A 100 Passos de um Sonho: O doce paladar da simplicidade da vida
The Hundred-Foot Journey (2014). 122 min Diretor: Lasse Hallström. Helen Mirren, Om Puri, Manish Dayal.
A recomendação chegou-me de uma velha amiga; uma professora americana, com quem divido preocupações e projetos no mundo da educação médica. Foi durante um Congresso em Milão, onde ela coordenava um workshop que ostentava um título desafiante: “Fortalecendo o académico do século XXI”. Os outros participantes do painel apresentaram os planos de integração global da AAMC (a associação que reúne todas as faculdades de medicina americanas), intercâmbios, publicações, formação continuada. A parte que a mim correspondia no workshop para revigorar o académico do futuro ficava por conta …..do cinema. Os americanos adoram ver como utilizamos seus produtos de Hollywood para ensinar relações humanas, empatia, ética, e todos esses valores que cercam o mundo formativo do médico, integrados numa palavra mágica que está na moda: profissionalismo. Uma dimensão tão necessária como difícil de ensinar, onde as humanidades e as artes –o cinema, sem dúvida- tem uma contribuição necessária.
No jantar daquele dia, onde naturalmente os filmes vieram a tona, ela me sugeriu este título, de modo discreto, quase pedindo desculpas: “É um filme simples, um filme B, mas desconfio que você vai gostar”. De volta ao Brasil, me fiz com uma cópia e me dispus a assistir. Sem compromisso, sem grandes expectativas, na verdade atendendo um pedido que chega de quem te conhece. Comento isso, porque não fosse esse o meu estado de espírito, teria desistido nas primeiras cenas. Ruas da Mumbai, uma família que ganha a vida cozinhando comida indiana, e essa mistura oriental que a muitos encanta mas a mim não seduz o mais mínimo. Devo confessar que não tenho um gosto especial pelo cinema Indiano, embora reconheço ter visto alguns filmes inesquecíveis. Deve ser falta de sensibilidade da minha parte. Nem sempre se capta o que interessa, o que o autor quer dizer. É um cinema de autor, os atores são improvisados, ou pelo menos desconhecidos. Ou talvez seja perceber que os que me acompanham vendo o filme não sintonizam. Deve tratar-se de uma afetividade em outra frequência, emoções de diferente cumprimento de onda, algo que me escapa.
Dizem que as produções de Bollywood são as mais numerosas do mundo; aliás, como as faculdades de medicina. Índia é o pais que mais escolas médicas tem neste momento, seguido muito de perto pelo Brasil. As de USA , mesmo com todo o aparato da AAMC, ficam bem atrás. Uma desproporção cuja análise fica fora de contexto neste momento, embora permaneça na minha mente, como um interrogante permanente. E voltando ao nosso filme. Um filme com indianos, que começa com culinária Curry e variações, mas que possui dois ingredientes que me fizeram suspeitar algo diferente, mantiveram minha atenção: um diretor sueco, e uma atriz inglesa de indiscutível categoria. Serão fotogramas com sabor colonial, misturado com Gin-tonic? Esperar para ver.
Um filme simples, boa definição da nossa professora americana. E não é pouco, pois são as coisas simples da vida, as que em definitiva importam, as que de fato nos seduzem. O mundo globalizado nos conecta com o universo, e nos faz perder sintonia conosco mesmo, com as raízes, com o que de fato somos, e valorizamos. Sentimos a perda –como a dor do membro fantasma, dizia Ortega, que foi amputado, mas reclama com gritos surdos a existência- e tentamos recuperá-la de modo artificial. E se fazem cursos –treinamentos, chamamos hoje- para tentar reaprender o que deveríamos ter absorvido no convívio familiar, nas conversas à mesa, no fogo lento em que se cozinha a personalidade, e se consegue a solidez do caráter. Mas a vida nos envolve na correria, ninguém dispõe de tempo para jogar conversa fora, sentar-se para ver um entardecer, dialogar com o silencio que rodeia a reflexão construtiva. Este filme relata uma viagem, um sonho que se encontra a cem passos, quer dizer, muito perto de nós. Como dizia Guimarães Rosa: “O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe!” Somos, de fato, complicados.
Os filmes que envolvem culinária tem crescido no catálogo de opções cinematográficas, com boa aceitação. Talvez porque a arte de cozinhar guarda estreita relação com a construção da vida, do carácter. Ambos requerem ingredientes certos, constância, atenção, e, sobre tudo, respeitar os tempos fisiológicos em que se dão as transformações. A boa culinária –como a boa educação- não combina com o fast-food, com as opções rápidas, com os menus de aplicativos. É outro ritmo, uma melodia artística –como uma sinfonia- que deve obedece os compassos previstos, dar entrada aos diversos instrumentos, respeitar as cadências. Tudo é um arte: a música, a culinária e, também, a educação.
Esta viagem de cem metros, contém tudo isto, temperado com as especiarias milenares do oriente. Mas há muito mais. É um canto à simplicidade, à honestidade, à família. Alerta sobre ingredientes perigosos, como a inveja corrosiva; e põe em guarda contra a avareza destrutora, um veneno. Ensina a refletir sobre como manejar os fracassos sem desanimar e, especialmente, como administrar os sucessos, sem perder de vista quais as opções que devem ser feitas na vida.
Enquanto vou alinhavando estes comentários, penso que me aconteceu como aos navegadores do século XVI que partiam em busca das almejadas especiarias. Pensei que me encontraria apenas com sabores da Índia e tropecei com outro continente de per meio –uma América saturada de valores que se misturam com boa culinária-, onde a competência técnica na cozinha concorre com uma presença elegante dos atores no palco. Uma surpresa agradável e fecunda.
É sabido que os comentários que colocamos neste espaço fogem de relatar o argumento dos filmes; muitas vezes nem mesmo o esboçam. Essa atitude tranquiliza alguns –que sabem não contaremos a trama- embora também seja motivo de críticas: afinal –dizem- você da o seu recado, com motivo de um filme do qual acabas nem falando. Outros, de modo mais direto: você conta a tua vida com os fotogramas que outros produzem. É, sem mais, um estilo como qualquer outro. Por tanto, sem discussões. Mas, neste caso vou fazer uma pequena exceção, porque há uma cena que merece ser descrita, para chamar a atenção do espectador. Um momento inesquecível.
Trata-se da confecção de uma omelete a quatro mãos. Hassan, o aprendiz de Chef sente-se pronto e apresenta o desafio à grande dama da culinária francesa. Essa grande dama não é outra que Helen Mirren, uma atriz absolutamente britânica, e absolutamente formidável. A mesma que interpretou a Rainha Elizabeth II, com toda a classe da sua sereníssima majestade –era a própria Rainha da Inglaterra na tela- e que agora fala inglês…. com sotaque francês!. A cena é peculiar, encantadora. Hassan tem as mãos vendadas, por conta de um triste acidente. “Gostaria de fazer uma omelete para a senhora, mas terá de me ajudar a quebrar os ovos”. Madame Mallory, quebra os ovos, segue docilmente as instruções do jovem chef, que pilota cada um dos seus movimentos com suaves toques das mãos vendadas. Mais pausa na hora de bater os ovos, um pouco mais deste ingrediente, e deste tempero. A experiente senhora mostra a surpresa -apenas com os gestos, nenhuma palavra, somente música suave- conforme obedece as instruções. E no final, experimenta a omelete que ela confeccionou sob o comando de Hassan. Uma tomada de costas –Madame Mallory sentada- que mostra a reação de espanto, de encantamento, no balanceamento dos ombros, no suspiro que mal se percebe. Até de costas Helen Mirren é uma atriz superlativa. Vale um reprise, mesmo no final do filme, para saborear esta iguaria cinematográfica.
Um filme simples, sim. Mas não um filme B. As costas do Caribe interpondo-se na viagem até a Índia, mostrando um mundo desconhecido, maravilhoso. Uma experiência estética, bálsamo de bom gosto, que delicia o paladar da alma, empurrando-nos para a força imperiosa da simplicidade de vida. Sem complicações. Precisa, sutil, quente e fria ao mesmo tempo, derretendo-se na boca. Como a omelete de Hassan. Como a elegantíssima e sublime interpretação de Madame Mallory.
Comments 1
Bem analisado. Enfim você comentou o filme e me animou a assistí-lo.