Nuccio Ordine: “La utilidad de lo inútil. Manifiesto”
Nuccio Ordine: “La utilidad de lo inútil. Manifiesto”. Acantilado. Barcelona. 2013. 172 pgs.
Edição @ 9/mar/2016: O livro foi traduzido ao português e é oferecido pela editora Zahar.
Como se indica junto do cabeçalho, isto mais do que um livro é um manifesto. Uma declaração, um statement. O título –tema sedutor, com o qual venho me relacionando em longo namoro- foi o que me levou a comprar o livro, na versão espanhola (não me consta que exista tradução ao português). Pouco me importava se tratava-se de um protesto assertivo ou de um raciocínio lógico: o assunto da cultura –da falta dela, se entende- é como um imã sugestivo que me atrai incondicionalmente. É mais, deixo-me atrair, agarro-me a ele, seguindo aquele conselho de Ortega de que á cultura é o que nos salva do naufrágio vital. Mormente nesta época de avanços tecnológicos impensáveis, verdadeiros Titanics que navegam para o golpe fatal por desprezar a inutilidade de um iceberg que surge no meio do percurso.
A declaração situa o abre alas do tema com clareza. “A lógica do benefício mina na base as instituições (escolas, universidades, centros de pesquisa, museus, bibliotecas) e as disciplinas (humanísticas e científicas) cujo valor deve coincidir com o saber em si, independentemente da capacidade de produzir ganâncias ou benefícios práticos”. E tudo isto, para que serve? O que eu ganho com isto? Pergunta que, quando não explícita –até fica mal dizer assim, de cara, o que no fundo estou pensando, quanto levo eu com tudo isto- nunca deixa da pairar no ambiente. Esse questionamento é já cortina que embaça a beleza da vida, que faz perder o encanto do viver. “É doloroso ver homens e mulheres empenhados numa insensata carreira à terra prometida do benefício, na que tudo o que lhes rodeia –a natureza, os objetos, os outros seres humanos- não despertam nenhum interesse. O olhar fixo nesse objetivo não permite entender a alegria dos pequenos gestos quotidianos nem descobrir a beleza que pulsa nas nossas vidas: um por de sol, um céu estrelado, a ternura de um beijo, a eclosão de uma flor, o voo de uma borboleta. Porque, frequentemente, a grandeza se percebe melhor nas coisas mais simples”.
O autor afirma –porque um manifesto é uma série de afirmações, que não me incomodam, é mais me confortam- que é justamente fazer coisas “inúteis” o que nos distingue dos irracionais. “Na escala dos seres, apenas o ser humano realiza atos inúteis. A utilidade do inútil é a utilidade da vida. Como disse Vargas Llosa, ‘um mundo sem literatura seria um mundo sem desejos, nem ideais, um mundo de autômatos privados daquilo que faz com que o ser humano seja tal: a capacidade de sair de si mesmo e mudar-se em outros, moldado com a argila dos próprios sonhos’. E não só dos irracionais, mas do comportamento irracional e desumano que tantas vezes contemplamos na historia. “Quando prevalece a barbárie, o fanatismo se enraivece não apenas com os homens, mas também com as bibliotecas e com as obras de ate, com os monumentos e as obras primas. O imperador que mandou construir a muralha da China, foi o mesmo que ordenou que se queimassem todos os livros anteriores a ele”.
Preocupamo-nos hoje com a humanização –lugar comum que consegue me irritar cada vez mais. Humanização das profissões, da medicina (tópico que sou obrigado a escutar diariamente), das relações humanas. Mas é uma preocupação teórica que busca resolver-se com soluções técnicas, fast-food, com aplicativos humanizantes. Mas se esquece a raiz do itinerário da desumanização: uma inversão de valores, ou melhor, não dar valor ao que nos salva de perder o humanismo. Nem valor, nem investimento. Gastam-se bilhões na técnica –sem falar nos que se perdem na entropia da corrupção- mas pensa-se ingenuamente que o humanismo é uma atitude de voluntariado. Erro grave: manter o humanismo e a cultura requer toneladas de investimento de dividendos hoje escassos: tempo! “O cultivo dos clássicos, do supérfluo, daquilo que não supõe benefício nos ajuda a resistir , a manter viva a esperança, e entrever um raio de luz que nos permitirá percorrer um caminho decoroso. A cultura, a literatura, os saberes humanísticos são como o líquido amniótico onde as ideias de democracia, liberdade, justiça, solidariedade, podem desenvolver-se”.
Não poderia faltar no manifesto um capítulo dedicado às instituições formadoras, aquelas que deveriam manter a cultura, e não o fazem. O título do capítulo já diz tudo: “A Universidade empresa e os estudantes clientes”. E, a seguir, o problema se expõe com realismo cru: ”Por desgraça, vendem diplomas. E os vendem insistindo no aspecto profissionalizante, oferecendo cursos e especialização aos jovens com a promessa de obter trabalhos imediatos e ingressos atrativos. Privilegiar de maneira exclusiva a profissionalização implica em perder a visão da dimensão universal da educação: nenhum ofício se exercerá de modo competente se as competências técnicas que exige não estão subordinadas a uma formação cultural mais ampla que anima os alunos a cultivar seu espírito (…) Identificar o ser humano com a sua profissão constitui-se em grave erro: em todo ser humano há algo essencial que vai além do ofício que exerce”. Não faltam os exemplos, de instituições de prestígio, a modo de golpe de misericórdia: “Como a matricula de Harvard é muito cara, o estudante espera do professor não apenas que seja culto, competente e eficaz; espera submissão, porque o cliente sempre tem razão”.
Enquanto faço estas anotações acode à minha memória um evento ocorrido anos atrás quando deixei nas mãos de um jovem médico recém formado, aquele livro de Ortega (Missão da Universidade, 1930) que diz o mesmo que este, embora de um modo mais discursivo, numa abordagem filosófica. O colega me devolveu o livro algumas semanas depois e disse: “Vou pedir o meu dinheiro de volta”. Ainda bem que não coloquei mais lenha na fogueira, emprestando-lhe outro livro que Nuccio Ordine cita expressamente: Discursos sobre el fin y la naturaleza de la educación universitaria.O estrago – a decepção revelada, explícita- teria sido ainda maior.
No vácuo de Newman, o autor afirma o que já sabemos, aquilo que a academia também deve saber, mas faz questão de ignorar na prática. “Os saberes humanísticos são como a memória da humanidade. Prescindir deles, é construir uma sociedade desmemoriada que perde o sentido da própria identidade(…) O carisma do professor, todos sabemos por experiência, é o que nos inclina para uma determinada matéria. A educação é uma forma de sedução, uma arte que mais do que ofício (emprego) é uma vocação. O conhecimento é uma riqueza que se pode transmitir e compartilhar sem empobrecer-se. Ao contrário, enriquece a quem o transmite e a quem o recebe.(…) Somente a consciência de estar destinados a viver na incerteza, somente a humildade de considerar-se falível, somente a consciência de estar exposto ao risco do erro podem nos permitir conceber um autêntico encontro com os outros, com quem pensa de modo diferente de nós. A pluralidade de opiniões é uma riqueza da humanidade, não um obstáculo perigoso”. Temos aqui alguns parâmetros do que deveria ser a Universidade: Universitas, a construção de uma visão universal, de uma postura na vida perante o mundo.
Devo confessar que o meu entusiasmo quando descobri este livro, agudizou-se ainda mais quando li que incluía um apêndice de Abraham Flexner. No universo da Medicina Flexner, com o seu informe de 1910 que provocou a conhecida reforma nas escolas de medicina, é todo um marco na educação médica. Essa reforma foi necessária para sistematizar os ensinamentos, afastar os charlatães, ordenar o conhecimento, promover a imprescindível especialização que os avanços técnicos exigiam da medicina. A proposta era inquestionável, mas as consequências –os efeitos colaterais- vieram de brinde: a fragmentação do ser humano (o famoso divide e vencerás pode se traduzir aqui por segmenta e aprenderás). Uma vez dividido está cada vez mais difícil juntar as partes.
Talvez por isso, o próprio Flexner escreve em 1939 (quase trinta anos depois do seu Informe) este opúsculo que aqui consta como apêndice: A utilidade dos conhecimentos inúteis. Lá podemos ler: “Eu passei muitos anos defendendo que nossas escolas deveriam prestar mais atenção ao mundo no qual seus alunos estão destinados a viver. Agora me pergunto se esta corrente não assumiu força excessiva e se estamos deixando espaço para uma vida plena se despojamos o mundo dessas coisas inúteis que lhe outorgam um significado espiritual. Quer dizer, se o nosso conceito do útil não se tornou estreito demais (…)A maioria dos descobrimentos importantes da humanidade devem-se a pessoas que não se guiaram pelo afã da utilidade, mas pela curiosidade. ….Defendo a conveniência de abolir a palavra utilidade (nos laboratórios) e liberar o espirito humano”.
Vindo de quem vem, estas considerações não são de desprezar. Claro é que na hora de aplica-las, o engessamento da academia é de tal ordem, que ninguém se atreve a dar o primeiro passo. Afinal, é melhor ter tudo sob controle, com avaliações nas que cada vez menos pessoas acreditam, mas que são as que devem ser registradas nos processos educativos. Uma burocracia acadêmica, quase como a muralha da China. Não manda queimar o que é externo a ela, mas o despreza e ignora. Enquanto isso, forma, gradua, pós gradua burocratas do conhecimento, que perpetuam sua própria espécie. O mercado olha perplexo, pois não lhe chegam os profissionais que espera, que necessita. Não por falta de conhecimento técnico, mas pela ausência total do líquido amniótico da cultura que permite a criatividade. O empreendedorismo é demônio condenado na academia. E tudo em nome dos processos e protocolos certificados pelo establishment. Vale uma última afirmação –de Flexner, naturalmente- para encerrar este tema infindável: “O inimigo real do gênero humano não é o pensador audaz e irresponsável, tenha ou não razão. O inimigo real é quem trata de moldar o espírito humano de modo que não se atreva a empreender grandes voos”.
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É mesmo difícil compreender a Utilidade do inútil e, em meio à complexidade da questão, me fez lembrar um versinho que dizia:
Perder tempo, contingência
Que o homem traz, aturdido,
Sem saber que, da existência,
O melhor tempo é o “perdido”.
O olhar se perde em atender a tantas possibilidades, com tantos recursos e tão poucas utilidades no fazer… A formação universitária precisa de mudanças, mas a sociedade parece perder os valores que justificam a confiança, a dedicação, como a sua, Dr. Pablo, que encontra preciosidades, nem sempre percebidas.
Luiza Elena Ribeiro do Valle
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