Uma segunda chance
(Regarding Henry) Diretor: Mike Nichols. Harrison Ford, Annette Bening. USA 1991. 107 min.
Mergulhados, como vivemos, num cinema de paixões e violência, respiramos aliviados quando a imprensa notifica o aparecimento de um filme “romântico, como os de antigamente”. E sem ligar para toda essa “água com açúcar” que a crítica – intelectual, adulta, etc.- nos despeja, vamos à procura do filme.
Lá deve estar perdido, empoeirado, nas prateleiras da locadora mais próxima. Esse era o meu ingênuo pensar quando fui atrás de “Uma segunda chance”. Não está? Mas, como é possível? Nenhuma das cinco cópias? E não estava mesmo. Foi preciso cinco semanas e várias tentativas -sem êxito- de reserva para, finalmente ontem, pegar da mão de um usuário, a fita que estava devolvendo. Por que tanta dificuldade tratando-se de um filme doce, sem pretensões? Água, açúcar…… A turma gosta mesmo é de bala, pensei. E me instalei na frente do vídeo, disposto a desvendar o mistério.
Harrison Ford, o ator de moda. Lá está ele. Uma bala no cérebro. Beirando a morte, a lenta recuperação. E as surpresas. Não vou contá-las, perderia força. Toda uma filosofia da conversão, envolvida em celuloide: a metodologia da mudança. Um reflexo oculto daquilo que muitos desejariam, nem que fosse às custas de uma bala no lobo frontal. Isso é o que atrai neste filme de Mike Nichols.
A condição humana é curiosa. Reprovamos a censura, enaltecemos o assim chamado realismo, condenamos os intentos moralizantes, e depois nos enternecemos diante de um filme que mostra o bonito da vida. Aliás, que mostra que ser bom é atraente. Derretemo-nos mesmo, lambuzados em água e açúcar, sendo preciso filigranas para conseguir uma cópia de sábado à tarde. Aquele filme que todos veem, tem vergonha de dizer que viram e que gostaram. Velho fenômeno: medo dos próprios sentimentos, num mundo perdidamente sentimental.
Mas a isca vai mais fundo. Ver que é possível mudar, de um modo mágico, é o que atrai. Isso é o que todos gostariam. Abandonar a trapaça, a desonestidade, a amante, da noite para o dia, sem esforço. Sem esforço voluntário, mesmo à custa de uma bala no cérebro e uma afasia -palavrão médico: uma espécie de amnésia sofisticada- temporária. Método arriscado, sem dúvida, mas atraente.
A questão é que no fundo almejamos o bom, uma vida melhor, normal, dessa que é, hoje em dia, quase raridade de colecionador, mosca branca. E no meio da lama -assim costumamos chamar as paixões humanas- não há como não sentir saudades do ar puro. Nada mais lógico. O bom, o belo é simples, amável, merece ser amado. Já sabiam disto os antigos: os medievais, e os muito mais antigos. Nós temos que vê-lo em imagens para redescobrir a pólvora. Devem ser os modernos métodos audiovisuais de aprendizado que nos condicionam… Somos, mesmo, complicados.
É possível mudar. É possível desvencilhar-se da lama e subir. Mas é tarefa árdua, diária, de esforço continuado. Como o das formigas. Sem mágica, sem balas no cérebro; com a tenacidade de quem persegue um ideal. Retificando o rumo diariamente, corrigindo os desvios, para encaminhar-se à virtude, que é ser bom. Mas para retificar é necessário reconhecer os erros, e isso já é outro capítulo. Erros que o protagonista vai descobrindo por acaso -como se nada tivesse a ver com eles- no seu processo de recuperação. Os nossos erros são diferentes: doem porque são atuais, porque são conscientes e voluntários. Também por isso são alavanca para a mudança, para ser melhores. Quem reconhece o erro já avançou -e muito- no caminho, e começou a ser melhor.
“Uma segunda chance”. Um filme que faz pensar. Sonhar? Sonhar, não; concluir que o bem vale a pena. O processo de melhora na nossa vida -que não é um filme- é que custa mais. Por isso não desperdicemos este belo filme almejando por soluções mágicas para “ser melhor”. Estão ali, ao alcance da mão. Não esperemos a bala no cérebro, que não virá. Em compensação, não teremos somente “segunda chance”. Temos inúmeras chances, uma a cada dia, a cada minuto que passa. Essas são as verdadeiras “balas”, cargas de profundidade: os minutos da vida. Tomara reparemos neles… mesmo tendo que ingerir toneladas de água e açúcar que nos façam acordar para essa bela realidade.
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