Daniel Pennac: “Como um Romance”

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Daniel Pennac: “Como um Romance”.  Rocco editora. Rio de Janeiro. 1993. 165 pgs.

Um livro fascinante e instigador. Descobrir o prazer de ler; contagiá-lo aos outros, resgatar os que tem medo de ler, e desconhecem seu potencial. De tudo isso nos fala Pennac, o educador francês que foi estudante rebelde e, resgatado por professores, transformou-se num paradigma docente. Mas continua sendo l’ enfant terrible, aproveitando suas origens e usando uma linguagem coloquial para seus propósitos educativos.

Logo no início nos adverte como se formam os anticorpos contra a leitura. Quando, por motivos académicos (o que se deve ler no colégio), ou por prescrição de alguém (familiar, vamos aproveitar o tempo), simplesmente se impõe: “O verbo ler não suporta imperativos. ‘Tem que ler’. Aversão que partilha com alguns outros: amar, sonhar. Me-ame, sonhe, leia, logo!”.

De modo sugestivo, o autor descreve como a criança aprende a ler. Enquanto isso, se encanta escutando histórias que lhe contam, talvez na hora de dormir. Capta as primeiras letras, junta-as, e se transforma “no substituto incansável das grandes epístolas publicitárias…. Renault, Mesbla, Minalba, Minerva……as palavras lhe caem do céu. Marca nenhuma de sabão resiste à sua paixão de decifrar”. Mas isso não quer dizer que esteja pronto para enfrentar a leitura por si só. Quer, ainda, escutar as histórias, mesmo sabendo juntar as palavras. O esforço de ler e relaxar, no começo, ainda é grande.

Esse parece ser mesmo o ponto de inflexão. Quando a criança está ainda taxiando na pista sem decolar, e a insistência dos adultos -dos pedagogos- impõe a leitura. É o momento, diz Pennac, onde “a televisão é elevada à dignidade de recompensa, e a leitura reduzida ao nível de obrigação.”. Passar daí a alergia pela leitura é simplesmente um passo. E se combate a situação de modo equivocado. A leitura assume então um ar de punição: “Nada de TV durante o ano escolar. Vamos ver se assim o garoto lê. Porque tem de ler, não?”.

É necessário estar atento nesse momento para não interromper as leituras em voz alta. É uma atitude sedutora, que cria uma sadia dependência. E a modo de exemplo relata-se o testemunho de uma aluna falando do seu professor: “Ele nos falava de tudo, nos lia tudo. Nos tomava pelo que éramos, jovens colegiais incultos e que mereciam saber. Os textos não caiam do céu, ele os apanhava na terra e nos oferecia para ler. Tudo estava ali, em torno de nós, fremente de vida. E quando abordou ‘os grandes da literatura’, conseguiu que em uma hora perdessem a estatura de divindades escolares para se tornarem íntimos e misteriosos”.

“Em vez de exigir a leitura o professor deveria partilhar sua própria felicidade de ler”. Lendo isto lembrei de uma vivência inesquecível que tive no colégio, quando eu tinha 10 anos. Constava no horário uma atividade semanal, às segundas-feiras à tarde, denominada ‘Hora Literária’. O professor, Dom Manuel, ficava na frente da classe de pé, e apoiava o livro sobre um atril. Do seu lado, um gravador antigo, tocava alguma música clássica enquanto ele lia para nós. Lá desfilaram “As mil e uma noite”, “D. Camilo”, Julio Verne, Salgari, e muitos outros livros que, para ser sincero, nem me lembro. Mas o que recordo bem era a expectativa de toda a classe quando chegava esse momento; a atenção e o silêncio sepulcral que reinava numa turma de mais de 30 garotos, saídos de um jogo de futebol após o almoço, e fervilhantes de atividade.

E os alunos difíceis? Aqueles que insistem em que não sabem nada, e se excluem do progresso para suprimir os inconvenientes do esforço? Também destes nos fala Pennac, pois afinal foi um deles. Existe um caminho que é preciso mostrar com o exemplo, não apenas apontar. O caminho que Montesquieu delineava afirmando que “nunca tive um estado de tristeza que uma hora de leitura não me tivesse aliviado”. Mostrar, como fazia D. Manuel, que “uma das funções essenciais do conto é impor uma trégua ao combate entre os homens”. E, deixar de lado as preocupações formalistas de avaliação acadêmica. O autor é contundente: “Que pedagogos éramos quando não tínhamos a preocupação da pedagogia!”.

Deste modo, por contágio, cria-se a adição para a leitura, um hábito que não tem volta. Aponta Pennac: “O mérito do professor é quase nulo. O prazer de ler estava bem perto, sequestrado num desses sótãos adolescentes por um medo secreto: o medo de não compreender. Tinham se esquecido que um romance conta antes de tudo uma história. Não sabiam que um romance tem de ser lido como um romance: saciando primeiro a nossa ânsia por narrativas”

Mas, e o tempo para ler?  Eu não tenho tempo. E quem tem? “O tempo para ler é sempre um tempo roubado, como o tempo para escrever, como o tempo para amar. Quem é o enamorado que não encontra tempo? A leitura não depende da organização do tempo social, ela é, como o amor, uma maneira de ser”.

Mas, por onde começar? Que livros? Novamente a advertência experimentada: cada livro tem o seu tempo, o seu momento. A noção de maturidade é coisa estranha em matéria de leitura. Até uma certa idade não temos a idade para certas leituras.

Após esta magnífica apologia da leitura -da habilidade para comunicar este prazer- Pennac conclui este pequeno-grande livro, com os direitos imprescritíveis do leitor: o direito de não ler, de pular páginas, de não terminar um livro, de ler qualquer coisa e em qualquer lugar, de reler, de calar. Enfim, um touché definitivo para que ninguém se sinta excluído em participar desta aventura literária.

 

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