Todos já sabem: Luzes e Sombras na Família

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Todos lo saben. Diretor: Asghar Farhadi. Penélope Cruz, Javier Bardem, Ricardo Darín, Eduard Fernández, Inma Cuesta, Bárbara Lennie, Elvira Mínguez, Ramón Barea, Carla Campra.

Quando tropecei com este filme, por conta de um desses breves avisos que chegam em forma de newsletter, tive de parar e pensar. Um filme de espanhóis, dirigido por um Iraniano? O chamado dizia algo assim como “tragédia familiar: mais do que resolver o mistério, o núcleo é o drama e sofrimento da uma família”. E, para aumentar minha surpresa, algo se comentava sobre a abertura do festival de Cannes, o que é fato raríssimo para uma produção falada em espanhol. Busquei recursos informativos -ao alcance de um click- e lá estava. Acontecimento inusual, abrir o clássico festival, com produção que não seja francesa ou inglesa. E o detalhe: segundo filme em espanhol a abrir Cannes, desde 2004 que o debut correu por conta de uma fita de Almodóvar.

A surpresa, já transformada em curiosidade, foi em aumento. Almodóvar e Cannes combinam bem com os atores deste filme que são, além de completamente espanhóis, totalmente almodovarianos, e de grande categoria. Mas….onde entra aqui o diretor Iraniano? O mesmo que dirige “O Passado”, “ O Apartamento”, “A Separação”, temáticas centradas na família? Atores fetiche de Almodóvar, nas mãos de um diretor que gosta de ser um homem de família? E a cereja do bolo:  Ricardo Darin, um ator enorme, para dar o contraste argentino, em genuíno sabor de tragédia, quase de tango portenho…..

Fiz-me com o filme, e esperei alguns dias até entrar de férias, para ver com calma. Um grande filme, um peliculón, que diríamos em espanhol para sintonizar com o ambiente. Desfrutei com a atuação impecável de cada um dos atores, com os gestos que, como é sabido, são recurso imprescindível na comunicação entre os hispanos. Mais ainda, quando se trata de gente do interior, das aldeias,….de pueblo , porque não há melhor termo para exprimi-lo. Um concerto esteticamente combinado, sem nenhuma nota dissonante; notável a fidelidade impressionante do diretor “alienígena” trabalhando com formas e modos hispânicos, sentindo-se absolutamente confortável, como na sala de estar da sua casa. Um talento digno de elogio que deixa os atores serem eles mesmos, na suas raízes, telúricos, e entrega um filme de alta classe.

Está ai um primeiro e importante recado. Muito -talvez quase tudo- do que nos chega no cinema, é formatado pelo diretor, e pelo produtor que é quem coloca o dinheiro. Atribuir aos atores o resultado do argumento, das estridências e do mal gosto, dos incômodos com que tropeçamos no roteiro -às vezes sem nenhuma necessidade- é ingenuidade. Quem corta o bacalhau é o diretor. Ele esgrime a batuta, e o elenco obedece a partitura que ele impõe.

Enquanto me entretinha com estas reflexões, ocorreu-me pensar qual teria sido o resultado desta fita, nas mãos de outro diretor…. Confesso que o fantasma de Almodóvar, por conta da sua trupe costumeira, pairava no clímax.

Já anotei em algum momento nestas linhas que o diretor manchego não é santo da minha devoção. Não porque careça de qualidade, criatividade e imaginação – muitas vezes até excessiva- mas porque as personagens que apresenta são bizarras, anómalas. Não são pessoas  comuns com misérias e virtudes mas o incomum, a anormalidade, que por vezes acerta e muitas outras não. Como sabe fazer cinema de modo expressivo e até exagerado, o espectador, simples mortal,  se defronta com situações em perplexidade: sintoniza com algumas, discorda de outras, mas não sabe em quem atrelar os acertos e os equívocos. Um desfile de espasmos afetivos…..sem uma personalidade que os incarne. Enfim, pensei, o que teria sido nas mãos do nosso amigo Pedro  o relato de Todos já sabem. Confesso que me sinto próximo dele, pois tenho  usado cenas dos seus filmes nas minhas palestras…aproveito sua expressividade para pendurá-la em pessoas normais…….

Porque o núcleo do filme, como me avisava a newsletter, não é o mistério de uma desaparição, desculpa amável para revelar o que está por trás dessas personagens de aldeia castelhana. Luzes e sombras, contrastes de uma família, tristezas e alegrias, diferenças. As coisas que se pensam, que se conhecem -Todos já sabem!!- e que ninguém diz. E de repente saem como ao retirar a rolha do espumante com pressão…..ou o vulcão que leva anos dormitando…….

Rancores e mal-entendidos hibernando. Suspeitas e julgamentos a boca pequena. Medos, receios e decisões tortas. E também valores, estatura moral, integridade, e valentia para assumir os erros, sacodir a poeira e dar a volta por cima. E a generosidade que desperta no meio da tormenta das descobertas, das revelações que são cuspidas cruelmente, e machucam, e abrem velhas feridas.

O desfilar destas situações, do vulcão adormecido que entra em erupção, longe de incomodar, estimula no espectador um sentimento de empatia, de proximidade, de compaixão. Por que? Porque são pessoas reais, e porque as desavenças e as crises que aparecem nos são muito próximas, as apalpamos não raramente à nossa volta, na intimidade do nosso lar, no entorno familiar, no convívio social. Pode ser duro, triste, mas é real, é próximo. Essa é a força do filme que faz pensar. E no meio dos aparentes destroços, brilham as virtudes, as decisões nobres -que nunca fazem barulho, mas despertam em nós a inveja boa, a emulação, a saída para esses tropeços tão duros….e tão quotidianos.

Veio à memória um filme que comentei neste espaço faz já tempo. Um tremendo dilema familiar, comandado por um diretor consagrado, que também fala em registros intimistas.  Uma variante irlandesa do homem de família, como o iraniano Farhadi. Daquele comentário copio um parágrafo, porque não me creio capaz de repetir o mesmo com maior clareza:  “É na família onde somos compreendidos, onde tudo tem desculpa e perdão, onde se recupera   o alento para tentar melhorar. Na família há tempo para escutar, ocasião para despir nossa intimidade sem medo de ser magoado. Lá encontramos o sparring em quem podemos descarregar nossas raivas, e sabemos que aguentará. Não importa o tamanho nem a quantidade das nossas misérias, pois sabemos nos entenderão, buscarão soluções do nosso lado, injetarão ânimo e vontade de recuperação. E tudo isso porque na família impera a doação: dar sem nada esperar em troca, sem passivos contáveis. Na família aboliram-se os egoísmos, para fazer questão de pensar no bem dos outros. Não se fala de direitos, pensa-se em deveres, nos deveres que o carinho faz descobrir sem impô-los. Não se pensa em usufruir, mas apenas em servir”.

Um belo filme. Realista, tocante, que empurra a refletir e avaliar os porões dos nossos sentimentos, dos juízos ocultos, dos tumultos que são creditados à nossa conta. Construir família, crescer em família: nome de projetos que por vezes chegam aos meus ouvidos, reflexo do desejo tão humano de que tudo se pode consertar quando há boa vontade. O diretor iraniano, batuta precisa neste concerto imensamente espanhol, oferece na abertura de Cannes e na intimidade da nossa consciência, o convite para fazer a nossa parte. Cada um a sua, olhando com ternura -com o olhar de Ricardo Darin- àqueles que a vida colocou do nosso lado.

 

 

 

 

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