O humanismo médico: em busca de uma humanização sustentável da Medicina

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The medical humanism: the pursuit of sustainable medical humanization

Pablo González Blasco

Médico (FMUSP, 1981) e doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro fundador (São Paulo, 1992). Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família. Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM).

RBM Abr 11 V 68 Especial Oncologia

Indexado LILACS LLXP: S0034-72642011007300001

Unitermos: humanização da assistência, cuidados paliativos, assistência centrada no paciente, educação médica, medicina de família e comunidade.

Unterms: humanization of assistance, palliative care, patient-centered care, education, family pratice.

 

Numeração de páginas na revista impressa: 4 à 12

A Medicina desumanizada e as tentativas de humanização

A humanização da Medicina assume notável protagonismo na agenda dos educadores na Academia e dos gestores nos diversos Sistemas de Saúde. O motivo é claro: nos dias de hoje a Medicina tem de ser forçosamente humana se quer pautar-se pela qualidade e pela excelência. Humanizar a Medicina é, assim, além de uma obrigação educacional uma condição de sucesso para o profissional de saúde.

O modo mais prático de perceber esta necessidade é observar as consequências que a sua ausência provoca. Quando existe um clamor pela Humanização de uma situação, de uma atitude ou profissão é porque de algum modo se reclama algo que se entende como essencial em determinada circunstância concreta. No caso da Medicina as chamadas de atenção costumam vir da parte do paciente, como advertência que orienta na recuperação de algo que, tendo-se o direito de esperar do médico e da Medicina, não se encontra na prática. 

As advertências provenientes do paciente dificilmente recaem no aspecto técnico da Medicina, até porque o paciente não possui habitualmente recursos para avaliar corretamente deficiências dessa ordem. As carências que o paciente constata são, em última análise, carências na pessoa do médico, detentor do conhecimento e intermediário entre a tecnologia e o paciente. As insuficiências não são de ordem técnica, mas humana. Torna-se necessário vestir a ciência médica com trajes humanos, dissolver no aconchego humano a técnica moderna e os medicamentos que o paciente deverá utilizar. Quando tal não acontece, as insuficiências são sempre do profissional, e o prejuízo é do paciente, que acaba sofrendo de indigestões científicas nada reconfortantes. Caberá ao médico preocupar-se com esta temática, que não é em absoluto minúcia ou filigrana. Uma preocupação que se deve traduzir em ocupação ativa estudo, reflexão, para aprofundar e, sobretudo, analisar o seu comportamento, detectar as deficiências e encontrar os caminhos do necessário aperfeiçoamento.

A bandeira da humanização da Medicina campeia, pois, como divisa em qualquer projeto moderno de assistência à saúde. Quem se oporia hoje à necessidade de humanizar a Medicina, os sistemas de saúde, a assistência hospitalar e mesmo o ensino médico? Mas, curiosamente, o objetivo que é consenso universal, não parece conseguir-se e, na hora de colocar em prática, tudo é muito mais complicado do que inicialmente parecia. 

Busca-se a humanização no sistema e nos processos, medem-se parâmetros de eficiência, certifica-se qualidade, mas percebe-se que falta algo. As soluções estratégicas de gestão, bem como os programas de treinamento de recursos humanos não parecem satisfazer o cliente. As iniciativas que procuram humanizar os cenários da saúde – colocam-se quadros nas paredes, música ambiente, hotelaria de luxo – também não são suficientes. Gastam-se recursos abundantes nestas tentativas, mas parece que a humanização desejada não se atinge. Por quê?

A resposta é simples, contundente, embora sua aplicação prática seja muito mais trabalhosa: não é possível humanizar a Medicina sem humanizar o médico, sem que o humanismo penetre capilarmente na ação médica permitindo ao profissional harmonizar a técnica com o humanismo numa simbiose produtiva (1). As tentativas humanizantes debruçam-se sobre os sistemas e processos, mas não envolvem as pessoas que são a interface de humanização entre a Medicina e o paciente. E não as envolvem, porque não sabem como fazê-lo. Os processos podem ser medidos e qualificados, mas o interior das pessoas – a boa vontade, a dedicação e carinho – são qualidades que fogem a qualquer auditoria de qualidade. 

Humanizar a Medicina é, pois, reinserir a ciência médica nas suas verdadeiras origens, recuperar a essência da ação médica. Parece, pois, sensato antes de empreender mais uma iniciativa de humanização destinada ao fracasso, perguntar-se o porquê a Medicina se desumanizou. Saber o que se perdeu e por que, evitará buscar soluções fáceis, periféricas, epidérmicas, e ineficazes. É preciso refletir e ir ao âmago da questão, com valentia e coragem. E talvez neste ponto surjam as primeiras fraquezas: desistimos de refletir, nos acomodamos num status quo como se não dependesse de nós a resposta a estas questões. Não é fácil admitir os próprios erros, e sempre temos à mão um sistema e alguns processos que facilmente podemos culpar pela desumanização da Medicina. Transferimos a responsabilidade aos entes corporativos, de modo que a nossa omissão profissional nos incomode menos. Mas essa atitude não é resolutiva, nem honesta. É preciso sair do impasse.

O primeiro passo que o médico – e o professor de Medicina – deve dar, se quer humanizar a Medicina, é admitir que, antes de tudo, se deve humanizar ele próprio. A responsabilidade primeira é toda dele, que deverá refletir e buscar recursos para integrar a técnica – a tualizada e moderna- com o humanismo que a prática médica requer. E terá de instalar um processo de construção própria que lhe permita não esquecer o que de verdade importa. Porque, dito de modo simples, a desumanização da Medicina é, sobretudo, um esquecimento lamentável daquilo que, sendo matéria de trabalho diária – o ser humano –, deixamos passar sem reparar na sua espessura, sem ponderar a dignidade que se envolve nesse relacionamento. Humanizar a Medicina será, de algum modo, recordar, um exercício ativo da memória para lembrar quem somos como médicos, o que buscamos, qual é a nossa história. 

Itinerário para o esquecimento: os tropeços que desumanizam 

Se a desumanização é um esquecimento e humanizar a Medicina implica recordar, bom será refletir sobre os processos que levam a esse esquecimento, quase sempre involuntário, para evitar as reincidências. 

Um primeiro passo no itinerário do esquecimento que diz relação à formação do médico como pessoa e como profissional vem apontado pelas considerações de um filósofo que nos fala da ética da responsabilidade (2). O que distingue os humanos dos animais – afirma Hans Jonas – é um tripé constituído pelo utensílio, pela imagem e pelo túmulo. O utensílio é a técnica, e neste ponto não há dúvidas quanto a distinguir-se dos animais porque os humanos conseguem incorporar em pouco tempo toda a técnica acumulada na história que lhes precede. Os animais carecem de um acervo científico e cada um deve construir-se desde zero, pois não conseguem aproveitar as experiências dos ancestrais da sua espécie. A isso se refere Ortega (3) quando diz que o tigre de hoje é o mesmo tigre de milhares de anos atrás, e o mesmo que estará sobre a Terra daqui a cinco séculos somente o homem nasce sobre uma história que lhe precede, agrupando a técnica e o progresso correspondente. 

O segundo elemento que nos distingue dos animais é a imagem, onde se inclui a capacidade que o homem tem de representar a realidade através da arte. A arte e as humanidades são caminhos para melhor conhecer a realidade na qual o ser humano está imerso, e melhor conhecer-se a si próprio, na sua dimensão corporal e espiritual. Finalmente a terceira perna do tripé está representada pelo túmulo. Somente o ser humano tem consciência da transcendência, e a representação da morte o coloca em contato com a dimensão que se estende além do seu próprio ser. 

Não é difícil concluir que, embora no referente à técnica o progresso seja inegável sendo notória a distância entre o homem e o animal, certa atrofia foi tomando conta dos outros dois elementos do tripé. Nem por isso o homem se animaliza, mas o seu equilíbrio apresenta uma instabilidade perigosa. O homem – o médico, no caso que nos ocupa – deixa de frequentar as artes e as humanidades, priva-se de modos de conhecer o mundo, as pessoas e as coisas perde a capacidade de admirar-se e de comprovar que a maioria dos fenômenos independe dele. E, não menos importante, perde o sentido da transcendência, a dimensão espiritual, o sentido de eternidade e a duração do tempo próprio e do universo que lhe rodeia. As consequências são funestas, porque à base de não frequentar o túmulo, “porta da transcendência”, acaba esquecendo o sentido de missão e a importância de sentir-se útil, como elemento integrante da própria felicidade. 

Os processos de saúde representam uma tentação próxima para que o médico, desavisado, dê um segundo passo no itinerário do esquecimento e mergulhe na desumanização. A divisão do trabalho, e a especialização necessária para assimilar o progresso técnico e atender competentemente as diversas necessidades de saúde, são um elemento para aperfeiçoar a gestão. Mas, de per si, são recursos impessoais que requerem a interface do médico para chegar ao paciente de modo humano, um papel que o médico não pode nem deve delegar.

Um ensaio interessante (4) sobre o desaparecimento do médico pessoal – um verdadeiro especialista em pessoas e, portanto, a interface ótima entre a técnica e o paciente – chama a atenção para este assunto. O autor salienta que a experiência da doença nos reduz a uma dependência de crianças e que todos, também os médicos quando doentes, necessitamos de alguém que nos tire a dor da doença e, sobretudo, a dor da incerteza. Deste modo somos obrigados a depositar nossa confiança em alguém, pois o homem doente requer uma explicação para a dor que lhe vem lembrar sua condição mortal. A seguir, o ensaio analisa a situação da Medicina atual, e conclui que uma Medicina de equipes, na qual facilmente se delegam responsabilidades em terceiros (e até no próprio paciente ou família), presidida por uma preocupação com normas e códigos e por uma ênfase excessiva que se confere à autonomia do paciente são todos elementos que contribuem como séria ameaça para o relacionamento pessoal com o paciente.

O autor evoca ainda os escritos de Sir Theodore Fox (5,6) como um pensamento que deveria estar presente na Medicina de hoje. “O paciente está mais seguro com um médico sábio do que um médico treinado artificialmente”. E continua: “Se o médico deixa os cuidados para a enfermeira, a simpatia por conta da recepcionista, os recados através da secretária, e as soluções dos problemas domésticos nas mãos da assistente social e se todos se ocupam das pequenas coisas sob a supervisão distante do médico, o contato pessoal com o paciente ficará reduzido ao mínimo” E conclui o ensaio: “Conhecer a pessoa que tem a doença é pelo menos tão importante como conhecer a doença que tem aquela pessoa”. Uma afirmação que nos centra plenamente no paciente como pessoa, como realidade única.

A falta de uma metodologia para humanizar com eficiência é outro dos passos no itinerário do esquecimento. Não seria aventurado afirmar que os fracassos das tentativas humanizantes na Medicina não se explicam apenas por falta de vontade política ou porque os desejos de melhorar não são sinceros. É possível que, mesmo imbuídos da melhor boa vontade, se careça de metodologia adequada. Para humanizar não basta querer: é preciso saber fazê-lo. 

O humanismo em Medicina não é uma questão temperamental, um gosto individual, ou até um complemento interessante. É uma verdadeira ferramenta de trabalho, não um apêndice cultural. Facilmente se compreende que sendo o próprio ser humano a matéria-prima da profissão médica, tudo aquilo que ajuda a entendê-lo melhor converte-se em instrumento profissional. Humanismo deve ser, pois, uma atitude científica, ponderada, resultado de um esforço de aprendizado. 

Não é suficiente querer ser humanista – no caso, pretender uma prática humanista da Medicina – mas é preciso aprender a fazê-lo. Seria uma imprudência deixar os desejos humanizantes por conta apenas da boa vontade. Nesse caso, tudo estaria em função da espontaneidade – mal chamada de carisma – sujeita à fragilidade dos altos e baixos da vida, em espectro que compreende desde a intuição oportuna, que pode vir ou não no momento preciso, até o trivial dos estados de ânimo ou do desgaste da condição humana, que nem sempre apresenta a boa disposição que seria de desejar. A espontaneidade débil, desprovida de sustentação metodológica, é incompetente para educar, para formar pessoas quando muito, estimulará um ou outro sonho que se desvanecerá ao contato com o prosaico do cotidiano. E os sonhos desfeitos – fogo de palha – rendem a cinza do sombrio ceticismo que contempla, lamentando-se, a ineficácia do seu empenho repleto de bons desejos, mas órfão de metodologia. 

O humanismo surge como uma fonte a mais de conhecimentos para o médico, como uma ferramenta de trabalho imprescindível, que é tão importante – não mais nem menos – como os muitos outros conhecimentos e habilidades que adquire na escola médica. O humanismo, para o médico, consiste essencialmente em adotar uma postura reflexiva no seu atuar, adotar um verdadeiro exercício filosófico da profissão, independente de qual seja o seu foco particular de atuação como médico (7).

Esta reflexão implica a compreensão da pessoa, do outro – do paciente – e de nós mesmos. Trata-se de um conhecimento accessível a qualquer um, e para o qual conta, e muito, a boa vontade de quem pretende adquiri-lo. Mas é preciso ir além, e aprender os modos de compreensão, assimilar este conhecimento, transformá-lo de algum modo em metodologia gia que é, afinal, um sistema filosófico que governa o agir.

A filosofia, por outro lado, não é um simples postulado teórico, ou um conjunto de crenças, mas redunda em posturas concretas diante da vida. O ato de compreender exige uma filosofia que informe a vida informar, no sentido metafísico – isto é, o que dá forma, o que formata para dizê-lo com um termo mais atual. Somente quando se resolve a tão frequente solução de continuidade entre uma filosofia teórica – corpo de conhecimentos – e a vida, é possível atingir o âmago do ato de compreender. Quando não existe união de filosofia e vida, e a vida se vai vivendo do melhor modo possível – animada de boa vontade –, mas sem sustentação em valores filosóficos que trilham caminhos de conhecimento, os resultados costumam ser desanimadores. 

No âmbito da educação médica, é fácil perceber a impossibilidade de ensinar a viver – no caso, ensinar uma atuação voltada para a compreensão da pessoa –, quando se carece de uma metodologia própria, quando não se percorreram pessoalmente os caminhos que levam a aprender a compreensão. Daí a responsabilidade que a formação universitária tem para fomentar a cultura que é, em definitivo, saber adotar um modo de posicionar-se no mundo, e perante os semelhantes. Se a Universidade se preocupa apenas de treinar, ou capacitar profissionais, e descuida a promoção da cultura, é natural que o médico esqueça os caminhos da compreensão, o gosto pela reflexão, o exercício filosófico que leva consigo a sua atuação prática.

Essa era a função das assim chamadas artes liberais, base da original educação universitária. O qualificativo de liberais implicava que não estavam diretamente destinadas a um aprendizado técnico específico – treino ou capacitação. Denominavam-se liberais porque não eram servis, já que não serviam para algo peculiar sua utilidade consistia em construir o homem, o intelectual, e ajudá-lo a situar-se no mundo (8).

Um último passo no itinerário do esquecimento vem representado pela falta de apoio sustentável às iniciativas de humanização. Os projetos consistentes de humanização não saem muitas vezes do papel, porque não são financiados adequadamente. Pode-se pensar ingenuamente que como humanizar implica uma atitude, e as atitudes são difíceis de medir – e, portanto, de remunerar – deveria se deixar, mais uma vez, por conta da boa vontade das pessoas. O engano aqui é tremendo, porque as pessoas não incorporam as atitudes de por vida: podem, perfeitamente, abandoná-las em situações de cansaço, ou com as decepções que o dia a dia lhes traz. Por exemplo, a falta de agradecimento e a ausência de retorno diante da sua dedicação. A indiferença perante o esforço de alguém provoca uma terrível erosão das atitudes. 

Mas, na maior parte das vezes, a ausência de apoio se deve a uma falta de vontade política dos gestores, que não abrem espaço no orçamento nem na agenda para os projetos de humanização. Evidentemente, nunca se apresenta uma oposição aberta às iniciativas humanizantes, mas não são contempladas no setor financeiro. Com imensa frequência, comprovamos como congressos e fóruns de saúde, manejam polpudos orçamentos no referente à tecnologia – que é sempre o grande negócio – e deixam os temas que fomentam a humanização por conta de alguns idealistas que trabalham, na maior parte das vezes, gratuitamente. 

Quando um projeto consistente de educação humanística chega ao setor de contas a pagar, provoca uma revolução. Há quem se escandalize – “Mas… este é o preço? Não pensei que isto custaria tanto”. Há quem arquive a fatura no fundo de uma gaveta. Afinal, esse tipo de projetos não tem visual nem servem para se promover. Ninguém consegue colocar uma placa com o próprio nome num projeto que forma pessoas e tira delas o seu melhor, pois é disso que se trata quando se quer humanizar a saúde. É muito mais fácil colocar a placa no saguão do hospital, ou emprestar o nome para o auditório. Pode até ser mais caro, mas certamente aparece, brilha, e isso se alinha bem com a vaidade humana. 

Humanizar a saúde tem o seu custo, e este vai acoplado às pessoas que tem competência em gerenciar o projeto, não apenas ao visual de hotelaria como equivocadamente se quer pensar, nem mesmo aos sistemas de tecnologia de informação. Querer fugir disso é insensatez e gestão deficiente, como seria contratar um regente de orquestra barato, porque já se gastou demais com os instrumentos e com o teatro ou um técnico de futebol medíocre, porque o salário dos jogadores consumiu o orçamento. As consequências desse corte de despesas são fáceis de adivinhar. 

O caminho de volta: resgatando a vocação médica

Conhecer os tropeços desumanizantes e procurar evitá-los é, sem dúvida, uma necessidade para empreender o caminho de volta na procura da humanização da Medicina. Mas, ao mesmo tempo, impõe-se uma reflexão pessoal sobre a própria vocação médica para destacar alguns elementos integrantes que facilitem essa reconstrução que deverá ser, pessoal, única. A humanização da Medicina – já foi comentado – começa pelo desejo sincero e real que o médico deve ter de humanizar-se ele próprio. 

O conhecimento próprio é o ponto de partida. A reflexão honesta sobre quem somos e os objetivos que nos propomos, é condição imprescindível para reconstruir-se na dimensão humanista. Bem o advertiam os antigos, quando destacavam como início da sabedoria o “conhece-te a ti mesmo”. Um ensaio elegante de anos atrás coloca a questão com acerto (9). Relata-se a história de certo filósofo inglês que tinha uma curiosa gravação que atendia os chamados telefônicos quando ausente. A secretária eletrônica – answering machine, em inglês, textualmente “máquina de responder” – dizia: “Isto não é uma máquina de responder é uma máquina de fazer perguntas – questioning machine. Quem é você e o que quer da vida?” Diante da surpresa, o perplexo interlocutor ouvia alguns segundos depois prosseguir a gravação: “Não se assuste. A maioria das pessoas vêm a este mundo e vão embora, sem ter respondido estas duas simples questões”. Saber quem somos e o que queremos é condição sine qua non para atuar de modo consciente e responsável.

Certamente não se chega a estas profundidades reflexivas na prática médica diária, e talvez o problema se encontre aí e o dilema persiste enquanto se buscam soluções teóricas desatendendo o centro real da questão. E por esse mesmo motivo a fácil tentação do conhecimento crescente – a confortável sedução da informação científica – nos distrai daquilo que deveria ser a principal ocupação: o crescimento pessoal. Bem o adverte outro pensador quando afirma: “Não é difícil entender porque gostamos tanto de aumentar nosso conhecimento e tão pouco de aumentar a capacidade de amar. O conhecimento traduz-se automaticamente em poder, enquanto o amor se traduz em serviço” (10).

O amor pela tarefa que temos entre as mãos é fonte de sabedoria, e abertura para um humanismo cheio de competência. As sabias palavras de Gregório Marañón – paradigma de médico humanista- lembrando os antigos médicos familiares, ilustram este ponto de modo comovente: “Eles tinham um sentido da Medicina mais cordial, mais humano. Permanecia neles a figura do velho médico familiar, conselheiro, sacerdote, amigo nos momentos difíceis em cada lar. É provável que não soubessem tanto como nós, mas certamente foram melhores e mais sábios. Infelizmente, vamos esquecendo que a sabedoria não é somente saber as coisas mas também amá-las” (11).

Dessa sabedoria que o amor alimenta, nasce a atenção que deve dedicar-se ao paciente, verdadeira fonte de humanismo além de ser o caminho real para poder cuidar dele. “Em várias ocasiões fiz notar, que um sistema diagnóstico puro, deduzido exclusivamente de dados analíticos, desumanizado, independente da observação direta e entranhável do enfermo, leva implícito o erro fundamental de esquecer a personalidade, que tem tanta importância quanto as etiologias para estipular o prognóstico do paciente e saber o que nós, médicos, podemos fazer para aliviar seus sofrimentos. A personalidade é também uma etiologia” (12). Quando não se escuta com atenção o enfermo, quando falta interesse real por conhecê-lo dificilmente se descobre o que lhe afeta e não se consegue cuidar dele.

A experiência dos muitos pacientes cuidados e a reflexão constante permeada de uma cultura humanística colossal, explicam a afirmação que Marañón faz sem nenhum constrangimento: “Devemos admitir que a Medicina corrente se reduz habitualmente a problemas fáceis de resolver ou a problemas completamente insolúveis, mesmo para o homem mais dotado de sabedoria. O fundamental, perante o fácil ou o difícil, é a atenção: que o médico coloque sempre os seus cinco sentidos naquilo que faz, não em outras coisas”(12). Passado mais de meio século, quando a tecnologia invade a prática médica, não é dispensável este conselho do médico sábio, pois hoje é mais fácil distrair-se com a técnica e esquecer o paciente, do que em tempos onde os recursos eram muito mais escassos. 

A reflexão que nos ocupa é de caráter fenomenológico e vital. Não é possível medir quantitativamente, pois diz respeito à atitude do médico, ao interesse. Talvez a cristalização deste interesse – a imagem é também de Marañón – seja a cadeira, que ele considerava o elemento humanizante por excelência na prática médica. Quando o médico senta-se para conversar com o paciente está lhe indicando com a sua atitude que tem todo o tempo do mundo para escutá-lo. Hoje temos computadores, prontuários eletrônicos, técnicas sofisticadas, mas talvez nos faltem cadeiras ou, pior, perdemos o gosto por sentar-nos nelas, do lado do paciente. A boa Medicina à beira do leito tinha este componente humanístico da proximidade física com o paciente, do tempo gasto em companhia dele. 

Vejamos um argumento moderno, de quem trilhou muitos caminhos da educação humanística como professor, hoje com uma autoridade diferente: “Nesta perspectiva, adquire relevância primária a relação de confiança recíproca que se estabelece entre médico e doente. Graças a esta relação de confiança o médico, ouvindo o doente, pode reconstruir a sua história clínica e compreender como ele vive a sua doença. É ainda no contexto desta relação que, com base na estima recíproca e na partilha dos objetivos realistas que devem ser perseguidos, pode ser definido o plano terapêutico: um plano que pode levar a ousadas intervenções salva-vidas ou à decisão de se contentar com meios ordinários que a Medicina oferece. O que o médico anuncia direta ou indiretamente ao doente, de modo verbal ou não, desenvolve uma notável influência sobre ele: pode motivá-lo, apoiá-lo, mobilizar e até potenciar os seus recursos físicos e mentais ou, ao contrário, pode enfraquecer ou frustrar os seus esforços e, deste modo, reduzir a própria eficiência dos tratamentos praticados. Aquilo a que se deve mirar é uma verdadeira aliança terapêutica com o doente, apoiando-se naquela específica racionalidade clínica que permite que o médico distinga as modalidades de comunicação mais adequadas para cada doente. Esta estratégia comunicativa terá por finalidade, mesmo se no respeito pela verdade dos factos, sobretudo apoiar a esperança, elemento fundamental do contexto terapêutico” (13).

Seguindo ainda com as considerações precisas de Marañón devemos apontar o entusiasmo, como um elemento que lhe facilita o resgate do sentido da vocação médica. Pode parecer uma afirmação gratuita, mas o entusiasmo é uma garantia de retidão ética: “Todo homem entusiasta, na ciência e na vida, é sempre um homem bom e talvez há poucos índices mais acertados do que o entusiasmo para julgar a qualidade moral do ser humano. Nada abre o coração do homem e mostra sua intimidade do que o entusiasmo, pois o coração do homem comporta-se como as mulheres quando exibem sua beleza: somente mostram o que é esteticamente conveniente” (14). 

Este entusiasmo é a vibração pela própria profissão, o agradecimento operativo da missão encomendada, e de ajudar àqueles que se aproximam de nós buscando alívio para os seus sofrimentos. É carregar com alegria a vocação e a responsabilidade de ser médico. “Nós médicos temos, para curar, uma arma fixa que é a ciência, arma certamente cada vez mais poderosa. No entanto, dispondo apenas dela, a utilidade da nossa atuação reduzir-se-ia a termos quase desprezíveis. Além desta eficácia segura e controlável, além das nossas receitas de efeito matemático, atuamos sobre o ser humano que sofre pela via invisível e imponderável da empatia, da influência vital (…). Se eu tenho uma fé profunda nas minhas armas terapêuticas e as aplico, cheio de entusiasmo, aos meus pacientes, esta fé e este entusiasmo multiplicarão até limiteis inverossímeis a eficácia bruta dos meus recursos”(14).

O entusiasmo gera humildade, conhecimento dos próprios limites, outro elemento imprescindível no caminho de volta para o humanismo. “Gostaria de lembrar aos que trabalham ao meu lado que nunca esqueçam de que devemos dominar com a maior precisão os conhecimentos de que dispomos como médicos, mas tendo consciência do seu possível valor provisório. O vazio existente entre a imperfeição da verdade que possuímos e a perfeição da verdade que desejamos atingir devemos tentar preenchê-lo com entusiasmo e boa fé e, sobretudo, com enormes doses de modéstia” (12).

As artes e humanidades são um elemento clássico na formação humanística do médico constituem-se em importante recurso para conhecer o ser humano com quem terá de deparar-se de por vida. Daí que andem paralelas – com sabor clássico – a figura do médico humanista e a do profissional humanitário (15). O universo das artes é, para o médico, uma companhia necessária que assegura sua identidade vocacional. Para o estudante, médico em formação, é auxílio na construção dessa identidade para o profissional, torna-se instrumento de trabalho, fonte de conhecimentos, barreira que protege de desvios. E sempre a arte é nutrição para o espírito, têmpera que lhe permite tratar com a dor, a morte e toda a gama de limitações que a condição material humana impõe, sem perder a perspectiva transcendente. A arte não é simples refúgio que consola quando se apalpa a caducidade da matéria, como um sonho que ajuda a fugir da realidade. A arte e o humanismo são verdadeiras couraças que nos permitem mergulhar em cheio na materialidade, misturar-nos com ela –, pois é com ela que os médicos lidamos diariamente – para dando o melhor de nós como profissionais, ajudar até onde nos é possível, sem infectar-nos com o germe do materialismo que conduz, antes ou depois, à decepção e a perda do entusiasmo profissional.

“O uso das humanidades na Medicina supõe um particular conceito de educação dos médicos que o paciente e o público solicitam. O paciente quer um médico educado – quer dizer, alguém que não possua apenas conhecimentos, métodos clínicos e experiência, mas também que seja capaz de apreciar cada paciente como um ser humano que tem sentimentos e desejos, que possa entendê-lo e ajudá-lo explicando-lhe sua doença e amparando-o no sofrimento. Para saber lidar com estas realidades as humanidades ajudam, e muito, já que educação é mais do que simples treino: implica uma atitude reflexiva no médico e um desejo contínuo de aprendizado ao longo da sua carreira profissional (16) “. A arte facilita a compreensão das emoções humanas e das atitudes do paciente perante a doença, e ajuda o médico a cuidar do paciente corretamente. A arte ilumina aspectos da vida, abre o espectro de observação do médico perante as emoções alheias. Neste novo universo afetivo que se contempla, é possível concordar ou não com ele, mas certamente não é possível ignorá-lo. As histórias referidas na ficção artística – na literatura, por exemplo – preparam o médico para escutar as histórias de vida real, e o auxiliam para que ele mesmo possa contar suas histórias (17).

Os recursos humanísticos na educação médica situam-se no amplo espectro da condição humana. Surgem iniciativas vinculadas às humanidades e às artes, na tentativa – urgente, e ao mesmo tempo, paciente e continuada – de conduzir o estudante de hoje – médico de amanhã – no caminho da reflexão sobre a riqueza da dimensão humana. Literatura e Teatro (18,19), Poesia (20), Cinema (21 -25), Ópera (26) e Música (27) compõem o mosaico de recursos que os educadores tomam emprestados das humanidades na tentativa de auxiliar na construção da identidade do futuro médico. Um médico que terá de ser humanista se pretende estar à altura das responsabilidades que a sociedade lhe exige. Um médico que conseguirá no seu cotidiano ser humanista, porque vê o paciente como pessoa, considera seu entorno social e psicológico, tem sensibilidade, afeto e ética e demonstra cordialidade com o enfermo (28).

A utilização do cinema no caminho de volta para humanizar a Medicina tem demonstrado notável impacto educacional (29). Educar através do Cinema nos coloca no âmbito afetivo onde o personalismo se impõe como condição eficaz de aprendizado e assimilação de atitudes. Não deve haver muita diferença em expor os conceitos da física quântica, da astronomia, ou da fisiopatologia do câncer gástrico de modo objetivo ou levando em conta os sentimentos, que dificilmente modificarão as informações científicas. Mas quando se trata de promover atitudes, tomar decisões, provocar a reflexão, estimular a conduta ética, construir, enfim, a personalidade, não é em absoluto equivalente enunciar os princípios do bem agir – a modo de manual de boas maneiras – ou levar em consideração “o sabor desses princípios” e tentar torná-los palatáveis. 

Aqui pode se encontrar o fracasso de tantas tentativas de “ética por atacado”, “cursos intensivos de final de semana”, ou mesmo a pouca eficácia dos códigos de ética de muitas profissões: falta-lhes “sabor”, e sobram-lhes conceitos e regras que, por outro lado, são amplamente conhecidas. Se não se praticam não é por desconhecimento, mas por falta de motivação. Os sentimentos são, pois, como o tempero que facilita a ingestão do alimento, conferindo um toque especial e personalíssimo que faz do comer – por seguir a metáfora – algo que vai muito além da simples nutrição. E os temperos – que implica elaboração de molhos, condimentos e muita arte – devem ser preparados com alma de artista. A educação da afetividade requer arte de quem educa, criatividade para adaptar-se às necessidades de cada um, ao gosto de cada paladar – como fazem as mães e, nem dizer, ás avós – e que conquista a vontade, a nutre e estimula para que cada um dê o melhor de si. A afetividade modula o conhecimento dando-lhe um toque pessoal, como um prisma que amplifica, focaliza, dá zoom, destaca ou mesmo deforma a rigorosa objetividade dos conceitos e das ideias. Deve-se esperar de quem pretende educar as emoções que entre em sintonia com todo esse mundo subjetivo, que é afinal criação e arte.

A integração de conhecimento que as histórias de vida e a discussão de casos de pacientes reais trazem para o estudante assume uma importância particular quando se trata de abordar questões de natureza ética. O aspecto mais interessante das discussões que abordam as questões éticas é o foco onde a dúvida é colocada: sempre a questão pontual, prática. O ensino da ética deve contemplar, além do corpo teórico de conteúdo, espaço para discutir – que é tentar explicar e entender – as dúvidas práticas dos estudantes, que abrangem todo o espectro da atuação clínica onde sempre surge a dúvida ética. Assim, os temas que vão desde a dificuldade em cuidar do paciente, e tratar com a família, até como lidar com a morte, a questão da eutanásia, o sofrimento e a Medicina paliativa, sem excluir o relacionamento com os colegas, apontam para a necessidade de discutir significados, ao invés de estabelecer protocolos. Existe pouco espaço para esta discussão no ambiente acadêmico, e as experiências aqui relatadas mostram que a discussão amplia a visão. São temas que “pedem espaço” para serem tratados.

É esta uma advertência importante que nos chega da mão do aluno, que é o verdadeiro protagonista do processo educacional: não se trata de implantar cursos específicos, mesmo com grande carga horária, mas de permitir esta metodologia de discussão, em caráter oficial, ao longo de todo o período da formação acadêmica. As novas situações e contextos educacionais com que o aluno se depara ao longo dos anos na escola médica, suscitam os questionamentos anteriormente apontados, que pedem espaço para discussão, reflexão, resolução e autoconstrução ética de modelos e atitudes. O aluno manifesta o receio de “esquecer” estas posturas, se o processo é interrompido. Também é apontada a figura do monitor ou tutor como aspecto prático nesta continuidade. Daí a importância dos projetos que visam uma formação denominada longitudinal em ética, amparando o aluno ao longo de todos os anos da graduação (30,31).

Ensinar humanismo é fomentar a reflexão sobre a condição humana, situação que envolve não apenas o paciente, como os próprios interessados: alunos e professores. Não é um processo inócuo, onde quem o estuda se situa em posição isenta. Legisla-se em causa própria, e as conclusões comprometem, em primeiro lugar, o próprio legislador – o estudioso –, que não tem como furtar-se às consequências das suas próprias reflexões. E assim, o que muitas vezes começou como pouco mais que uma curiosidade cultural, ou como necessidade instrumental da profissão que se quer exercer, debruça-se sobre a própria vida, envolvendo-a e interferindo sobre os próprios valores e perspectivas.

A competência que buscamos na formação dos futuros médicos implica humanismo. Sem humanismo, não há competência possível. Formar médicos humanistas vai muito além de dar um verniz humanitário ao futuro medico, mas instalar um processo de reflexão que lhe permita, de modo continuado, reavaliar sua opção vocacional, sua resposta como pessoa e como profissional. Um elemento essencial que se insere na alma do profissional e se faz vida da sua vida (32).

Um novo humanismo médico: a humanização sustentável

O tema do humanismo médico – ou da humanização da Medicina – não é algo novo, mas preocupação sempre presente nos acadêmicos que comentam acerca do equilíbrio que sempre se deu na Medicina, entre as duas facetas que a compõem: a Medicina como ciência, e a Medicina como arte (33). Os vertiginosos avanços científicos requereriam, para manter esse equilíbrio, uma ampliação do âmbito do humanismo, quer dizer, um humanismo que fosse proporcional ao progresso técnico. Quando essa atualização moderna do humanismo não acontece, o resultado são profissionais formados tecnicamente, mas com sérias deficiências humanas. Profissionais disformes, com hipertrofias científicas e atrofias humanísticas, que não são capazes de inspirar confiança ao paciente. Como resolver este dilema? Ou melhor: como resolvê-lo de modo sustentável e instalar um processo sólido de volta ao humanismo médico? Afinal, como formar este profissional do qual precisamos? Na verdade, a questão é vital, porque se trata de resgatar a essência do ser médico. Humanizar o médico é no fundo um contrassenso. O humanismo é inato à profissão médica. Um médico sem humanismo não será propriamente médico. Na melhor das hipóteses trabalhara como um mecânico de pessoas (34). 

Toda a responsabilidade recai, assim, no processo de formação do médico. E aqui o desafio é enorme, porque não se trata de importar conceitos humanistas de outrora, num saudosismo estéril, abominando do progresso. Não se pode ser médico humanista, com um humanismo do século passado. Requer-se a construção de um novo humanismo médico que integre todas as dimensões da atuação médica em unidade harmônica, em sólida competência. 

O pensador francês Gustave Thibon (35) reúne um conjunto de ensaios num volume que intitula “O Equilíbrio e a Harmonia”. O equilíbrio é composição de forças contrárias, solução de compromisso, resultante de vetores que se anulam entre si. A harmonia é o encaixe perfeito das partes de um todo, em colaboração perfeita para uma mesma finalidade. E, citando Vitor Hugo, comenta: ‘Por cima do equilíbrio encontra-se a harmonia, por cima da balança encontra-se a harpa’. 

É bem possível que as tentativas humanizantes na Medicina – especialmente na formação acadêmica dos futuros médicos – incida neste erro: uma busca do equilíbrio, ao invés de promover a harmonia. O equilíbrio da por suposto que a ciência moderna apoiada em evidências tem de ser temperada com atitudes humanistas, ou humanitárias. Assim escutar com carinho a história do paciente, sentir compaixão, e posturas análogas. Mesmo reconhecendo nesses modos um notável avanço sobre o descaso que diariamente contemplamos para com o paciente e a família, pode se entrever um equilíbrio frágil, de pouca consistência. Na prática continuaremos admitindo duas posturas que não se misturam, como o azeite e a água. Água clara das evidências e o azeite que conforte. Mas cada um com densidade própria, aplicados no seu tempo e no momento pertinente. Esta “esquizofrenia da atuação médica” é insustentável em si mesma, dura pouco, e quando o médico se canse prestará atenção a um aspecto em detrimento do outro. 

A ciência médica, a Medicina de ponta, exige hoje um novo humanismo. É necessário instalar uma postura que saiba colocar no mesmo raciocino a função hepática e as sequelas neurológicas, com o sentido da vida as transaminases e a albumina combinadas com a humilhação, o sofrimento e a perda. Uma ciência que é arte e por isso consegue situar na mesma equação dimensões tão dispares, que aparentemente não se misturam. Na verdade, estão misturadas completamente na própria vida: a protrombina e o desânimo, os neurotransmissores e o cansaço de viver, os hepatócitos e a indignação (1). 

Este novo humanismo médico deve construir-se pautado pela harmonia, para saber tocar, com diferentes cordas, o acorde perfeito. Equilíbrio é optar por uma composição unitônica, ora ciência, ora arte um pouco de albumina, e medidas doses de afeto. Harmonia é colocar cada competência no seu lugar, ter alma de artista para saber tocar a harpa dos cuidados médicos, incorporar a polifonia com variedade de instrumentos, com silêncios e compassos de espera, na sinfonia de cada vida humana que nos é confiada. Estes são os acordes que permitem ao médico percorrer o caminho entre a pessoa doente e o significado que a doença tem para o paciente, já que a enfermidade é para o paciente um modo de estar na vida. Uma forma de vida que tem sua própria linguagem e deve encontrar no médico sensível, o receptor necessário para decodificar corretamente os significados. O novo humanismo médico é verdadeira antropologia ativa, e não simples especulação teórica. “Para o profissional da Medicina, humanismo e antropologia são possibilidades da sua auto exigência, desafios ao seu pensamento racional, níveis de conhecimento em aspiração ascendente de inconformismo” (36).

O novo humanismo médico permite ao profissional ocupar-se da pessoa doente “em todas as suas expectativas humanas. É bom nunca esquecer que são precisamente estas qualidades humanas que o doente aprecia no médico, além da competência profissional em sentido estreito. Ele quer ser visto com benevolência, não só examinado quer ser escutado, não só submetido a diagnoses sofisticadas quer sentir com segurança que está na mente e no coração do médico que o trata” (13). 

O humanismo médico é fonte de conhecimento que o médico utiliza para melhor cuidar do ser humano que lhe é confiado. Caminhos diversos de conhecimento que encontram na pessoa do paciente o terreno comum de atuação, a unidade de missão. Um humanismo que vai além do equilíbrio que pretende compensar os excessos da técnica colocando na balança esporádicas atitudes humanitárias. Um humanismo que representa a harmonia do verdadeiro virtuosismo musical e não apenas de um apêndice cultural. Uma atitude científica, ponderada, resultado de um esforço consciente de aprendizado possuidor de metodologia consistente (37,38). 

A proposta de um novo modelo de humanismo médico surge assim como uma possibilidade sustentável para humanizar a Medicina, porque moldaria o processo de formação do médico na mesma fonte acadêmica. E deste modo, poderia viabilizar-se esse modelo humanista que resulta da harmonia precisa que sabe combinar em perfeita sintonia a ciência de uma Medicina moderna, baseada em evidências, com a arte e os cuidados que implica entender o enfermo como pessoa, centrar-se no paciente e não apenas na doença que lhe acomete.

 

Bibliografia

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