Marta Braga: “Lições de Gustavo Corção”
Marta Braga: “Lições de Gustavo Corção”. Quadrante. 2010. 139 pgs.
Este livro –uma agradável surpresa que não esperava- brindou-me a oportunidade de lembrar, com imenso carinho, a obra de Gustavo Corção. Voltei a viver momentos inesquecíveis, da ha mais 30 anos, quando, recém chegado ao Brasil, fiz as minhas primeiras incursões na literatura nacional. Posso dizer que Corção tem sua parte de responsabilidade na minha formação –como médico, como professor e também como amador nas aventuras humanísticas- e, sem dúvida, foi um interlocutor necessário de um Brasil que aprendi a amar naquela altura. Um Brasil claro, diáfano, com os seus defeitos, como qualquer povo, mas alegre e sincero. E no meio dessa descontração, dessa jinga que se estendia do futebol ao samba, envolvendo também as relações humanas – a insuperável afabilidade do povo brasileiro!- havia quem pensava e escrevia de modo claro e elegante. Valha o exemplo quando descreve os tempos em que Corção e um grupo de intelectuais arquitetavam uma revolução contra a burguesia que “naturalmente dava uma trégua para almoçar, pois e difícil manter essa atitude diante de uma mesa posta, e de uma senhora que se desculpa por causa do pudim que se partira na forma”.
Foi um amigo quem me recomendou Corção. “Não deixes de ler seus livros. Continua escrevendo no jornal, é muito criticado, ficou um pouco azedo, mas é contundente. Além do que escreve muito bem; ajudará a melhorar o teu português!”. Agradeço de por vida essa recomendação. E, aos poucos, fui lendo as principais obras de Gustavo Corção, anotando idéias, recolhendo fichas que utilizei –e utilizo até hoje- nas minhas aulas e nos escritos que me atrevo a publicar aqui ou acolá. Agora, lendo este livro de lembranças, vejo que a autora recolhe trechos que eu também tenho anotados nos meus fichários. Senti falta de outros, mas é inevitável: cada um apanha aquilo que mais lhe afeta, o que lhe atinge e por isso mesmo lhe servirá para construir-se e ajudar os outros na sua formação.
Passados muitos anos, relendo estas páginas com o sabor da experiência de vida, entendo que naquele Brasil que aprendi a amar, talvez as formas de dizer dos intelectuais nem sempre foram felizes, e enfrentaram críticas, suscitaram polêmicas. Mas, sem dúvida, havia conteúdo. Hoje, vivemos tempos onde todos se comunicam, falam, opinam, mas o que falta mesmo é conteúdo. Somos especialistas em comunicar-nos, em delivery –seja de pizza ou de qualquer outra coisa- mas carecemos de substância. Estamos rodeados de uma cultura epidérmica onde graça a mediocridade, mesmo em ambientes acadêmicos. Tudo é rápido, direto, sempre na versão mais atualizada, com pavor de ficar anacrônico, nem que seja por minutos. Vem a minha cabeça uma frase de Corção que tenho anotada num papel, já amarelado pelo tempo, mas de contundente atualidade: “A novidade é o bálsamo das vidas vazias”.
E nos cenários acadêmicos, nas usinas formadoras –sejam os colégios, a universidade, a própria família e grupos afins- faltam referencias de cultura, pessoas que saibam integrar os conhecimentos e os transmitam de modo claro, convidando a pensar, pois é a resposta do educando diante das questões oportunamente colocadas pelo mestre o que de fato lhe cultiva, lhe faz crescer. Temos especialistas, sim; de tudo. Tem quem sabe muito de esporte, ou de vinho, ou de pintura, ou de computadores, ou de cinema, teatro e literatura. Mas é um saber setorial, enorme talvez, cachoeira de conhecimentos que afoga mas não refresca. Falta a harmonia de conhecimento, que cria um ambiente agradável onde o espírito humano consegue se desenvolver. São mutirões de conhecimento por atacado, que não se integram na vida real, porque ninguém sabe fazê-lo: nem aquele que detém o conhecimento –que costuma ser um ignorante em quase todas as outras matérias da vida- nem, muito menos, quem ouve por não saber por onde deve começar para incorporar tamanho volume de informação, e qual a proporção necessária para melhorar sua cultura. Como bem adverte Corção “uma filosofia que não pode ser vertida em conversa familiar, ou em história contada às crianças” é cultura de laboratório, não da vida.
Este livro será uma descoberta para muitos. Outros, como no meu caso, o lerão de corrido, tropeçando com os pensamentos que alimentaram sua cultura no seu dia, que é tanto como dizer, idéias que ajudaram a posicionar-se na vida. Pois a cultura é isso: um saber posicionar-se no mundo, começando pela vida própria, pelo conhecimento próprio, outro dos temas favoritos de Corção. Encontro este parágrafo numa ficha, esta sim, já transcrita no computador. “Acho belíssima essa voracidade do homem, e essa capacidade de trazer para casa, para a sala de estar, sob as espécies do assunto, as guerras, os terremotos e os ciclones. Por outro lado, porém, acho lúgubre essa avidez de engrossar por fora a ganga do eu, numa capitulação da maior das aventuras, que é a conquista de si mesmo, a descoberta de sua própria alma. Há duas iluminações na face de um Marco Polo: de um lado o brilho ensolarado da boa aventura; de outro a verde lividez do homem que foge de si mesmo.” Ler, ou reler, Corção: eis o recado importantíssimo que nos brinda esta obra –um acerto editorial- que é um trailer de um filme apaixonante.
Comments 2
Gostei muito de ler isso. Sou irma de Marta e muito orgulhosa dela. Moro nos Estados Unidos ha muitos anos e dei varios exemplares desse livro otimo pra amigos de presente, e agora farei o mesmo com o novo livro dela, “Cronicas de Gustavo Corcao”.
Muito bom saber que, passados 40 anos da morte de Corção, nós o temos reeditado e debatido. O cronista que combateu o bom combate continua vivo.