Em um Mundo Melhor: A pedagogia do perdão
(Hævnen / In a Better World) Diretora: Susanne Bier. Mikael Persbrandt, Trine Dyrholm, Ulrich Thomsen, Markus Rygaard, William Jøhnk Nielsen. 113 min.
Animado pelos comentários de um amigo, assisti “Em um mundo melhor”. O Oscar de melhor filme estrangeiro criava certa expectativa. Não que os prêmios da academia sejam indicações incontestáveis. Mas penso que, às vezes, Hollywood premia os filmes estrangeiros que gostaria de ter feito e outros se adiantaram e os produziram. Há uma longa série de Oscar de filmes estrangeiros inesquecíveis: A Festa de Babette, A Historia Oficial, Cinema Paradiso, A Vida é Bela, Infância Roubada. Por citar um espectro de vários países.
Um médico dinamarquês que trabalha num campo de refugiados africanos. Dedicação e carinho em condições muito precárias. Uma família –a do médico- se desfazendo na Dinamarca. Quem alivia como pode as moléstias dos africanos, parece que não sabe cuidar da própria família. Onde está o mundo melhor? –pensei. Tenho verdadeira alergia à beneficência distante que esconde o descaso para com o próximo doméstico. Quantos se envolvem em projetos filantrópicos sociais e se omitem no desvelo pelos que têm do lado, diariamente. O próximo é a família, a empregada, o zelador do prédio; seres humanos que a vida colocou do nosso lado, cinzentos, quotidianos, sem nenhum glamour. A solidariedade sem fronteiras traz sempre o encanto de escolher o destinatário. E o quintal do vizinho, sempre parece melhor, mesmo situado na miséria africana. Lembrei-me da minha professora de primário: “Meninos, é muito bom dar esmolas para as crianças da África; mas vejam se dividem o lanche que está na sua mochila com o seu colega de carteira”. O lanche, a fome, o colega eram entidades concretas, palpáveis. A Africa estava no primário, distante, em outra galáxia, sem nenhuma ameaça para o sanduiche que a mamãe tinha preparado a gosto do consumidor. Pouco faltou para interromper o filme. Decidi dar mais uma chance.
Dois garotos assumem o protagonismo. Elias, o filho do médico, e Christian, que também vem de uma família desfeita, pois a mãe morreu e ele não perdoa o pai que considera omisso. Uma série de circunstâncias –lentas e densas, como corresponde aos filmes nórdicos- fornecem o clima onde se vai cozinhando um ambiente de ódio e de vingança nos meninos. Senti-me novamente incomodado. Animosidade, represália, raiva, verdadeiro ódio em versão adolescente, mas com os requintes de um adulto. Gente complicada estes dinamarqueses, pensei.
Fosse pouco, coloquei no tradutor do Google o título original: Hævnen. Resultado: Vingança. Eu que pensei que teria algo a ver com o inglês Heaven, Céu, por aquilo do mundo melhor: ingenuidade e desconhecimento total do sistema operacional escandinavo. Por segunda vez quase parei o filme. As idas e vindas do médico para a África, onde salva vidas machucadas também pelo ódio, me fez esperar. Será que este homem vai para Africa “carregar as baterias”, entender o mundo, mergulhar nas misérias do ser humano e na compaixão que a dor desperta, para depois capitalizar o aprendizado e trazê-lo de volta ao seu país?
Não me enganei. A trama do filme converge no médico que busca soluções. Quer reconquistar a esposa, que ama. Dedica-se aos filhos e ao garoto que perdeu a mãe. Educa com tempo, e com o exemplo, até culminar na cena onde é agredido sem revidar. Momento alto do filme, que se repete didaticamente, para que os jovens entendam que a mansidão e o perdão é o que de fato conseguirá tornar um mundo melhor.
O mundo melhor não existe pronto, não depende de lugares ou de circunstâncias externas. “A vida é terra –diz Fernando Pessoa- e vive-la é lodo“. O ser humano consegue emporcalhar qualquer cenário, como decorrência de suas misérias e limitações, por conta de um orgulho doentio. A vida torna-se lodo, e nos lambuzamos nela. A diferença vem do interior de cada um, dos recursos que é capaz de colocar em jogo. “Tudo é maneira, diferença ou modo – continua o poeta português-. Em tudo quanto faças sé só tu; em tudo quanto faças se tu todo“. Somos cada um de nós os que podemos construir um mundo melhor. E a compreensão e o perdão são ferramentas imprescindíveis nessa tarefa.
Perdoar não é tarefa fácil, porque como dizia um santo do nosso tempo o orgulho morre 24 horas depois que o homem foi enterrado. Coincidência ou não, lia nestes dias um escrito desse mesmo autor afirmando que compreender, desculpar e perdoar é possível mediante o amor de Deus, e a nossa humilhação. Quer dizer: para perdoar de verdade, sem guardar contabilidade, é preciso esmagar o ego e pedir emprestado o amor divino capaz de cicatrizar as ofensas. Perdoar com argumentos humanos altruístas ou filantrópicos gera um perdão insuficiente onde, antes ou depois, o orgulho se encarregará de passar a conta, certamente com juros.
Lembrei-me de uma frase que li, faz muitos anos, numa das obras de Georges Bernanos: “Odiar-se a si mesmo, não é difícil. O realmente difícil é esquecer-se de si mesmo”. Perdoar implica esquecimento próprio, abrir mão dos direitos sempre hipertrofiados pelo orgulho, para deixar que um amor maior, divino, tome conta de nós e nos ajude a desculpar com sinceridade. O perdão e a humildade caminham de mãos dadas. Daí o acertado comentário de Unamuno quando disse que a maior humildade é a de Deus que cria o mundo e depois cria o homem para que lhe critique sua obra.
O tema dos recursos transcendentes para melhorar o mundo vai muito além do tema pontual do perdão: é condição de sucesso. Quantas iniciativas altruístas bem intencionadas são truncadas porque quando sobrevêm as dificuldades comprova-se que as boas intenções, mesmo sendo sinceras, são de todo ponto insuficientes. A lembrança da Madre Teresa de Calcutá –paradigma de inciativas solidarias exemplares- é contundente. Certa vez um jornalista, ao ver o trabalho heroico da sua comunidade no meio da pobreza e da sujeira, comentou: “Madre Teresa, eu não creio que fizesse isso que vocês fazem nem que me pagassem mil dólares por dia”. A boa freira sorriu e respondeu: “Eu também não! Por mil dólares diários eu não faria. Faço é por Deus”.
Afogar o mal em abundancia de bem, empenhar-se sem desânimos em melhorar o mundo que nos rodeia, entender que o perdão nos constrói e o ódio nos desgasta, é empreitada que ultrapassa as simples boas intenções humanistas. Requer um lastro de transcendência que alavanque as ações. Cabe a cada um buscar esses recursos capaz de segurar os momentos de crise. Na hora em que o bicho pega –o lodo em que nossas misérias transformam a terra da vida- a simples boa vontade não costuma dar conta. Aprendi no colégio há muitos anos – saudades daquelas ótimas aulas de filosofia!- que a postura ingênua do bom selvagem de Rousseau, o homem é bom por natureza, desemboca no ceticismo de Hobbes, onde se comprova que homo homini lúpus– o homem é mesmo um lobo para o homem!
Relendo minhas reflexões suspeito que o recado tenha se tingido de um matiz excessivamente piegas. Nada disto está no filme, pois não aponta os horizontes de transcendência que, em minha opinião, são imprescindíveis para praticar o exercício do perdão. Afinal, o tema é atual e candente. As interpretações serão variadas. A presença do protagonista que suporta com teimosia as afrontas, dominando o orgulho como uma versão viking do nosso Augusto Matraga, talvez careça desta dimensão transcendental. Mas perante a dificuldade que todos enfrentamos – diariamente, muitas vezes ao dia!- em perdoar, não vejo como deixar o amor divino de fora nesta empreitada. Outro pensador francês, Gustave Thibon, o adverte: “Os que buscam eliminar Deus em benefício do homem, são os que posteriormente menos perdoam o homem que não seja Deus”. Deus nos situa na condição de criaturas, carentes, miseráveis, necessitadas de perdão. Uma opção clara e acessível para fazer do nosso mundo, um mundo melhor. Desta vez, a tradução inglesa do título – e a correspondente em português- foi feliz. E salvou o filme da minha irritação inicial: provavelmente com Vingança nos créditos, não teria suportado mais de meia hora. Vantagens de não conhecer o dinamarquês.