essa música”. E ele, olhando para as pessoas, as descreve, lê o seu interior, adivinha seus pensamentos, e compõe a música “ad hoc” para cada um. E como dizer; “Eu olho para as pessoas, procuro entendê-las, saber quem são o que querem, e daí, espontaneamente, nasce a música nos meus dedos”. Compreender, ajudar, cuidar dos outros; educar, atender suas expectativas, aliviar seus sofrimentos. Tudo isso é olhar para as pessoas e criar a música.
Não existem partituras prontas, mas devem ser criadas à medida das necessidades de cada um. Por isso educar, formar, é arte; por isso, a medicina que se centra no enfermo e não na doença, é arte; e arte deve ser a resposta do professor aos questionamentos do aluno, e também o são as iniciativas da mãe de família. Manuais e partituras nos fazem tropeçar no que é genérico, ocultam a pessoa que temos diante. Soltar as amarras do piano foi a primeira lição; a segunda é rasgar a partitura, olhar para a pessoa, salvando a dificuldade tão comum em que as árvores nos impedem ver o bosque. Mais um novo paradigma de atitude, para os que dedicamos nossa vida a formar os outros.
No meio de pianos soltos e partituras rasgadas, o realismo aflora em lição magistral no final do filme. O pianista sabe suas limitações, e sabe que a música que pode criar, surgirá sempre do teclado finito, com pouco mais de 80 teclas. “Um teclado infinito, com inúmeras possibilidades, é o teclado de Deus – diz ao amigo. O meu teclado é finito, e dele tenho que extrair as soluções”. Belíssima lição que podemos traduzir de modo simples: fazer, com boa vontade, com alegria e espírito de aventura, o que é possível, e não desculpar a própria omissão esperando fazer sempre o melhor. O ótimo é inimigo do bom. Quem espera pelo ótimo, geralmente não faz nada, morre esperando, em permanente inatividade, consumido por sonhos, ou melhor, por utopias.
Chesterton, o apologista do bom senso, recomendava conservar a alma de criança para desfrutar da rotina, sem esperar o “extraordinário”. Alma infantil como a de Deus –dizia o jornalista inglês- que gosta de ver o sol sair todas as manhãs, e diz “de novo”, bis, “again”, e o sol sai um dia após outro. Os adultos –os de alma velha- se cansam da rotina. Apenas a criança sabe sonhar e desfrutar com as coisas de sempre, e por isso toca, e cria, e repete o que é bom no teclado finito que lhe é colocado ao seu alcance. O pianista do mar é um filme mítico. Uma lenda que é um recado e um desafio para os que querem correr o risco de soltar as amarras e fazer da sua vida uma aventura. Aventura esta que topará com pessoas que é preciso entender, e que não carregam do lado manual de instruções, nem partitura. Para ajudar basta olhar para elas, com realismo. Procurar desesperadamente uma partitura – querer sentir-se seguro a qualquer custo, com a desculpa de não errar- acaba fatalmente convergindo para o próprio umbigo. Essa é a sequência lógica de quem mantém o piano amarrado: primeiro esquece a pessoa procurando a partitura, depois esquece a partitura… procurando sua própria segurança, e um livro de autoajuda. Vai aqui um convite entusiasta: solte as amarras do seu piano, sente no banco e deslize pela vida, olhe para os outros, e aprenderá a fazer o seu melhor, e será feliz. E abra uma champagne para comemorar e desfrutar esse privilégio. Bem-vindo à esta nova lenda: a aventura da vida cotidiana.