A Rainha Victoria/ Judi Dench no Cinema: Criatividade além dos protocolos seculares.

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Victoria e Abdul: O Confidente da Rainha.

(Victoria & Abdul) Diretor: Stephen Frears. Judi Dench, Ali Fazal, Tim Pigott-Smith 111min. Inglaterra. 2017.

Muito dos atores britânicos vêm de uma longa tradição do teatro, onde gastam seus melhores dons e, magnanimamente, consentem em fazer, vez por outra, algum filme mostrando sua tremenda categoria dramática.  Foram nutridos nos cenários onde é necessário acertar na primeira vez, sem possibilidade de cortar para tentar uma nova filmagem, mais satisfatória. São crias de Shakespeare, ou melhor, das suas personagens; e talvez por isso, conseguem construir e plasmar no celuloide figuras verosímeis, magnificamente perfilhadas, redondas.

Depois de ver Judi Dench incarnar a Rainha Victória em dois filmes separados por vinte anos, é difícil dizer onde acaba Judi e começa Victória, ou até imaginar uma Victória diferente da que nos apresenta a atriz inglesa. Ambos os filmes refletem momentos íntimos da rainha que, denominada avó da Europa -os seus descendentes espalharam-se por vários países e, com eles, o gene da hemofilia que Victória carregava- teve de sofrer em solidão: o isolamento que é, muitas vezes, o tributo necessário que a grandeza deve pagar.

Assisti Victória & Abdul há alguns meses, e o revi novamente na semana passada. Um luxo para os olhos, e para a mente. Judi/Victória enche a tela.  As personagens orbitam à sua volta, como rainha de Inglaterra, Imperatriz da Índia, e grande dama do cinema. Está no final da vida, quando chega Abdul, um indiano de religião muçulmana, recrutado para entregar um presente comemorativo à Rainha. E com Abdul vem um novo despertar de Victória, velha e enfastiada de uma corte repleta de aristocratas invejosos à procura de oportunidades, afogados em protocolos. O indiano se transforma num mentor para a rainha anciã, invocando a sabedoria oriental: “A vida é como um tapete. Os fios se entretecem para nos dar sustentação, para termos onde nos apoiar”. E, mais uma vez, descortina o panorama da missão da rainha que não encontra mais sentido à sua existência. Abdul aponta: “A sua missão é servir. Serviço, isso dá sentido a tudo. Estamos aqui para os outros, não para nós mesmos”.

 

O envolvimento da rainha é tamanho que há movimentos subversivos para interditá-la por incapacidade. Victória responde com classe, categoricamente: “Tenho 81 anos, 9 filhos, 42 netos. Estou no poder  há 62 anos, o que me torna a monarca de maior tempo num governo. Tenho quase um bilhão de súbditos, conheci 11 primeiros ministros,  despachei 2.347 leis, tenho  5 casas reais, e um staff de 3mil pessoas.  Estou com reumatismo, mal humorada, gorda, surda, e velha. Tudo isso sim, mas não estou nem um pouco louca”. Questão fechada.

Abdul tem de retornar quando Victória morre, e há uma tentativa de apagar esse episódio “comprometedor” por parte dos sucessores da rainha. Subsiste o diário do indiano que é encontrado em 2010, o mundo conhece a sua história e o filme é confeccionado, para sorte nossa. Admiramos o difícil equilíbrio que supõe uma amizade entre um homem e uma mulher, com grande diferença de idades e um abismo de posição social de per meio. Uma amizade -no dizer de Julián Marías, filósofo espanhol- não invasora, elegante, feita de respeito, onde o mais valioso é a possibilidade da companhia. É de fato Abdul quem acompanha de perto o sofrimento solitário de Victória no seu jubileu de diamante (60 anos de reinado) quem recebe as confidências nostálgicas de Victoria, as saudades do príncipe Albert, e de John Brown, citado explicitamente.

Sua Majestade, Mrs. Brown.

(Her Majesty, Mrs. Brown) Diretor: John Madden. Judi Dench, Billy Connolly, Geoffrey Palmer, 101 min. Inglaterra 1997

A figura evocada -John Brown, de quem nunca se encontrou o diário, mas rendeu o outro filme- me fez voltar 20 anos atrás no cinema, enquanto Victória regressava 35  no seu tempo. Na época, a rainha, viúva de três anos, esconde-se no luto, na lembrança de Albert, e nas lágrimas, sempre contidas, estudadas, protocolares. Tudo na dose certa. O Victorianismo – nunca melhor dito- se mostra nas formas, na cerimônia e formalidades. E os sentimentos -que também os Ingleses têm- cada um administra do melhor modo possível, privadamente, sem ostentação. O impasse de um povo que requer a presença da Rainha, e a tristeza de Victória que insiste em manter-se afastada da vida pública. Disraeli, o premier britânico magnificamente caracterizado, discursa no parlamento, na tentativa de entreter os republicanos agitados, fazendo-lhes notar que “somos tradição, costume. A Inglaterra, meus senhores, não se pode improvisar”.

John Brown, um escocês cuidador de cavalos que o príncipe Albert tinha em alta conta, é chamado; com ele chega a égua da rainha, para o caso de que a soberana queira cavalgar. Um homem rude, sem família, com consciência da sua nova missão desafia a etiqueta palaciana e planta-se na frente da corte, ao lado do cavalo, em atitude de xeque à rainha e a toda a pompa britânica. “Aqui estarei para quando a rainha precisar de mim”. Perplexidades, irritações, comentários que desembocam em intrigas, pois o escocês cavalariço que devia tomar conta da égua  assume o cuidado da própria rainha: arranca Vitória do tédio e da tristeza, abrindo-lhe os horizontes da alegria e da responsabilidade do seu cargo.

A franqueza de John Brown, sua forma simples e elegante de ser, tem na sua generosidade um aliado perfeito. Não é possível ser simples se o cálculo medroso invade os projetos de vida, se a ambição é a nota dominante. O diálogo de Brown com Disraeli é um dos pontos altos do filme: “Não é possível que você não queira nada. O que pretende com tudo isto? Sua mulher não reclama?”. E, sem dar-se nenhuma importância, Brown responde com a mesma tônica da desafetação: “Não tenho mulher, nem filhos. Somente irmãos e irmãs. A rainha precisa de mim. Essa é a minha vida”.

Uma verdadeira lição do homem com consciência de missão, que se engrandece identificando-se com ela. É nestes parâmetros que se encaixa a figura, curiosa e deslumbrante de John Brown. Um homem que conhece sua posição, ciente das suas limitações e, ao mesmo tempo, da sua utilidade; e descobre sua realização no serviço, no cuidado que dispensa à Rainha, que não pode viver sem ele. Cuidado que não sufoca, nem irrita, e que nada pede para si. Um cuidar com naturalidade, sabendo estar por perto, guardando as distâncias. Uma grandeza oculta, que tonifica a existência ensinando-nos a olhar as coisas simples da vida, aquelas que realmente valem a pena. A simplicidade de quem consegue ver as coisas como elas são, sem importar-se com a plateia que respeita, e por isso discorda sem desprezá-la. Naturalidade de quem não se vê na necessidade de justificar todos os seus passos, e não tem tempo a perder com superficialidades porque sabe que a vida é curta e tem de atingir o essencial.

Assistindo ambos filmes  -e revendo-os, já disse que não cansa, é como uma sinfonia de interpretação- configurou-se, a modo de grande recado, o encanto que supõe ter protocolos ancorados numa tradição secular alavancados pela inovação de alguém que consegue chegar mais longe. Uma espécie de empreendedorismo criativo que melhora e supera a tradição clássica.

Ortega dizia que as tradições britânicas eram uma necessidade, uma espécie de cinto de segurança, para evitar que os ingleses voltassem à sua origem bárbara. Quando se suprimem -as normas ou o chá das cinco horas- o resultado são os hooligans destroçando estádios……As tradições rendem frutos de causar inveja a qualquer um: “Como conseguiram este gramado magnífico -perguntou um visitante contemplando o green de Oxford? Muito simples -respondeu o interlocutor. Trata-se de regar diariamente…..durante 800 anos!!”.

Desprezar as tradições e os costumes é sintoma de ignorância, insensatez acertadamente comentada por um médico- filósofo inglês numa obra provocadora acerca da importância do preconceito. Mas esconder-se atrás delas para evitar desafios que poderiam ajudar a melhorar a sociedade é omissão condenável. São os aristocratas que Victória abomina e que, naturalmente, consideram arriscada qualquer inovação. De fato, como disse Disraeli, a Inglaterra não se improvisa…..mas sem comando e iniciativa o império britânico nunca teria saído da ilha, ou mais precisamente, de uma parte dela……

Eis a função do líder: inovar a partir da tradição consolidada, surpreender com novas provocações, abrir espaços sobre os protocolos para evitar o mofo da rotina. Evidentemente não são todos os que podem fazer isto; aliás, são muito poucos, e a esses a história reserva sua memória. E junto deles, o cinema investigativo -estes dois filmes- encarrega-se de revelar a existência desses maravilhosos desconhecidos. O dizer clássico de que por trás de um grande homem, sempre há uma mulher fazendo a diferença, pode ser também invocado numa variante: por trás de um líder histórico, costuma haver personagens secundários que lhe permitem realizar seu cometido histórico.

Funcionam como facilitadores, tornando transparentes os verdadeiros recursos que atingem o coração dos homens, e que lhes permitem enxergar o óbvio. São como um incentivo para recuperar o encanto pela vida e erguer-nos da pasmaceira acomodada para enfrentar novos retos, com consciência de missão. Missão que é a nossa tarefa, a que cada um tem confiada pela vida. Mesmo que ninguém de por isso e não passemos à história, caindo no esquecimento. Quando o cinema, em momentos felizes, sabe apontar para estas realidades, nos devolve a confiança que fraquejava, e se engrandece -mais uma vez- enfeitando-se com seus melhores temas: a grandeza que se encerra nas possibilidades humanas.

Ai está para quem quiser deliciar-se com este mergulho histórico-antropológico. Judi /Victoria e os seus coadjuvantes. God save the Queen…..God save also the remarkable servants!

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