47 Ronins: Uma avalanche de virtudes que carecemos!
47 Ronins. Diretor: Carl Rinsch. Keanu Reeves, Hiroyuki Sanada, Min Tanaka, Kou Shibasaki, Tadanobu Asano, 119 min. (2013)
Reconheço que minha sensibilidade é insuficiente para apreciar a fascinante cultura oriental; escapam-me muitos dos detalhes, riquíssimos, que embrulham suas historias. Mesmo assim, aventurei-me com este filme, apesar de ter ouvido comentários não muito favoráveis. “Uma mistura de lenda épica com fantasias fora de lugar: bruxas, criaturas raras, excesso de imaginação. Um filme esquisito.”. Apertei o play e já nos primeiros fotogramas escutei o recado que me seduziu. “No Japão Feudal as províncias eram governadas por um Shogun, e a paz mantida pelos Samurais a qualquer custo. Se um Samurai fracassasse ou decepcionasse o seu senhor, sofria a pior vergonha em toda a comunidade japonesa: tornava-se um Ronin. Saber a história dos 47 Ronins significa saber a história de todo o Japão”.
Não pude menos de lembrar uma outra experiência que vivi há 10 anos, quando assisti O Último Samurai, e me emocionei com as lendas do Japão Feudal, e com a enxurrada de virtudes humanas que ornam a vida dos Samurais. Muitas vezes usei cenas desse filme nas minhas conferências, sempre com alto impacto. Recordo um aluno de medicina que se aproximou de mim no final de uma palestra, quando eu estava recolhendo o meu computador e me disse emocionado: “Professor, eu quero ser um Samurai”.
Os 47 Ronins são Samurais degradados pelo Shogun porque o Samurai líder decepcionou com o seu comportamento, atacando um hóspede. Naturalmente o hóspede não era um inocente, mas um ser invejoso, mancomunado com uma bruxa malvada que arquitetou toda a farsa. Como não é possível provar a conspiração, e a queixa não é recurso contemplado no catálogo de atitudes de um Samurai, o líder aceita o castigo e o desterro. Juntam-se a ele todos os seus homens –Samurais genuínos- que decidem correr a mesma sorte do seu chefe.
A cena do desterro evocou na minha memória aquela outra onde se desterra um inocente que também está carregado de razão: El Cid. O filme entrava num clima que, também pela similitude com a Espanha medieval, me agradava. Relaxei e me dispus a saborear essa historia que as minhas lembranças atrelavam à Reconquista espanhola nas terras de Castela. E não poderia faltar até uma personagem que apresenta analogia com Dona Ximena –a filha do líder desterrado- e os amores impossíveis com um Keanu Reeves que sintoniza bem com o ambiente nipônico. “Eu te buscarei nos mil mundos possíveis, em todas as vidas”…..A voz de dona Ximena aproximando-se de Rodrigo de Vivar, o único homem em Castela capaz de humilhar um Rei e partilhar o cantil com um leproso, ecoava nas minhas lembranças. “Rodrigo, leve-me com você. Estando juntos serei feliz”. El Cid diz: “Não tenho onde te levar, vou para o desterro”. E Ximena –aquele olhar quase oriental da Sofia Loren envolvido na inesquecível trilha sonora, acrescenta: “Já que o meu homem não é um homem comum, o meu destino também não será comum”.
Estou convencido que cada filme tem o seu momento, o tempo certo para ser visto. Nesta ocasião o meu plano temporal estava definido por duas retas. Uma, a primeira, um vídeo que assisti e recomendo vivamente (vídeo abaixo). Trata-se de um comentário à sugestiva obra do Prof. Antonhy Esolen, do Providence College: “Dez maneiras de destruir a imaginação do seu filho” (Ten ways to Destroy the Imagination of your Child).
Os conselhos lá comentados são, naturalmente, um recurso para apontar as atitudes erradas e cada vez mais comuns, que pais e educadores empregam e que conduzem ao desfecho fatal: destroçar a imaginação da criança, fazer dele um produto meia boca, em série, que infelizmente contemplamos diariamente.
Lá pelo meio do vídeo, destacam-se dois “conselhos” que estão relacionados: difame o heroico e o patriótico, diminua todos os heróis, ensine os seus filhos a rir e a desacreditar das virtudes difíceis de conseguir (aquelas que naturalmente você mesmo não tem), ridicularize a excelência, ou melhor, democratize-a: todos são excelentes, todos são heróis, mesmo por fazer o café da manhã na hora. Há muitos outros conselhos nesse vídeo que são suculentos, sugestivos, e desafiantes: um verdadeiro gabarito para tirar a limpo os modos como se educam –quer dizer, se deformam- os jovens hoje. Por exemplo, as explicações prosaicas sobre os fenômenos transcendentes ou notáveis reduzindo-os com um sorriso e rebaixando-os com a frase chavão: “é somente isso, não esquente”. É claro, que não há nenhuma obrigação de concordar com o educador americano; podem se ignorar as advertências ou desprezá-las por parecerem exageradas. Mas tudo indica que desconhecer o tema que ele coloca acabará por levar até à via fácil que conduz à mediocridade.
A segunda reta é por conta da enxurrada de virtudes que o filme destila. Virtudes das que carecemos no mundo de hoje. Lealdade, fidelidade, compromisso, cumprimento do dever, consciência de missão. Não se trata de ser pessimista; a virtude sempre foi um desafio a ser conquistado, um divisor de águas que separa as pessoas de acordo com a sua fibra moral, com a sua estatura como cidadão e ser humano. Mas vivemos momentos onde as atitudes virtuosas –que comprometem toda a existência- brilham pela ausência. Nunca se falou tanto de ética, em momentos onde o sentido do termo está desbotado. Ortega falava do clamor ético num mundo que não se rege por esses parâmetros, assemelhando-o à dor do membro fantasma. A dor do membro que foi amputado, e continua doendo: a dor da ausência.
Sim, é verdade que os 47 Ronins convivem com um universo de monstros, bruxas, criaturas diabólicas e fantasiosas. Mas também são notáveis as prioridades e o valor da virtude: da palavra empenhada, da sinceridade de vida, da lealdade a toda prova, da integridade. Um Samurai feito Ronin encontra-se degradado no seu status, mas conserva as virtudes que viveu como Samurai. Conserva-as porque as incorporou, fazem parte do seu ser, não são um apêndice, ou uma habilidade comportamental treinada num curso de liderança feito no final de semana. São constitutivas. Por isso, assinam o compromisso com tinta e com sangue, sublinhando que vida e missão são inseparáveis. A missão é a razão de ser da própria vida. “Triste de quem é feliz, e vive porque a vida dura –escreve Fernando Pessoa- nada na alma lhe diz, mas que a lição de raiz: ter por vida a sepultura”. Quem não tem missão, vive como um morto vivo.
Hoje convivemos com a mentira –a nível institucional- que nega o óbvio; com homens públicos que se desdizem, com uma nutrida fauna do “deixa disso”, com argumentos de articulação que não convencem nem aos próprios autores dos mesmos. E com a deslealdade a todo e qualquer nível: basta cair na desgraça –quer dizer, que apareçam teus podres- que em poucos minutos se dá a fuga de todos os que andavam do teu lado (também repletos de podres, é claro, mas ainda ocultos) e negam te conhecer. É o salve-se quem puder dos medíocres. Integram-se nas artimanhas nefastas –aquilo que Balzac chamava a secreta maçonaria das paixões- e desparecem quando o bicho pega.
Os 47 Ronins relatam, no dizer do narrador, a história do Japão. Até hoje se celebra a data em sua honra, e têm a admiração desse povo que devolve para a Cruz Vermelha Internacional 150 milhões de dólares que lhes emprestaram para reconstruir os desastres causado pelo Tsunami anos atrás, e que sobraram. Devolver o que sobra, depois de reerguer-se da tragédia. Está tudo dito.
Sim, tinha razão o meu aluno: eu quero também ser um Samurai, um Ronin que seja. Sinto a dor do membro fantasma, da ética que –trazida e levada- nos é amputada diariamente nas notícias que lemos no jornal, nas ponderações da mídia, no péssimo exemplo de quem está no comando e carece por completo das virtudes que constituem a integridade do ser humano. E ainda dão risada dos heróis –como a raposa da fábula, para quem as uvas estavam verdes, fora do seu alcance. E desaparecem quando a coisa fica difícil. Que história vamos contar para as gerações futuras? A opção cabe a cada um de nós.
Comments 5
Pablo, interessantissimo o comentario do filme 47 Ronins. Adorei ler
Excelente filme!
Pingback: 47 Ronins: Uma avalanche de virtudes que carecemos!, por Pablo González Blasco | IFE Campinas
Excelente filme mesmo, sugiro a versão de 1958 (Chushingura) a cores de Kunio Watanabe, com Kazuo Hasegawqa, sob o título em portugues de “Os 47 Ronins”. Épico realista, esta história é um dos melhores exemplos do “Bushido”: código de honra do samurai.
Maravilhada fiquei quando assisti esse filme. Assisto quantas vezes passar. Meu aplauso, tanto para o filme, quanto para a resenha escrita por Pablo González Blasco. Você captou toda a essência e sensibilidade desta grande obra. ?