Theodore Dalrymple: “Podres de Mimados”
Theodore Dalrymple: “Podres de Mimados. As consequências do sentimentalismo tóxico”. E Realizações. São Paulo. 2015. 200 pgs.
Transcorridos pouco mais de 8 meses do meu primeiro encontro com Dalrymple e da sua crítica da sociedade atual decido enfrentar uma nova entrega, seduzido pelo título impagável. Costumo deixar passar um ano antes de ler outra obra do mesmo autor, para sedimentar as ideias (dele, na minha cabeça), e cozinhar as próprias, que são as que em definitivo permanecem. Mas reconheço que o apelo do tema -e as vivências diárias saturadas de espasmos emotivos pipocando à nossa volta- encurtaram a minha rotina de quarentena.
Como sempre, o autor embasa seus comentários em histórias reais, muitas delas fruto da sua experiência como psiquiatra em cadeias, prisões e cenários análogos. Apresenta relatos pontuais, dos quais arranca para desenvolver uma ideia; ou uma explicação, que acaba se convertendo numa análise sociológica. Os relatos são a pista de decolagem para essa construção antropológica.
E por isso, baseado na sua experiência atendendo destroços humanos (nas penitenciarias e manicômios) o primeiro ataque é para Rousseau, o pai da desastrosa educação moderna que insiste em afirmar que o homem é bom por natureza, e que os sofrimentos do homem moderno são fruto da crueldade do racionalismo burguês. Assim, o jeito de criar adultos melhores seria assegurar que essa degradação não acontecesse, encontrando o modo de preservar sua inocência e sua bondade.
Estão sentadas as bases para uma teoria romântica da educação que desemboca num verdadeiro emocionalismo político, como diz Dalrymple. E aponta: “Assim a política das vítimas acabou por se constituir numa desculpa para a incapacidade de enfrentar a vida adulta (…) Hoje em dia as crianças rapidamente formam bandos para defender seu direito inalienável ao egoísmo absoluto (…) A notícia de que todos nós somos bons por natureza é extremamente gratificante, por sugerir que todas as nossa culpas não nos pertencem sob nenhum aspecto, devendo todas ser atribuídas a algo externo a nós. Permitir que a criança siga os ditames de sua vontade é extremamente conveniente para famílias ocupadas, onde todos trabalham. Disciplinar as crianças demanda juízo; o juízo demanda reflexão, o que demanda tempo”.
Quer dizer, tudo começa cedo e mal estruturado. Não é surpresa deparar-se com o variado elenco que o autor comenta a seguir, onde o grande protagonista -e certificado de credibilidade- são as emoções, não a verdade. “Ter uma opinião sobre um assunto, algo que é ativo, é mais importante do que ter qualquer informação sobre aquele assunto que é passivo; a veemência com que se sustenta uma opinião é mais importante do que os fatos em que ela se baseia (…) No mundo moderno um homem bom é um homem que tem opiniões corretas e que enuncia sentimentos impecáveis, sendo sua conduta efetiva consideravelmente menos importante”.
O tema é assustador, e o título -sentimentalismo tóxico- de uma precisão magnífica. Tudo corre por conta da emoção, essa é a medida da veracidade das coisas. Não é mais a realidade externa e a mente Aristotélica que busca adequar-se a ela, nem mesmo a razão cartesiana ou as categorias a priori kantianas e dos seus acólitos idealistas, nem mesmo o sofrimento do desconhecido e a paixão inútil dos existencialistas. Agora o gabarito é a emoção. A intensidade com que se manifesta, o aparato que a cerca e, se for em público, muito melhor.
Valham estas pinceladas que o autor anota, a modo de quadro impressionista, para nos fazer uma ideia do que ele denomina a natureza pública da emoção: “Ventilar a emoção em público, reduz o sofrimento. É uma manobra terapêutica que impede a emoção de voltar-se para dentro e cause mais dano àquele que sofre. Ninguém deve desperdiçar suas lágrimas em privado, e sim chorar quando os outros podem vê-las. Quem não chora não tem sentimentos, e quem não tem sentimentos deve ser culpado dos mais hediondos crimes (…). Vivemos a exigência de que a emoção seja mostrada em público, sob pena de que se presuma que ela não existe, indicando por tanto uma consciência culpada. Se você quer a simpatia do público, você precisa chorar em público. Hoje, controlar as emoções para não ser inconveniente nem causar constrangimento, é algo que está longe de ser admirável. Sofre mais quem expressa o sofrimento com maior veemência”
Neste contexto é possível apreciar a emoção com barulho, os programas de Big Brother, o Facebook onde todos curtem as emoções -próprias e alheias- e, principalmente falam …de mim! É evidente que o desejo ou a exigência de que todas as emoções sejam igualmente expressáveis em todas as ocasiões e em todos os momentos destrói a possibilidade mesma da intimidade. Se o mundo inteiro é seu confidente, então ninguém é. Mas vai ver que essas confidências não são reais: somente compartilhamos o que nos promove, silenciando o restante, mas tudo com profunda emoção. Como diz o autor: “A psicobogagem é o modo de as pessoas falarem de si mesmas sem revelar nada”.
Fosse pouco, a pobreza de comunicação é aterradora: se, ao menos, alguém postasse um soneto atormentado no Face ao modo dos românticos do século XIX, ainda vai. Mas não, são grunhidos, espasmos em forma de figuras convencionais, emoticons de plástico para revelar a intimidade sofredora. Cultiva-se um analfabetismo digital que dá vertigem. Mais uma pincelada do autor: “Uns jovens que queriam ser escritores, quando eu perguntava o que eles liam, achavam a questão desconcertante, como se eu não entendesse que eles queriam ser escritores e não leitores. A ideia de que um escritor precisa ler muito era estranha para eles”. E conclui: “Há uma vulgaridade que faz com que a diferença entre história narrativa e novela de TV seja praticamente apagada.
Destruída a história do pensamento nesta revolução emotivista, onde como novos Descartes, tudo deve se apresentar como emoções claras e distintas…e públicas, fazendo barulho. O sentimentalismo é a expressão da emoção sem julgamento. Um espasmo das emoções sem nenhum juízo. Ser for com barulho e público melhor ainda, o que convenhamos, além de durar pouco, não costuma ser eficaz. Parece que um dos poucos pensadores que sobrevivem nesta atmosfera é Freud, ou melhor, o lado escuro de Freud. Dalrymple adverte contemplarmos “uma visão reforçada pelo Freudismo, rio afluente que despeja seu melaço no grande pântano do limo e lodo sentimental moderno. Todo o mundo, mesmo que nada sabe de Freud, já ouvi dizer que os desejos secretos e os traumas ocultos causam sérios problemas no futuro”. Isto vindo de um Psiquiatra é comentário a levar em consideração.
O sentimentalismo tóxico gera, naturalmente, as vítimas, os sofredores que proclamam aos quatro ventos suas lamúrias. Descreve o autor farsas e fraudes em livros de pessoas que se fazem passar por vítimas do holocausto, por crianças abandonadas e órfãs, para impactar. E ainda dizem que essa era a verdade deles. “Seu caminho na vida talvez não tinha sido fácil, mas nasceram num mundo onde milhões de pessoas tinham sofrido coisas muito piores; e, como eles não podiam vencê-las, juntaram-se a eles… A indenização, é a forma moderna da alquimia que transforma a aflição em ouro”. Porque os fraudadores ganharam muito dinheiro, com vendas de best-sellers.
Graças a uma cultura de culto à vítima, notícias onde dá a impressão que as características pessoais da vítima é o que determina a seriedade de um crime. Por exemplo, falando de um jovem assassinado: “era uma pessoa doce demais para ser espancada até a morte (quer dizer que há pessoas que talvez mereçam essa morte, por carecer de doçura) …As janelas de trás dos carros são adornadas com aviso de que há um bebé a bordo, como se isso comandasse cuidados especiais dos motoristas. Um apelo sentimental para cumprir uma obrigação de cidadania”.
Estava lendo este livro quando tive de passar por Catalunha por conta de umas conferencias, e comentei com os colegas. Eles me lembraram de um fato que sublinha toda esta teoria: o famoso arquiteto A. Gaudí morreu atropelado por um bonde. Como se vestia de modo extremamente modesto, foi removido para um hospital onde não se deu maior importância, até que dias depois, foram descobrir que aquele quase-mendigo era…Gaudí! Daí tudo mudou. Para o mendigo ninguém ligava.
O mundo do sentimentalismo barulhento gera a natural desproporção no relacionamento com os outros. Aquilo de que quem não chora não mama, gerou toda uma metodologia do choro eficaz. O resultado é que se presta atenção a quem chora alto e forte. E veste-se isso com roupas de altruísmo. “As pessoas que estão preocupadas com a humanidade em geral muitas vezes não estão preocupadas com as pessoas em particular. É famosa a frase de Rousseau, que ele conhecia a humanidade, mas não os homens. Lenin era um homem de amor ardente pela humanidade em geral, e de ódio por quase todas as manifestações individuais dela, com as consequências hoje bem conhecidas…. Entre os que tatuam os nomes dos filhos pelo corpo, é muito frequente os que abandonam a família. Parece que tatuar o nome é uma substituição para a solicitude que caberia esperar. Somos sentimentais do berço ao túmulo”.
Um livro sem desperdício, provocante do começo ao fim. Faz pensar, tirar consequências e ficar alerta e preparados para o embate com os que fantasiados de cientistas querem uma prova cabal de esta infecção sentimental que se espalha como a pólvora. Bem adverte Einstein, citado textualmente, que nem tudo o que é mensurável é importante, ao passo que nem tudo o que é importante é mensurável. A questão não é demonstrar nem medir, mas ter consciência da realidade, e saber que a essência da vida nem sempre pode ser medida. Mas está aí, nos desafiando, solicitando uma postura de realismo diante dos espasmos sentimentais patológicos. Oscar Wilde, com sua peculiar ironia, nos ajuda a fechar estes comentários com um sorriso: Um sentimental é simplesmente uma pessoa que deseja possuir o luxo da uma emoção sem pagar por ela.
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