Roman Krznaric: Como ser um bom ancestral. A arte de pensar o futuro num mundo imediatista

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Zahar. Companhia das Letras RJ. 2020. 349 págs.

Devo confessar que este livro não é o que eu pensava ser. Nem o livro, nem o autor. A provocação chegou-me de um comentário literário no jornal, anunciando que o escritor australiano presentaria o seu mais recente livro em S. Paulo, algo relativo a conhecer história para viver o presente e preparar o futuro. Lembrei do meu avó que comentava que um dos equívocos de Hitler foi não conhecer história, porque cometeu o mesmo erro de Napoleão, tentando invadir Rússia no inverno. Stalingrado foi, de algum modo, Borodino, com uma diferença de quase 150 anos. Esta lembrança, aliada a saber que o autor tinha trabalhado o tema de empatia -parece que até montou um museu sobre o assunto- fez com que me aventurasse a ler o livro.

Decepcionou-me. Lá onde pensava encontrar reflexões e conselhos de aplicação pessoal -como o comentário do meu avó, que não deixa de ser uma das partes da prudência, memória do passado- somente encontrei advertências de caráter global. Algo que o mortal comum pode observar, contemplar, lamentar-se, mas de difícil aplicação. É certo, que todo o livro está saturado de dados numerosos e de pesquisas notáveis, pois afinal, se autodenomina psicólogo social. E talvez foi a leitura da magnífica obra de outro psicólogo social, A Geração Ansiosa, que contém multidão de sugestões de aplicação prática e imediata, o que me desnorteou.

Depois de ler com calma a primeira parte do livro, e deparar-me com chamados a favor da sustentação do planeta, do aquecimento global, dos protestos ecológicos politicamente corretos -incluída a jovem sueca Greta, e seus desdobramentos- passei a ler em diagonal, para ver se encontrava algo de aplicação prática, quer dizer, qualquer coisa que eu pudesse viver para me tornar um bom ancestral e deixar um legado decente. Não consegui. E não porque as advertências de Krznaric não procedam ou sejam irrelevantes, mas porque um cidadão comum se pergunta como poderia colocar  tudo isso em prática. Se o título fosse, digamos, mais honesto (reflexões para construir um mundo melhor, por exemplo) talvez não teria lido o livro. Mas se a proposta é que você aprenda a ser um bom ancestral deixando um legado para  aqueles que virão após de você, parece-me muita areia para o meu caminhão. Aliás, para a maioria dos caminhões dos mortais comuns.

Mesmo assim, tentei alinhavar alguns trechos -pinçados em voo diagonal- que podem ajudar pessoalmente. A expressão bom ancestral parece que o autor a empresta de Salk, aquele que conseguiu em 1955 a primeira vacina contra a poliomielite. Salk, que não estava interessado em fama e sim em ser útil a humanidade expressou sua filosofia de vida numa única pergunta: “Estamos sendo bons ancestrais?”. Ele acreditava que, assim como herdamos tantas riquezas do passado, devemos também transmiti-las aos nossos descendentes. Estava convencido de que para isso — e para enfrentar crises globais como a destruição da natureza pela humanidade e a ameaça da guerra nuclear — precisávamos de uma mudança radical em nosso panorama temporal, de uma perspectiva cuja direção fosse mais concentrada no pensamento de longo prazo e nas consequências de nossas ações para além de nossa própria vida. Em vez de pensar numa escala de segundos, dias e meses, devíamos ampliar nossos horizontes temporais de modo a abranger décadas, séculos e milênios. Só então seríamos capazes de respeitar e honrar verdadeiramente as gerações vindouras.

Continua Krznaric: “Vivemos numa era de predomínio patológico do pensamento de curto prazo. Os políticos mal conseguem enxergar além da próxima eleição ou da última pesquisa de opinião ou de um tuíte. As empresas são escravas do próximo relatório trimestral e da constante exigência de aumentar o retorno para os acionistas. A grande ironia de nosso tempo é que ao mesmo tempo que estamos tendo vidas mais longas, estamos tendo pensamentos mais curtos. Esta é a era da tirania do agora”. Uma verdade aproveitável e necessária, sem dúvida. Como aplica-la convenientemente, depende muito da posição relevante que cada um ocupe neste mundo. Essa é a questão, que me impulsionou a ler o livro.

Outro trecho que pincei, porque pode ter aplicação no próprio quintal, é o seguinte: “Chegou o momento, especialmente para aqueles que vivem em nações ricas, de reconhecer uma verdade perturbadora: que colonizamos o futuro. Concordo com H.G. Wells — talvez o mais influente de todos os pensadores de futuros — quando diz que “a história humana é, em essência, uma história de ideias”. As ideias que predominam culturalmente são aquelas que moldam a direção de uma sociedade, que determinam o que é pensável e impensável, o que é possível e impossível”. Em outras palavras, cada um vai recolher -ou deixar como legado- aquilo que plantar. Deste modo entra em jogo a paciência e a serenidade, para saber que uma cultura -mesmo na família ou em uma instituição não se implanta da noite para o dia. Mas é preciso persistir.

Também nesse sentido aprofunda o autor anotando: “Eagleton estabelece uma distinção útil entre otimismo e esperança. O otimismo pode ser pensado como uma animada disposição para olhar sempre para o lado positivo da vida, mesmo apesar das evidências. É uma atitude que pode facilmente gerar complacência e inação. A esperança, por outro lado, é um ideal mais ativo e radical que reconhece a real possibilidade de fracasso, mas ao mesmo tempo se agarra à perspectiva de sucesso apesar das probabilidades, movido por um profundo compromisso com um resultado que valorizamos. Este livro é sobre esperança, não sobre otimismo”.

Em outro momento, aborda o tema da impaciência, da recompensa a curto prazo que instintivamente todos procuramos: certificar-se de que nossas decisões funcionam imediatamente. Adverte Krznaric: “Em minha pesquisa para este livro, conversando com psicólogos ou economistas, futurologistas ou funcionários públicos, encontrei repetidas vezes a crença de que somos impulsionados predominantemente por recompensas imediatas e gratificação instantânea, e de que há, como consequência, pouca esperança de que possamos encarar os desafios de longo prazo de nossa era. Temos um sistema de prazer em nosso cérebro que nos impele a buscar prazeres e recompensas a curto prazo, ao mesmo tempo que nos instiga a evitar a dor imediata (…) O que torna o ser humano único é nossa capacidade de pensar o futuro, ou prospectá-lo. Para tomar emprestada uma expressão do psicólogo Martin Seligman, somos Homo prospectus, uma espécie guiada pela imaginação de alternativas que se estendem no futuro”.

Obviamente a moderna tecnologia tem culpa no cartório do imediatismo, e isso também é de aplicação pessoal óbvia: “ Forças como a tecnologia digital estão nos impelindo para horizontes ainda mais curtos do que no passado, de modo que uma parcela cada vez maior de nossa atividade está sendo concentrada no presente. O futuro está se fechando rapidamente sobre nós. A tecnologia digital tem um poder sem paralelo para monopolizar nossa atenção imediata. Nunca toleraríamos um gps que insiste em nos conduzir para o destino errado, embora seja exatamente isso o que acontece com tecnologias que nos dirigem através do espaço informacional. Fazer imergir num presente digital que nos desvia de nossos próprios objetivos e com o qual o pensamento de longo prazo dificilmente pode competir”.

Reparo, enquanto escrevo, que os trecho que fui sublinhando são de grande utilidade e coincidem com ideias que apresento frequentemente nas minhas aulas. Comunicar-se rapidamente e com facilidade, chegar antes a um lugar através de aplicativos de deslocamento, ter conexões mundo afora é ótimo. Mas é também ingênuo pensar que esses recursos modernos vão nos dizer o quê temos de comunicar, ou onde devemos nos dirigir. Isso fica por conta da densidade e das decisões de cada um. Falar e correr, sem pensar, não leva a nada. Como dizia Agostinho de Hipona: Bene curris, sed extra via. Corres bem, mas fora do caminho. Quer dizer, não sabes onde vás, nem por quê, nem o que queres com essa decisão. Dá para pensar, e muito.

O apelo a ser bom ancestral aparece continuamente no livro: “Se realmente desejamos nos tornar bons ancestrais, precisamos expandir nossa concepção de legado e pensar nele não só como uma rota para a glória pessoal ou como uma herança para nossa prole, mas como uma prática de vida cotidiana que beneficia todas as pessoas futuras. É nossa obrigação e responsabilidade aumentar o legado. Nossa primeira responsabilidade é ser um bom ancestral Estamos tão ocupados vivendo no presente, presos no curto agora de deadlines de trabalho e mensagens instantâneas, que a ideia de ser apenas um elo numa vasta corrente de humanidade que se estende pelo tempo cosmológico poderia parecer algo de difícil compreensão. Nossa cultura individualista de autoajuda e de “obsessão pelo número um” torna isso ainda mais desafiador. O resultado é o rompimento dos nossos laços intergeracionais e o encolhimento de nossos horizontes temporais para o tempo presente. Se pensamos em deixar algum legado, ele está em geral limitado a apenas uma ou duas gerações a partir de hoje, e dentro dos limites de nossa árvore genealógica”.

É nessa perspectiva de entusiasmo pelas gerações futuras que o livro, ao meu modo de ver, se perde numa viagem pouco motivante. Obviamente contribui com grandes verdades, mas de aplicação restrita. Uma delas diz assim: “Se você pedisse a um político de carreira comum para tomar uma importante decisão política baseada num olhar para daqui a duzentos anos, provavelmente ele o expulsaria de seu escritório entre risadas. Mas para muitos povos indígenas, essa é uma tradição cultural profundamente respeitada”. O livro seria uma boa receita para políticos e pessoas responsáveis por decisões globais, mas vale lembrar que também são seres humanos, e por tanto, expostos à tentação do imediatismo. Cada um é fruto do seu tempo.

Quando o autor volta a colocar os pés no chão, aparece novamente o recado de utilidade. “Descobri que uma profunda imersão no pensamento sobre o legado familiar pode ser uma ponte para uma noção mais transcendente de legado, estimulando-nos a pensar além dos confins da herança biológica. Um legado não é algo que deixamos, mas algo que cultivamos ao longo de nossa vida inteira. Não é apenas uma herança escrita num testamento, mas uma prática diária. Cultivamos nosso legado como pais e amigos, como trabalhadores e cidadãos, como criadores e ativistas e como membros de comunidades. É uma questão de sermos conscientes das consequências de nossas ações no futuro distante, seja por meio do modo como fazemos compras ou do modo como votamos”. Lembrei do filme Gladiador quando Maximus diz que o que fazes nesta vida, ecoa pela eternidade. Essa é uma frase de um bom ancestral, da fácil comprovação,  agora que acaba de estrear a segunda parte.

Alguns exemplos -dentre os muitos que recolhe nas suas pesquisas- são ilustrativos e inspiradores. Por exemplo a Sagrada Família de Antoni Gaudí em Barcelona: “Iniciada em 1882, ela talvez seja o mais longo projeto de construção contínuo no mundo hoje, com a conclusão prevista para ocorrer, finalmente, em 2026. Gaudí, que trabalhou no local durante seus últimos 43 anos de vida, nunca foi um arquiteto de apressar as coisas, e mandaria derrubar uma parede alegremente se ela não lhe parecesse certa. “Meu cliente não está com pressa”, ele costumava dizer, referindo-se a seu supervisor divino. Mas o fato de construções religiosas estarem entre os exemplos mais conhecidos de planejamento a longo prazo pode se dever menos a terem um cliente tão paciente quanto Deus e mais à longevidade das próprias instituições religiosas”.

E da construção dos esgotos de Londres, para combater o Grande Fedor em 1858, “uma lição histórica que mostra que planejamento radical de longo prazo pode ser motivado por uma crise. É a essência não do pensamento de catedral, mas do que concebo como “pensamento de esgoto”. Às vezes, nada exceto uma crise pode sacudir autoridades e instituições dominantes e tirá-los de sua letargia”. Também temos experiências dessa mobilização de cara ao futuro com as crises recentes pela pandemia do COVID. É o caso do Hospital Isabel Zendal, construído em Madrid, homenageando a enfermeira que no início do século XIX levou até América a vacina contra a varíola, e da qual eu, que sou de Madrid, nada sabia até ler o  magnífico livro de Javier Moro.

Uma última advertência para fechar estas linhas dispersas, inspirada por um comentário interessante e necessário. Escreve Krznaric: “O tempo se transformou numa fonte de poder. Talvez por isso seja hora de ter mais conversas sobre a morte. O que é realmente necessário é um estímulo para que se pense na mortalidade, não na aposentadoria”. O sentido de finitude sempre traz perspectiva do legado a deixar. Do epitáfio que, como sugeria  um bom amigo, temos de pensar em pedir que coloquem no nosso túmulo. O autor lembra citando a prosa poética de um escritor uruguaio: “A utopia situa-se no horizonte. Quando eu me aproximo dois passos, ela recua dois passos. Se prossigo dez passos para a frente, ela rapidamente escorrega dez adiante. Por mais longe que eu vá, nunca poderei alcançá-la. Qual é, então, o objetivo da utopia? É o que nos faz avançar”. Não penso que a utopia seja propriamente um motor, talvez sim o ideal e a perspectiva seria a correta tradução. E ai sim, com essa perspectiva, trabalhar com persistência, no dia a dia. Sem distrair-se com imediatismos, com olhos de eternidade, em palavras de um santo moderno.

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