(L’insulte). Diretor: Ziad Doueiri. Guion: Ziad Doueiri, Joelle Touma. Intérpretes: Kamel El Basha, Christine Choueiri, Adel Karam, Camille Salameh. 110 min.
Recomendou-me o filme um grande amigo médico, que iniciou os estudos de medicina na Europa, creio recordar que na Romênia, e acabou o curso no seu pais, Líbano, em momentos conturbados. Medicina aprendida na trincheira, no sentido estrito da expressão. No fogo cruzado de uma guerra fraticida -como todas as guerras civis- onde sempre aparecem os que “vem dar uma mão de um lado e do outro”, a acabam complicando as coisas porque não entendem as profundas raízes do ódio…..nem, muito menos, o caminho do perdão. Porque existe o perdão, quando há grandeza de coração e visão ampla, na tentativa de compreender o outro.
Lembro por exemplo que, muitos anos depois, assisti com esse amigo a um jantar onde alguns colegas -originários ou descendentes de Libaneses- estavam lançando o projeto “Hakim”. Explicaram-me ser essa a denominação de médico -e também de sábio- nos países do oriente médio. Um dos que conduzia a reunião, aproximou-se do meu amigo, deu-lhe um abraço, sendo correspondido com igual afeto. “Bom rapaz -me disse, quando depois sentou-se do meu lado-. Nos levamos muito bem aqui no Brasil. Os militantes que mataram meu pai na guerra do Líbano eram da fação dele”. Passaram-se muitos anos, mas a imagem do sorriso do meu amigo -franco, aberto, sem um pingo de ódio ou rancor- permanece viva na minha memória”. E reviveu com luz nova ao tempo que desfilavam os fotogramas do filme que nos ocupa.
Um incidente, aparentemente sem grande importância, entre um libanês e um palestino que trabalha na construção civil. Essa é a largada do filme, um detalhe, um equívoco, um insulto, e toneladas de ódio acumulado. De um lado e do outro. Pessoas boas -os dois- com famílias para sustentar, a vida para ganhar com o trabalho, e uma mágoa engasgada que vai crescendo como bola de neve, como as neves das montanhas do Líbano.
O filme, em si, desenha uma situação que em visão rápida e superficial, pode parecer exagerada. Tamanha confusão, por um simples detalhe, por uma exclamação pouco elegante? O assunto se encerraria por ai….mas algo entra em ressonância com o nosso interior. A memória encarrega-se de lembrar-nos os detalhes -ridículos para um observador externo- que se agigantam até alturas incríveis, como os cedros do Líbano, alimentados pelo orgulho, um nutriente eficaz do ódio. De fato, as diferenças -de opinião, de perspectiva- são café pequeno, mas funcionam como uma cunha que permite o gotejamento da soberba, e daí sim, o desentendimento assume proporções gigantescas, e se arrasta por gerações. Seria , em teoria, fácil desmontá-lo, mas lá vem ninguém menos do que Nietzsche para explicar a fisiologia do fenômeno, quando anota: “Fiz isto, diz a minha memória. Não, eu nunca pude ter feito isto, diz o meu orgulho, e permanece inflexível. Finalmente, é a memória a que acaba cedendo.” Assustador, tremendo, mas real. E de uma fonte nada suspeita.Leia mais