Stefan Zweig. “Coração Inquieto”
Stefan Zweig. “Coração Inquieto”. Editora Delta. Rio de Janeiro, 1953 (Obras Completas de St. Zw), 353 pags.
A vontade de ler este livro vem de muito longe, da infância. Comentei amplamente as circunstâncias que me apresentaram a obra de Zweig, quando assisti o filme sobre os dias finais da sua vida. Lá, no meio das fascinante partidas de dominó ouvi falar da “Piedade Perigosa”, nome em espanhol de Coração Inquieto e, por sinal, muito mais apropriado como pudemos comprovar na tertúlia literária deste mês.
Sendo propriamente o único romance do escritor austríaco, muito mais conhecido pelos contos e pelas biografias impactantes e precisas -certamente romanceadas também-, as personagens estão magnificamente descritas, esculpidas como se de outra biografia se tratasse, embora sejam fictícias. Deste modo, por exemplo, introduz o sujeito ávido de vida social: “Pertencia àquela categoria de indivíduos por natureza sociáveis que, com o mesmo interesse com que as crianças colecionam selos, colecionam relações sociais e orgulham-se muito especialmente de todo exemplar de sua coleção”. E os militares que se alistavam nas guerras: “Os indivíduos se precipitavam na guerra, somente porque queriam ver-se livres duma situação desesperadora, que mais eram desertores ante a própria responsabilidade do que heróis de seu sentimento de dever”.
Um marco preciso para contar a história -é o próprio protagonista quem a relata- , de um militar do exército austro-húngaro, e de como foi se envolvendo de modo patológico nos seus relacionamentos com uma dama da alta sociedade, doente e aleijada. Assim começa o seu relato: “Quando se quer demasiado depressa consertar uma roda dum relógio, as mais das vezes se estraga todo o maquinismo. Ainda hoje, decorridos anos, não consigo precisar onde terminou a simples inabilidade e começou a própria culpa”.
Habilidade, equilíbrio, aprumo, numa palavra, prudência, virtude capital e de não simples confecção. Esse é o grande tema do livro, que permeou os comentários da nossa tertúlia. De um lado, as solicitações da enferma que vai se afeiçoando a ele; e embora afirme que “não quero que vos julgueis no dever de me servir a dose diária de compaixão” a equação não é simples. Relata o militar: “Mesmo se prometi muito mais do que honestamente deveria fazer, já a mentira por compaixão a fez feliz, e fazer feliz um ente humano nunca pode constituir falta ou má ação (…) Esse foi o primeiro sintoma daquele estranho envenenamento por compaixões”. Dá para entrever o tamanho do desafio, e do difícil equilíbrio.
O que é realidade, e o que é fruto da imaginação do protagonista apresenta-se também como tema suculento para a discussão. Porque a capacidade que a imaginação -a louca da casa, como dizia Teresa de Ávila, também lembrada na tertúlia- tem de distorcer a realidade, criar fantasmas e mudar as proporções das percepções é imensa. Ouçamos as reflexões do nosso protagonista: “Comecei a entender algo que os poetas e romances silenciam….que os feios, os enfezados, os repudiados cobiçam com avidez muito mais ardente e perigosa do que os felizes e sãos; amam com amor fanático, triste, negro, e que na terra nenhuma paixão se apresenta mais sôfrega, mais violenta que justamente a paixão desesperada dos enteados de Deus, que só pelo amar e pelo ser amado, podem sentir justificada a sua existência nesta terra. (….) Não precisamos amar os sãos, os que estão seguros, os orgulhosos, os que estão contentes e alegres; eles aceitam o amor como uma homenagem que lhes é prestada, como uma obrigação que lhes é devida. (…)Somente aos que o destino lesou, aos infortunados, aos repudiados e mal seguros, aos feios, aos humilhados podemos verdadeiramente ajudar com o amor”.
Uma situação de inegável embasamento num fato real -a doença-, alavancadas por uma caridade justa, mas embaçada por uma avalanche de percepções imaginativas que podem levar a soluções equivocadas, à neblina da ambiguidade. O militar “voltou-se de maneira cada vez mais íntima para a inválida, para a preferida, pois na misteriosa química dos sentimentos a compaixão despertada por um enfermo necessariamente se combina, de modo imperceptível, com a ternura”. Percebe o envolvimento, mas não consegue manejar a situação: “Por primeira vez, comecei a perceber que não se pode ligar e desligar a verdadeira compaixão, como se faz com um interruptor de corrente elétrica, e que todo indivíduo que participa da sorte alheia, perde um pouco da sua própria liberdade”.
Lembrando o filme do Stefan Zweig e o triste final da sua vida, parece-me entrever aqui uma referência à saturação, pelas constantes ajudas que o escritor propiciou a muitos judeus como ele que fugiam da Alemanha durante a perseguição nazista; uma nobre atitude que acabou por esgotá-lo. O que conta são as vivências; a literatura, a arte, é um pálido reflexo do que se viveu: “Tudo o que o indivíduo ouve e lê o roça apenas; só pela própria existência consegue o coração aprender o essencial do sentimento”.
Coincidentemente, na época em estava lendo o livro, tivemos uma das nossa reuniões de educação médica e humanismo, abordando o tema da empatia. Uma publicação abriu espaço para as discussões: Simpatia, empatia e compaixão. Parecem o mesmo, mas não o são. Falou-se da empatia que move à ação para ajudar, e da empatia tóxica que imobiliza e impede a compaixão eficaz e profissional. A figura do Dr. Condor, o médico que cuida da doente no romance de Zweig veio repetidamente à minha mente. Assim o descreve o militar: “Não posso afirmar que Condor seja um médico melhor do que os outros….só sei que é uma criatura melhor do que as outras. …Senti que esse homem vive e morre com cada um dos seus enfermos”. Novamente as percepções do protagonista se distanciam da realidade. Eis o médico falando: “Acontece sempre, que por trás da enfermidade, já não sentimos o enfermo. Com esses rigorosos exames e pesquisas de todos os sintomas, deixamos de ver justamente o principal, o que se passa na personalidade do enfermo”. Quer dizer, um médico centrado no paciente, que não se perde no amplo espectro da técnica. É esse médico quem recomenda ao militar o uso de empatia sensata: “Com os enfermos é preciso ministrar-lhes a esperança em gotas cuidadosamente instiladas, senão o otimismo lhe sobe à cabeça e os faz ficar fora de si (…) A compaixão é uma perigosa arma de dois gumes; quem não sabe lidar com ela, deve desistir de a usar”.
O que provoca os equívocos nas percepções do protagonista? Onde está o verdadeiro equilíbrio, que permite dedicar-se de verdade aos outros -não uma simulação, um fazer de conta- e ao mesmo tempo conservar nossa integridade e sensatez? São as perguntas que presidiram a nossa tertúlia. Certamente a imaginação é um elemento deformador da realidade. Mas também a vaidade, o receio do que os outros vão pensar da nossa atitude, enfim, a plateia que -erradamente- a consideramos na expectativa das nossas atitudes, quando na verdade poucos ligam para o que fazemos.
Vale a pena desfilar pelas reflexões do protagonista que aprofundam nesse conturbado universo do equivocado tributo que a vaidade nos impõe em relação aos semelhantes: “Em todas as nossas ações a vaidade representa um dos mais fortes estímulos e sobretudo as naturezas fracas sucumbem à tentação de fazer alguma coisa que para os outros dê a impressão de força, coragem e energia (…) Quem no regimento caiu no ridículo, continua ridículo para sempre; ali não há esquecimento, não há perdão (….) Só quando chegamos a saber que também valemos alguma coisa para os outros, sentimos a significação da própria existência (…) Aguardava-me outra embriaguez melhor e mais pura do que a que eu procurava no conhaque. É que a verdade também nos fascina, a gratidão também nos aturde, o carinho também pode, tornando-nos feliz, confundir-nos”.
A narrativa do militar que sucumbe à piedade perigosa, personagem verosímil que Stefan Zweig desenha quase com exagero, transmite o recado que se aponta explicitamente: “É sempre o desvario que nos permite fazer uma ideia da grandeza de uma paixão”. A descrição das consequências permitem avaliar as fraquezas e limitações, também as virtudes, que se encerram no ser humano. E neste contexto, é perfeitamente lógica a conclusão que o protagonista nos confidencia no final: “Comecei a compreender que neste mundo as maiores perversidades não são causadas pela maldade e pela brutalidade, mas sim quase sempre pela fraqueza (…) Desde esse momento fiquei outra vez sabendo que culpa alguma está esquecida, enquanto ainda pesa na consciência”.
Controlar a imaginação, prevenir-se contra as tentações da vaidade. Recursos para um equilíbrio saudável que permite a dedicação eficaz aos que nos rodeiam. E desenvolver a virtude da prudência que, no entender clássico, compõe-se de vários passos: entendimento do presente, memória do passado (experiência), prever as dificuldades e, finalmente, pedir conselho. Eis os elementos para praticar a empatia, a compaixão, sem cair na armadilha da piedade perigosa!