King Kong: Seus amores a modo de epílogo temporão
King- Kong. Dir: Peter Jackson. Naomi Watts, Adrien Brody, Jack Black, Andy Serkis. 187m. 2005.
Fui assistir King Kong. Gostei imenso. Na hora não soube dizer por que mas havia algo diferente no olhar do gorila. Algo muito humano, delicado; nestes tempos em que nos empenhamos em “humanizar tudo, inclusive os homens”. Paradoxo curioso. Como diriam os antigos: O tempora, O moris!.
O livro -um dos vários que escrevi sobre cinema- já estava pronto. Agora nas revisões finais, diagramação, tipografia. Por conta dos artistas gráficos. Mas as idéias não param, nem pedem licença. E o cinema provoca reflexão, nos faz pensar; o tempo todo, e quando menos esperamos lá está ela, nos surpreendendo, a idéia inesperada, que como filho temporão vem alegrar os pais que já aposentavam a paternidade, pensando em ser avós.
Abro o computador e encontro um email da minha irmã, a professora de filosofia, mãe de família, que educa filhos e alunos com cinema também. Comentários contundentes, que escrevo de cor, ao sabor da lembrança. Dizia algo assim como: “Não vi a primeira versão, a dos anos 30. Mas esta me parece simbólica. Uma tentativa de resgate do verdadeiro feminismo e da masculinidade real, do homem que toda mulher gostaria de ter por perto”. Do homem? –pensei, eu. Mas estamos falando de um gorila. Que homem é esse que se disfarça de gorila e seduz as mulheres? Continuava o email: “Um homem que se bate por ela, defende ela até o final, sonha e vive para ela, e aprende com ela, o tempo todo”. Isto vindo de uma mulher que pensa e ensina sobre feminismo é completamente livre de suspeita. O que veem as mulheres em King Kong, perguntei-me? Vai ver que é o mesmo que eu vi, e senti, e por isso gostei! E, desta surpresa nasceu o presente texto, a modo de um epílogo temporão do livro….que, agora sim, estava terminado.
Tinha lido que o diretor, Peter Jackson, sonhava com fazer King Kong desde criança. Encantou-se com a história e com o filme, o dos anos 30. Os críticos, mesmo respeitando o curriculum de quem triunfou com “O Senhor dos Anéis”, apresentam opiniões variadas. Sobra fita, falta argumento, engasga. Não existe consenso no público. Muitos não assistem porque “imagina só, de novo o gorila; tenho mais o que fazer”. Outros assistem e se decepcionam: andam procurando efeitos especiais. Alguns gostam, e não sabem dizer por que. Eu continuo pensando e decido escrever estas linhas, a modo de epílogo temporão, de um livro que já está escrito.
King Kong foge do circo que lhe preparam e busca, desesperadamente a mulher que o seduziu, que lhe ensinou a apreciar o pôr de sol. Custou-lhe sangue na luta contra os tiranosauros, mas isso é nada quando lembra o olhar, delicado, da frágil comediante que lhe aponta o compasso do seu coração, balançando na beleza do horizonte iluminado. Olha para uma, para outra, para várias e vai descartando as mulheres porque não são aquela única que aprendeu a amar. As palavras de Ortega irrompem na memória clarificando a procura desesperada de Kong: “Nada imuniza tanto o homem de outras atrações sexuais como o entusiasmo amoroso por uma determinada mulher”. E, mais adiante, no seu sublime ensaio Estudo sobre o amor, continua o filósofo: “Se é uma bobagem dizer que o verdadeiro amor de um homem por uma mulher nada tem de sexual, não é menor bobagem pensar que o amor é simples sexualidade”.
Os amores de Kong são fortes, definitivos, apaixonados como poderiam ser os de um herói da Ilíada. Amores que nunca se consumarão, mas que possuem a força do sentir exclusivo. É esse o tipo de homem que uma mulher quer ter por perto? As reflexões continuam, e outros pensadores acodem em nosso auxílio. Diz o médico pensador, Gregório Marañón, que uma das características do instinto sexual é o fato, aparentemente paradoxal, de não criar por si só intimidade duradoura entre o homem e a mulher. E aquilo que poderia pensar-se ser fonte de estreita união, não passa muitas vezes de sintonia biológica. Por experiência sabemos –diz Marañón- que uma conversa, ou um passeio no crepúsculo, podem deixar mais rasto do que uma noite de paixão carnal sem amor verdadeiro, já que somente o espírito, nunca a matéria, deixa sua marca indelével.
As conversas no crepúsculo, os malabarismos da bela que seduzem a besta, e colocam seus corações em sintonia. Uma intimidade da qual carecemos nos dias de hoje, em que tudo é explícito na forma, e pobre, muito pobre, no fundo.
As idéias continuam, e com elas surge a figura de Chesterton que fala dos que querem desfrutar luas de mel, sem casamentos; ou os que, sendo românticos gostam de olhar para a casa desde a porta –que é o sexo- mas sem nunca adentrar-se nela, sem compromisso. E os clássicos, como o dramaturgo Calderón de la Barca, que fala do homem que quer ganhar uma beleza sem amá-la, e conquistam uma formosura ofendida, morta mas não viva.
Anoto, as pressas, estas idéias para ver se ainda há tempo de coloca-las no livro. Foi tudo isso que me impactou quando assisti King Kong? Provavelmente isto, e muitas coisas mais. A possibilidade de voltar a sonhar, de trazer o romantismo de volta, de gritar – com consciência clara das conseqüências – que se os homens, todos, que povoamos este planeta tivéssemos metade da sensibilidade do bom gorila, as coisas andariam melhor para todos. Quem sabe o cinema é um caminho para aprendermos.