José Ortega y Gasset: Meditação sobre a Técnica

Pablo González BlascoLivros 1 Comments

Livro Ibero-Americano Ltda. Rio de Janeiro, 1963. 125 págs.

Volto sobre esta obra de Ortega, que li há 30 anos, e da qual guardei uma ideia luminosa: a técnica é o esforço para poupar esforços. Hoje, com ocasião de um Congresso que pretende aliar técnica e humanismo, debruço-me cuidadosamente sobre as páginas deste curso -foi um curso, não propriamente um livro- que Ortega deu na universidade de verão em 1933. As palavras do filósofo espanhol, quase um século depois, se revestem de uma advertência profética que, confesso, não adverti quando li por primeira vez há três décadas.

Assim escreve Ortega, de modo claro e contundente: “A técnica é o esforço para poupar esforço, ou, dito de outra forma, é o que fazemos para evitar, total ou parcialmente, as tarefas que as circunstâncias nos impõem”. E logo a seguir adverte: “Todos concordam com isso; mas é curioso que apenas uma de suas faces, a menos interessante, o anverso, seja compreendida, e o enigma que seu reverso representa não seja percebido. Este é o enigma:  para onde vai esse esforço poupado e não utilizado? A questão se torna mais evidente se usarmos outros termos e dissermos: se, por meio da ação técnica, o homem se isenta das tarefas impostas pela natureza, o que ele fará, quais tarefas ocuparão sua vida?”.

A modo de uma primeira conclusão escreve: “A questão, portanto, não é adjacente, mas pertence à própria essência da técnica, e isso não pode ser compreendido se simplesmente confirmarmos que ela economiza esforço e não nos perguntarmos como o esforço poupado é gasto. A técnica, cuja missão é resolver problemas para o homem, tornou-se subitamente um novo e gigantesco problema (…) E por isso ínsito que o significado e a causa da técnica residem fora dela; ou seja, no uso que o homem faz de suas energias vagas, liberadas por ela. A missão inicial da técnica é esta: dar ao homem a liberdade de ser ele mesmo”.

Bastariam estas anotações para sublinhar de modo claro, o dilema que hoje -mais do que um século atrás- vivemos: poupamos tempo, esforços, graças aos avanços tecnológicos. Mas não sabemos o que fazer com esse capital poupado, e não será a técnica a que nos indique como utilizá-lo proveitosamente. Um dilema que requer uma explicação, que é também uma advertência. Ortega a coloca a seguir: “Porque não fazer nada é esvaziar a vida, não é viver; é incompatível com o homem. A questão, longe de ser fantástica, começa agora a se tornar realidade (…) Para o homem, existir não é  existir como o homem que ele é, mas apenas a possibilidade disso e o esforço para alcançá-lo. Portanto, nossa vida é uma tarefa pura e uma tarefa inexorável. A vida de cada um de nós é algo que não nos é dado, pré-fabricado, mas algo que deve ser feito”.

Nesta altura, as ideias em arco voltaico  e as muitas e repetidas leituras que tenho feito de Ortega, trazem à memória pensamentos memoráveis: a vida nos é disparada a queima-roupa, quer dizer, exige protagonismo, proatividade como diríamos hoje. E para tal, a cultura –que nos salva do naufrágio vital– é recurso imprescindível. Em outras palavras, que não basta desfrutar passivamente do esforço poupado pela técnica, mas é preciso se posicionar para construir a própria vida nesse novo contexto.

É ai onde começam os problemas….que a técnica não resolve. Anota Ortega: “A determinação do homem de viver, de estar no mundo, é inseparável de sua determinação de estar bem. Além disso, para ele, a vida não significa simplesmente ser, mas bem-estar. Mas o homem é homem porque, para ele, existir significa, desde o início e sempre, bem-estar; é por isso que ele é por natureza um técnico, o criador do supérfluo. Homem, técnica e bem-estar são, em última análise, sinônimos. Não há dúvida: o homem é um animal para o qual apenas o supérfluo é necessário”

A técnica, o esforço poupado, facilmente escoam-se para o bem estar -o que não é ruim- mas dai ao comodismo e à passividade o caminho é curto, fácil, automático. Dormir no berço esplendido que a técnica nos proporcionou. Para acordar, e preciso uma decisão vital, um motivo, um sentido na vida. E nesse ponto onde o processo trava, como bem adverte o filósofo: “Talvez a doença básica do nosso tempo seja uma crise de desejos, e é por isso que todo o fabuloso potencial da nossa técnica parece não nos servir para nada (…)Não se pense que desejar é uma tarefa fácil. Observemos a angústia específica vivenciada pelos novos ricos. Eles têm a possibilidade de realizar seus desejos, mas descobrem que não sabem como ter desejos”. Em outras palavras: progresso técnico carente de ideais, é como enxugar gelo….esperando que do gelo surja espontaneamente a bebida –o scotch, o gin-tônic– sem nenhum esforço. 

O curso que Ortega deu compunha-se de varias lições ou conferencias, que são, todas elas, variações sobre o mesmo tema, acima já enunciado. Por exemplo : “Podemos definir a técnica como a reforma que o homem impõe à natureza para satisfazer as suas necessidades. Estas, como vimos, eram imposições da natureza ao homem. O homem responde impondo uma mudança à natureza, por sua vez. A técnica é, portanto, a reação energética contra a natureza ou circunstância que leva à criação, entre esta e o homem, de uma nova natureza sobreposta à primeira, uma sobrenatureza. A técnica é o oposto da adaptação do sujeito ao meio ambiente, visto que é a adaptação do meio ambiente ao sujeito. Isso por si só já seria suficiente para nos fazer suspeitar que se trata de um movimento na direção oposta a todos os movimentos biológicos”.

Também o divórcio entre o que na academia se ensina de técnica, e o uso adequado dela, assim como as suas limitações: “Nas escolas especiais, pelo menos, algumas pessoas aprendem uma técnica específica. Mas mesmo nessas escolas, não se ensina o que a técnica representa na vida humana, sua conexão com outros fatores, sua gênese, sua evolução, suas condições, suas possibilidades e seus perigos (…) A técnica em si não define o programa; quero dizer que a técnica é predeterminada pelo objetivo que deve atingir. O programa vital é Pré-técnico. O técnico, ou a capacidade técnica do homem, é encarregado de inventar os procedimentos mais simples e confiáveis ​​para atender às suas necessidades. Mas estes, como vimos, também são uma invenção; são o que, em cada época, povo ou pessoa, o homem aspira ser. Há, portanto, uma primeira invenção Pré-técnica, a invenção por excelência, que é o desejo original”.

As facilidades que a técnica proporciona não dispensam a construção do próprio projeto de vida: “Este fenômeno radical, talvez o mais radical de todos — ou seja, que nossa existência consiste em estar cercado por facilidades e dificuldades — confere seu caráter ontológico especial à realidade que chamamos de vida humana, ao ser do homem”.

E para tal, como bem sublinha Ortega, é necessário pensar, contemplar, decidir. Eis outra variação muito interessante sobre a necessidade do ócio: “Os antigos dividiam a vida em duas zonas: uma, que chamavam de otium, o lazer, que não é a negação da ação, mas sim a busca do ser humano, que interpretavam como comando, organização, interação social, ciência e artes. A outra zona, preenchida com o esforço para satisfazer as necessidades básicas, tudo o que tornava esse otium possível, chamavam de nec-otium, destacando claramente seu caráter negativo para a humanidade”. Se a técnica nos faz mergulhar no negócio -no ativismo- sem deixar espaço para o ócio criativo, também enxugaremos gelo, ou como dizia Agostinho de Hipona –bene curris, sed extra viam- correndo muito bem, voando, mas….fora do caminho.

A técnica -necessária, em evolução crescente- é algo que devemos incorporar, digerir, de modo fisiológico, assimilando-o, sem abrir mão da nossa condição humana, sem delegar na técnica o que ela não consegue, nem nunca conseguirá fazer. Mais uma variante que Ortega introduz no seu curso: “Das forças criadas na tecnologia temos plena consciência de que são superabundantes, e ainda assim o desconforto é enorme, pois o homem moderno não sabe o que ser; falta-lhe a imaginação para inventar o enredo de sua própria vida (…) Se a vida não é a realização de um projeto, a inteligência torna-se uma função puramente mecânica, sem disciplina ou direção. Esquece-se com demasiada frequência que a inteligência, por mais vigorosa que seja, não pode tomar sua própria direção a partir de si mesma; não pode, portanto, realizar verdadeiras descobertas técnicas. Ela, por si só, não sabe qual, entre as infinitas coisas que podem ser “inventadas”, deve ser preferida, e se perde em suas infinitas possibilidades. Somente em uma entidade onde a inteligência funciona a serviço de uma imaginação, não técnica, mas criadora de projetos vitais, a capacidade técnica pode ser constituída”.

A luz que permite ao homem assimilar a técnica, fazer bom uso dela, alavancar o progresso sem perder a dimensão humana, encontra-se numa dimensão diferente da própria técnica. Talvez esteja ai o descaminho que, paradoxalmente, a técnica tem trazido: “O homem de hoje está, em sua essência, perplexo justamente pela consciência de sua ilimitação fundamental. E talvez isso contribua para que ele não saiba quem é — porque, achando-se, em princípio, capaz de ser tudo o que se possa imaginar, ele não sabe mais o que realmente é. A técnica, aparecendo por um lado como uma capacidade, em princípio ilimitada, faz com que o homem, forçado a viver pela fé na técnica e somente nela, seja esvaziado de vida”.

Uma última citação de Ortega me ajuda a acabar estas reflexões: “Porque ser técnico, e somente técnico, é poder ser tudo e, consequentemente, não ser nada em particular. Por ser tão cheia de possibilidades, a técnica é uma mera forma oca — como a lógica mais formalista —, incapaz de determinar o conteúdo da vida. É por isso que estes anos em que vivemos, os mais intensamente técnicos que já existiram na história da humanidade, estão entre os mais vazios”. Palavras que ecoam a um século de distância, mas de uma atualidade incisiva e manifesta. Uma luz que orienta a todos os que estamos envolvidos em aventuras educacionais, para ajudarmos as novas gerações -que dominam a técnica- a procurar o sentido, e investir o esforço poupado, em dimensões que não são técnicas. Talvez nós, que tivemos o privilégio de poupar menos esforços -o que nos dava tempo para pensar e refletir- temos que contar essa história aos que nasceram com um celular na mão, e se movem na vida a golpe de aplicativos. Fazer eles sonharem com o tempo que eles poupam e que poderiam investir -conscientemente, sem delegar às redes sociais ou ao click fácil- nas decisões que constroem o ser humano: livre e feliz!

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