Khaled Hosseini: “O Caçador de Pipas”
Khaled Hosseini: “O Caçador de Pipas”. Ed. Nova Fronteira. 2003. Rio de Janeiro, 365 pgs.
Por alguma razão, que nunca tive muito clara, sempre me resisti a ler best-sellers. Talvez uma certa alergia ao gosto massivo por novidades que nada tem a ver com qualidade. A culpa, evidentemente, nunca é da obra, do livro, do filme. Mas sim do ambiente que gravita sobre a novidade em questão, sem tomar consciência do por quê. Algo parecido com a famosa maçã de Newton, que cai sem saber exatamente os motivos; somente um observador atento, é capaz de desentranhar as razões e os mecanismos da queda.
Agora vi a maçã cair, e entendi um pouco melhor a minha repulsa pela novidade. Aconteceu-me numa das reuniões literárias de um projeto de longevidade –um modo elegante para falar das atividades culturais com a terceira idade- ao qual sou convidado como moderador, num hospital em São Paulo. O livro que tinha sido sugerido é este que nos ocupa. Comprovei que todos os presentes já o tinham lido –tempo atrás, quando era recorde de vendas. Eu tive de ler expressamente para esta ocasião, pois não o fiz na época do boom editorial. Gostei, tomei notas, enquanto me perguntava pelos comentários que viria ouvir na reunião literária.
Lá estava eu como Newton observando o pé de maçã. “O que nos conta o livro? Que lições tiramos? Qual foi a experiência na leitura? ” –perguntei sucessivamente aos assistentes. As respostas , como maçãs caindo, destacavam o interessante de conhecer outra cultura (no caso do Paquistão), algo tremendamente distante, terrivelmente exótico. “Mas até a orelha do livro diz algo sobre amizade, não?….Algum comentário sobre isso?”- apontei. Teve quem aventurou alguma consideração sobre o assunto, e também quem disse que a violência de alguns povos, atrasadíssimos, que apedrejam os adúlteros, é algo anacrônico. “Isso tem de mudar, todo esse fundamentalismo…” (palavra politicamente correta, logo agora depois dos eventos na França com os muçulmanos liquidando gente na redação de um jornal-pasquim). Revisei as minhas anotações para ver se eu tinha lido o mesmo livro que a prestigiosa plateia comentava. Pareceu-me andar às voltas com a lei da gravidade, enquanto as maçãs caiam despreocupadamente.
O Caçador de Pipas é um canto á amizade, à lealdade, uma bofetada impressionante no egoísmo; é uma evidência contundente de que o que compensa na vida é dedicar-se aos outros, pensar neles, cuidá-los, afoga-los em amor que redime. Mas nada disso emergia na nossa conversa. Repentinamente a fórmula da lei da gravidade, da queda livre, veio à minha cabeça. E entendi o porque da minha repulsa à ler os best-sellers quando estão na crista da onda. Como tudo o que é moda no momento, produz gosto, bem estar, mas não há tempo para digerir os ensinamentos. A fama é avassaladora, rápida, difusiva. E também impessoal. Lemos o que todos leem, falamos do que todos falam, ficamos na periferia do tema, sem mergulhar um ápice no miolo. Uma espécie de Flash Mob cultural, onde todos se juntam, se divertem, curtem o momento, mas poucos se perguntam o que estavam fazendo ali naquela ocasião. E o que sobra são comentários como os que estava escutando: positivos, interessantes até, mas desbotados.
Um elogio poderoso à integridade e à amizade. Esse é o resumo, simples e tremendo, deste livro magnífico. É impressionante a descrição que o narrador vai delineando sobre a estatura moral do amigo, em contraste com a sua própria mesquinhez. “Foi aí que descobri como é difícil olhar diretamente nos olhos das pessoas como Hassan, essas pessoas que dizem sinceramente o que pensam (…) Esse é o problema das pessoas que são sinceras: acham que todo o mundo também é”. O protagonista não esconde os seus vícios, seus medos, sua falsidade. E o tamanho da culpa que se acumula, como dívida impagável, em crescimento contínuo, até fazer dele um ser encolhido, ruim, desprezível.
Perguntava-me, conforme a nossa tertúlia literária avançava, como estas cargas de profundidade poderiam ter passado desapercebidas ou, simplesmente, cair no esquecimento. De novo a maçã caindo, Newton observando, e outra intuição. O exótico da cultura distante, o desconhecido: essa pode ser a razão da distração vital. E da conveniência. Sempre é mais confortável ler a história de dois amigos imersos numa cultura que nos é completamente alheia do que olhar para exemplos similares que podemos ter do nosso lado, diariamente. Relata o autor, textualmente: “Isso era um dos problemas com Hassan. O desgraçado do garoto era tão puro que a gente sempre parecia hipócrita perto dele (…) Para onde quer que eu me virasse, lá estavam os sinais da sua lealdade, da sua maldita lealdade inabalável”. O longínquo nos agrada, o que está próximo nos compromete, exige de nós uma resposta.
O Caçador de Pipas não é apenas o relato de uma cultura exótica; isso é somente o embrulho. Como os recados que Disney passa em forma de animais, de crianças, ou de fadas não são senão fábulas que cada um deve aplicar ao seu dia a dia. Mas a compulsão do flash mob, a enxurrada do best-seller, não permitem a reflexão necessária para transportar a alegoria ao nosso quotidiano. E ficamos com o acidental, e até com a crítica à violência dessas sociedades que distam anos luz da nossa, sem reparar a violência que diariamente nós toleramos na nossa, veiculada pela TV a cabo, ou pela Internet. O que pensariam no Paquistão do nosso menu de opções pornográficas que temos à disposição, por colocar um exemplo?
Mas nem tudo está perdido. As tertúlias literárias nos permitem resgatar o que no seu dia deixamos passar no barulho do flash mob literário. Ouvindo os comentários de outros, nos acontece como ao protagonista, a quem a vida lhe permite refletir: “Ouvindo-os falar, percebi como boa parte de quem eu era, boa parte do que eu era, tinha sido definido por Baba (o pai) e pelas marcas que ele deixou na vida das pessoas”. Da reflexão vem o assumir a responsabilidade, reconhecer os erros, buscar a retificação, tarefa nem sempre indolor. “Espero que pense bem nisso: um homem que não tem consciência, que não tem bondade, não sofre”.
Pensar, refletir, escrever –nem que sejam cartas a nós mesmos, isso eram os maravilhosos diários das nossas avós- é o líquido que permite revelar as imagens plasmadas no celuloide da história. Aprender com elas, crescer, colocar-nos o desafio de ser melhores, que é o modo de melhorar este mundo nosso. Como dizia o místico de Castela, onde não há amor, coloca amor, e obterás amor. Atitude que outro santo contemporâneo resume numa acertada frase: afogar o mal em abundância de bem.
O Caçador de Pipas vai muito além de Amir e Hassan, dois amigos e uma história de integridade e de traição num pais distante, extravagante. A “maldita lealdade inabalável” é virtude que podemos apreciar do nosso lado, que nos cutuca para ser melhores, para desprender-nos do nosso egoísmo mesquinho. Uma possibilidade real, diária. É preciso ter a coragem de querer enxergá-la, entusiasmar-se com ela, e querer de fato mudar para melhor. Daí sim, os livros deixam de ser best-sellers para transformar-se em clássicos que moldam a alma dos homens.
Comments 3
Vc tem razão, ler um livro no auge de seu lançamento assim como ver filmes que estão na crista da onda, na maioria das vezes, nos tira do foco. É como se nossa visão ficasse embassada. Nosso senso crítico deixa de ser pessoal e cai no senso coletivo. Nosso encontro teria sido mais interessante se tivéssemos relido o livro. Nossa visão seria outra e não mais aquela de 10, 15 anos atrás, pq nós não somos mais quem éramos na época daquele boom editorial.
Quanto à “maldita lealdade inabalável” parece-me que nossa sociedade não faz muita questão de cultivá-la. Realmente, é preciso coragem para enxergá lá e, mais ainda, para cultivá-la. Lealdade para com os demais e para conosco mesmo, para com nossos ideais, para com nossos desejos.
O caçador de pipas chegou as minhas mãos como um presente à época do lançamento no Brasil. A leitura fascinante e instigante foi feita em um fim de semana. Muito me impressionou a abordagem da amizade, lealdade e ética. A integridade de Amir e a forma com Hassan procura se redimir deixam marcas no leitor. Frequentemente trechos deste livro voltam a minha memória quando me deparo com discussões sobre amizade e o quanto elas são importantes em nossa vida.
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