Aldous Huxley: “Admirável Mundo Novo”
Aldous Huxley: “Admirável Mundo Novo”. Ed. Globo. 2009. São Paulo. 390 pgs.
Um novo fórum humanista oferece-me a ocasião para uma leitura pausada da conhecidíssima obra de Aldous Huxley. Conhecida, profética e, eu diria camaleônica. Lembro que na minha adolescência –há quase 50 anos- este livro era visto com certas reservas pelos educadores ortodoxos. Talvez pelas descrições cruas, desumanizadas, das relações humanas. Ou pelas misturas religiosas que os impulsos de transcendência acarretam. Ou mesmo porque poderia se considerar um exagero de uma mente culta, produzido na década dos 30 (muito antes mesmo da minha adolescência). Hoje, leio com gosto esta obra, olho à minha volta, e vejo que encaixa perfeitamente com tudo o que nos toca viver, observar, e suportar. Daí o camaleônico; não do livro, mas das circunstâncias. Do “Index inquisitorial” onde quase a situavam os educadores de outrora, eu a colocaria hoje entre os livros de formação moral altamente recomendáveis. Um exagero, talvez, mas a ideia se entende.
Caminho por entre as páginas de “Admirável Mundo Novo” e olho à minha volta por ver se algum executivo alfa, ou um socialite beta-menos esboça o sorriso de plástico na tela do Big Brother. Continuo lendo e contemplo os trabalhadores gama e os anões ípsilon, pululando à minha volta, em redes sociais, fotos incluídas. Todos iguaizinhos, com muitos milhões de amigos, poderosamente despersonalizados, se comunicando, o tempo todo, mais, mais, sobre o nada; uma anorexia patológica de conteúdo. Mas todos felizes. Sempre felizes, porque foram condicionados para livrar-se de tudo o que é desagradável em vez de aprender a suportá-lo. E, no aperto, algumas gramas do soma, a poção mágica que recupera a felicidade. O soma é, em palavras do grande administrador, a religião, o Cristianismo, sem lágrimas.
Passeio pelos capítulos, e acode à minha memória um exemplo inevitável: “O Show de Truman“, esse fantástico filme, ensaio sobre a liberdade que busca, teimosamente, fugir da mesmice e da mediocridade. No meio desse admirável mundo novo -o mundo feliz como se intitula em espanhol esta obra clássica- em expressão emprestada de “A Tempestade” de Shakespeare, há também espasmos de liberdade, gente inconformada e perigosa que não se encaixa no condicionamento necessário que faz as pessoas amarem o destino social de que não podem escapar. São pessoas que ameaçam a ordem social, inquietantes, “porque tem aquela mania de fazer as coisas na intimidade. O que equivale a não fazer nada. Afinal, que se poderia fazer na intimidade?”
Este diálogo vale a reprodução ipsis litteris: (o itálico é meu):
-“Eu quero contemplar o mar em paz. Não se pode nem olhar com esse barulho infernal nos ouvidos” (alguma semelhança com os points do barulho?)
-“Mas eu acho delicioso. E, além disso, não quero olhar”. (é a beta menos, de plástico, encantadoramente insípida)
– “Isso me dá a sensação de ser mais eu, de agir por mim mesmo, e não tão completamente como parte de alguma outra coisa. De não ser simplesmente uma célula do corpo social. O que eu sentiria se pudesse, se fosse livre, se não estivesse escravizado pelo meu condicionamento?” (saudades de um mundo que não tenho e que também não tenho a coragem de buscar. Fazer o quê? Toca em frente, e toma alguns comprimidos de Soma que essas quimeras logo passam…..)
E vale a reflexão que estremece quando, levantando os olhos do livro, nos atrevemos a olhar à nossa volta e, por que não, até dentro de nós mesmos. Maravilha, que seres fantásticos há por aqui, como é bela a espécie humana. É Miranda, a filha de Próspero da Tempestade de Shakespeare quem empresta as palavras. Exclamação que sublinha nossa admiração quando contemplamos a fauna que nos rodeia: executivos embrulhados em roupas de grife, exércitos de modelos (profissão (?) em alta), políticos clonados. Todos “adultos intelectualmente e durante as horas de trabalho, mas criancinhas, no que diz respeito ao sentimento e ao desejo”.
E no meio dessa calmaria amorfa de gente programada para ser feliz, surge John, O Selvagem, que não foi civilizado nem condicionado. Um Truman buscando a liberdade, fugindo do show da vida que se encena no admirável mundo novo. Está contaminado, leu tudo de Shakespeare, conhece-o de cor. Doença sem volta, o câncer do humanismo que se empenha em viver perigosamente porque é isso que vale a pena. E teima em pensar, em buscar a verdade a tudo custo. O grande administrador lhe adverte do risco: “A felicidade é uma soberana exigente, muito mais exigente do que a verdade, quando não se está condicionado para aceita-la sem restrições”. É a turma do deixa disso que em coral polifônico clama quando alguém se atreve a pensar por conta própria, a assumir compromissos árduos e dolorosos, a viver fora dos esquemas convencionais. Quer dizer, quando alguém quer buscar a verdade que, também traz a felicidade, mas de outra espécie, sem facilitadores químicos.
Os clamores dos anos 30, quando o livro foi escrito, hoje comparecem em forma de ONGs para defender os direitos humanos (?), em conchavos políticos e acadêmicos (sim, acadêmicos, que é a politica travestida de cultura, exibindo como passaporte polpudos currículos) que afirmam saber o que de fato nos convém. Algo assim como: “A gente diz o que você tem de fazer, o que funciona, o que é politicamente correto; não perde tempo pensando, não”. Tudo muito bem explicado em menus de TV, enxurrada de modas, protocolos e processos, e multimídia variada. Um admirável mundo novo, enganoso, falso, que transpira mediocridade satisfeita e bem nutrida.
Chegava ás páginas finais do livro, quando me deparei com uma pequena reportagem sobre a recente visita do Papa Bento XVI a Cuba. Chamou-me a atenção a frase final nos créditos: “Joseph Ratzinger: A Love-affaire with the truth“. Fecho o livro e penso em Huxley profético, devastador, contundente. E até imagino uma conversa entre estas duas personagens sobre o mundo que nos tocou viver. E parece-me vislumbrar, lá no fundo, Truman saindo do cenário para engrossar o grupo dos poucos e seletos que decidem ter um caso de amor com a verdade.
Comments 1
Que leitura agradável! Mais que isso enriquecedora!