Stefan Zweig: Fernão de Magalhães      

Pablo González BlascoSerie 1 Comments

Stefan Zweig: Fernão de Magalhães ASSIRIO & ALVIM. Portugal,  2017. 320 págs.

Sem Limites


6 episódios, de 40 minutos. 2022 .Criação: Miguel Menéndez de Zubillaga Rodrigo Santoro, Álvaro Morte

Chegou-me a notícia do lançamento de uma nova série, Sem Limites, e faltou-me tempo para assisti-la de bate pronto. A grande façanha de Fernão de Magalhães: a primeira navegação em volta do planeta, no século XVI (1519-1522). O navegador português acabou trocando o nome para a versão espanhola -Fernando de Magallanes- por que o rei de Portugal negou-lhe apoio, e acabou obtendo financiamento e a bandeira da expedição da coroa espanhola, do Imperador Carlos I.

A série -no fundo, era isso o que queria comprovar – apresenta um Magalhães perfeitamente encarnado por Rodrigo Santoro, enquanto Alvaro Morte -o professor de La Casa de Papel–  da vida ao espanhol  Juan Sebastián Elcano, que completou a volta ao mundo, após a morte de almirante  numa ilha do Pacífico.

A série me trouxe à memória a biografia de Magalhães, escrita por Stefan Zweig, que eu tinha lido há mais de três décadas. E, como as cenas estão muito bem construídas, a evocação constante do livro, me fez lê-lo de novo. Tive que apelar para a versão em espanhol, porque, curiosamente, o que eu li em português, está em falta no mercado. O exemplar  que eu li, deve estar perdido em algum lugar, como a maioria dos homens que integraram esta aventura singular.

A leitura do livro -imprescindível- e assistir a série, é um tributo necessário para celebrar os 500 anos da chegada da expedição de volta a Espanha, além de um verdadeiro banho de cultura. Os comentários que aqui estampo, são referentes ao livro de Zweig porque a série é uma fiel tradução em imagens desta biografia magnífica.

Vale comentar que na introdução, o escritor austríaco confessa o motivo que o levou a escrever: “Os livros podem ter sua origem nos mais variados sentimentos. Os livros são escritos no calor do entusiasmo ou do sentimento de gratidão, mas também a exasperação, a raiva e o rancor podem, por sua vez, acender a paixão intelectual. Às vezes, é a curiosidade que dá o impulso, a volúpia psicológica de se explicar e escrever; outras vezes motivos de natureza mais delicada são impelidos à produção, como a vaidade, o desejo de lucro, a autoindulgência. A rigor, o escritor deve dar conta dos sentimentos, dos apetites pessoais que o motivaram a escolher o tema de cada uma de suas obras. A origem íntima do livro que você vê aqui me parece muito clara. Nasceu de um sentimento um tanto incomum, mas muito difundido: a vergonha”. E, a seguir, esclarece que numa viagem de navio até as costas americanas, com todo o conforto possível na década dos 30 do século passado, após uma semana, começo a ficar incomodado com a monotonia do mar, do céu, das mesmas caras. Lembrou, então, dos navegadores, e das condições precárias com que enfrentaram meses e até anos de navegação. E, tomado pela vergonha, decidiu escrever este livro.

Quais os motivos desta expedição desvairada? Aponta Zweig: “Em cada descoberta ou invenção há um estímulo moral, uma força alada do espírito; mas, muito geralmente, o que dá o impulso definitivo para a realização é a consciência de alguns motivos materiais. É verdade que o rei e seus conselheiros teriam se entusiasmado, em todo caso, com a ousada ideia contida nos planos de Colombo e Magalhães de buscar um novo mundo; mas nunca o dinheiro necessário para seus planos estaria em risco, nunca os príncipes e especuladores teriam armado e colocado à sua disposição uma frota, sem a perspectiva de poder lucrar enormemente com a soma gasta na viagem de descoberta. Por trás dos heróis dessa época de descobertas, os mercadores moviam-se como forças impulsivas; também este primeiro impulso heroico para a conquista de um mundo partiu de forças muito terrenas”

A busca das especiarias era um motor imenso como bem se explica no livro: “Uma única grama de tempero indiano, um pouco de pimenta, uma flor de noz-moscada seca, uma ponta de faca de gengibre ou canela misturada na mais grosseira das iguarias, bastam para o paladar, lisonjeado, experimentar um estímulo raro e agradável (…)  Vários Estados e cidades calculavam com base na pimenta, como se fosse um metal nobre: ​​em troca da pimenta adquiriam-se fazendas, pagavam-se dotes e obtinha-se o direito de cidadania; príncipes e cidades cobravam tributo em pimenta, e quando na Idade Média eles queriam ponderar a riqueza de um homem, ele era chamado de saco de pimenta. Por doze mãos de comerciantes e usurários, se não mais, a especiaria Indica deve passar antes de chegar ao consumidor.  Um único saco de pimenta vale mais dinheiro no século 15 do que uma vida humana”.

Portugal, um dos menores países da Europa, situado num canto desfavorável às rotas do Mediterrâneo, é quem dá a virada quando consegue chegar até as Índias bordeando a costa africana, e passa a estar em posição geograficamente favorável. Outro sonho possível graças ao Infante D. Henrique, o navegante, que pouco navegou, mas muito investigou e impulsionou desde a sua escola de Sagres.  

Um impulso e um sonho que não chegou a ver materializado em vida, como esclarece Zweig: “Um destino trágico dos precursores é morrer no limiar sem ter avistado a terra prometida. Enrique não conseguiu viver uma única das grandes descobertas que imortalizaram seu país na história do descobrimento do mundo. Em 1460, ano de sua morte, quase nada visível em um sentido propriamente geográfico havia sido alcançado. Mas, na realidade, o sucesso decisivo foi alcançado. Porque o primeiro triunfo da navegação portuguesa nessa época não consistiu precisamente na distância percorrida, mas num fator de carácter moral: no aumento do apetite empreendedor e na abolição de uma lenda desastrosa. Durante séculos e séculos se sussurrava entre os marinheiros que atrás do Cabo Bojador, a navegação era impossível”.

Situado o contexto -que a série também explicita- o escritor volta-se à personagem biografada: “Magalhães foi durante toda a sua vida um desses homens que não são notados. Ele não sabia como se afirmar ou amar. Mas assim que uma tarefa lhe é proposta, e melhor ainda,  se ele mesmo se propõe, esse homem escuro que fica em último lugar age com uma generosa prudência e coragem admirável (…) Nada afável ou comunicativo, sempre envolto em uma nuvem misteriosa, o eterno solitário teve que criar à sua volta uma atmosfera gélida de desconforto e desconfiança, pois poucos vinham a tratá-lo e nenhum conhecia seus sentimentos íntimos (…) Em Magallanes, uma decisão nunca é tomada por impulso. Sabia calar de uma maneira admirável. Naturalmente nem impaciente nem loquaz, indistinto e retraído mesmo em meio ao tumulto militar, ele se isolava em seus pensamentos”.

Este homem peculiar  “resultou lesionado numa das travessias anteriores ao serviço da coroa portuguesa, com um tiro no joelho, afetando o nervo, deixando a perna dormente. Agora, mancando na perna machucada, aproxima-se do rei e, com uma reverência, expõe seus planos. O projeto de Magalhães em si —isso já se via então— não oferecia nenhuma originalidade; ele queria, em substância, o mesmo que Colombo, Vespúcio, Corterreal, Cortés e Cabot. A desconcertante novidade do propósito não é o propósito em si, mas a conclusão da afirmação de Magalhães de uma rota marítima ocidental para a Índia. Porque, já no início, não diz, com a modéstia dos seus antecessores: «Espero encontrar algures uma passagem, uma entrada», mas afirma, com o tom de uma certeza de bronze: «Encontrarei a passagem . Porque sou o único que sabe da existência dessa passagem entre os oceanos Atlântico e Pacífico, e sei onde vou encontrá-la (…)  Só porque acreditava conhecer um segredo foi possível para Magalhães decifrar o maior segredo geográfico de seu tempo. Só porque se entregou de todo o coração a uma ilusão transitória é que descobriu uma verdade permanente.”

Mas o rei de Portugal nega o apoio a um projeto que considera inconsistente. E Magalhães toma a decisão: “Como sua pátria se recusa a ajudar a realizá-lo, ele é forçado a fazer uma pátria de sua própria ideia. Determinado, renuncia ao seu nome e à honra de cidadão para se levantar e caminhar em direção a um fato imortal, condizente com seu propósito” . Busca ajuda na Espanha, mas a suspeita o persegue como uma sombra: “quem abandonou um pavilhão facilmente trairá o novo; que abandonou um rei, poderia ser infiel a outro rei. O veneno, sim, o veneno ardente da desconfiança, vai corroer a alma de Magalhães de agora em diante” .

Com maestria continua descrevendo o escritor a personalidade do biografado, aspecto este que também está muito bem plasmado nas imagens da série. “A partir desse momento, o solitário Magalhães, a cada momento, em seus próprios navios, sabe que está cercado de inimigos, ou assim imagina. Esse sentimento de insegurança não consegue enfraquecer sua ação e antes tempera sua vontade para decisões sucessivas. Quem vê uma tempestade se aproximando sabe que só uma coisa pode salvar o navio e a tripulação: a resistência do capitão que comanda serenamente o leme; e ele a governa sozinho. A empresa de Magalhães é mais uma vez o que era no início: sua própria ideia e sua própria ação. Agora tudo recai apenas sobre ele, as preocupações, a responsabilidade e o perigo, mas também a máxima alegria espiritual de natureza criativa: ser responsável apenas a si mesmo pela realização do fato que escolheu. Pouco significa que todos aqueles funcionários lhe tenham jurado solenemente fidelidade e obediência na catedral de Santa María de la Victoria, à sombra da bandeira; na intimidade da alma são seus inimigos e o invejam. É conveniente tomar cuidado com esses fidalgos espanhóis”.

Entre marinheiros experientes, e olheiros espanhóis que foram encomendados de vigiar o português desertor, surge uma personagem essencial: um escrivão que registrará a viagem, o italiano Antonio Pigafetta, personagem central na série, relator, voz em off. Anota Zweig: “ Porque, se alguém não o descreve, de que vale um fato? Um fato histórico não encontra sua realização na execução imediata, mas na circunstância de ser transmitido ao futuro. O que se chama História não consiste na soma de todos os eventos significativos ocorridos no espaço e no tempo; a História do mundo cobre apenas o pequeno setor que a expedição poética ou sábia conseguiu iluminar; se não houver cronista que os torne permanentes em sua descrição ou o artista que lhes dê uma nova forma. Nem de Magalhães e seus feitos saberíamos muito. Pigafetta observa os detalhes com mais atenção e os anota com a vigilância do menino a quem é dado como seu dever a descrição de seu passeio dominical”.

Chega o momento da partida e Magalhães atua como é seu costume: “ O homem que tenta fixar com a maior precisão todas as possibilidades de sucesso, deve também levar em conta o fim mais provável de tal viagem, ou seja: não voltar dela. É por isso que Magalhães, depois de transformar seu propósito em ação, escreve seu último testamento dois dias antes da partida. Nesse testamento falam, primeiro, o cristão; depois o fidalgo; e só no final, o marido e o pai. Assim como o cristão, o fidalgo também demonstra, nessa vontade íntima, o anseio pela imortalidade”.

A navegação se desenvolve entre aventuras e surpresas. A disciplina, a todo momento, e o silêncio, é a pauta do almirante: “Magalhães se preocupa em estabelecer a disciplina da frota desde o início. Embora saiba pegar no volante, a mão de Magalhães carece de outras faculdades e, sobretudo, a de suavizar habilmente as feridas que causou com a sua pressão. Magalhães nunca aprendeu a arte de dizer coisas duras de maneira amigável e de se relacionar cordial e facilmente, tanto com superiores quanto com subordinados. Por isso não pôde deixar de criar um clima de tensão, de hostilidade, desde os primeiros passos, com tudo e sendo um centro de energia de primeira classe”.

Chegados até o que depois se chamou Rio da Prata, Magalhães entende que a informação privilegiada da passagem para o Pacifico era equivocada: aquilo, que parece um mar, é o estuário de um rio. Desconcerto na tripulação, desconfiança e a famosa revolta na baia de S. Julián. Magalhães se impõe, sem dar o braço a torcer: “ Nunca como na maneira de se comportar em momentos decisivos o caráter de um homem é conhecido. O perigo traz à tona as forças e faculdades mais íntimas de uma pessoa; todas aquelas qualidades que ficaram na sombra e escaparam da medida, destacam-se plasticamente em momentos críticos.  Não é a retórica que salva Magalhães nesses momentos críticos, mas a firmeza de sua intenção de não ceder. Pode-se dizer que provoca naturalmente a oposição, para poder rompê-la com mão pesada: uma explicação pronta é melhor do que aumentar o desconforto adiando-a! É preferível enfrentar inimigos declarados do que ser encurralado”.

As decisões do almirante para conter a revolta e fazer-se com o mando novamente, são magnificamente descritas no livro, e mostrada nas imagens da série. “ Talvez venha improvisar ocupações supérfluas, com o único propósito de dar à tripulação a esperança de que a viagem seja retomada em breve, levando-os da insuportável desolação do inverno às tão esperadas ilhas do Sul”. E, após a procura, a incerteza, o fracasso aparente que se apalpa a cada momento. Até que finalmente, no paralelo 52, uma entrada, água salgada, não um rio mas um emaranhado de ilhas, e no final, a passagem almejada. Atravessar o estreito que levará o seu nome -e que mais do que um estreito é um labirinto- não é fácil. “ São dezenas de navios que naufragaram em viagens sucessivas no inóspito estreito, hoje ainda pouco colonizado, e nada prova melhor a arte náutica de Magalhães do que ter estado durante anos e anos, ao mesmo tempo que o primeiro, o último conseguiu passar por isso sem perder um único navio”.

E após a passagem, o silencio desértico, infindável, desse novo mar que decidem chamar Pacifico. Meses, até encontrar ilhas, novos habitantes, percebendo que estão no caminho certo. E, com o triunfo ao alcance, o risco que entranha a audácia. “Mas Magalhães não se importa com a vida mortal mas com o fato imortal.  Quem pensa como um herói deve necessariamente agir contra a razão.  Mas o perigo mais íntimo de um homem está em seu próprio gênio, e o gênio de Magalhães era a paciência: sua grande capacidade de esperar e calar”. Agora que encontrou a passagem irá até o final, até as ilhas das especiarias, para trazer novos súbditos à coroa espanhola.

Escreve o autor, referindo-se ao sentido humanitário do Almirante, para com os povos que encontrou nas ilhas: “Nada confere a Magalhães uma proeminência moral tão extraordinária sobre os outros conquistadores da época como esta vontade humanitária intransigente. Magalhães era, por suas disposições naturais, duro e reservado; ele manteve uma disciplina de ferro em sua frota, como provado por sua conduta no rescaldo do levante; ele não era propenso à tolerância ou consideração. Mas, embora severo, ele nunca foi cruel; nenhum dos atos que mancham os feitos de outros grandes conquistadores obscurece sua memória, nem qualquer quebra de palavra desonra seu triunfo ao qual, geralmente, aqueles com os gentios se julgavam autorizados. Essa honestidade foi a melhor arma de Magalhães e continua viva como parte de sua fama”.

E o desejo de unificar no império espanhol, o que estava desunificado por natureza -as tribos variadas das inúmeras ilhas- levou a Magalhães a perder a vida neste empenho. Os nativos que consideravam os visitantes como deuses, comprovaram suas fraquezas: “Um único deus branco que eles viram vulnerável, uma única derrota dos invencíveis e, uma vez que o mito da missão divina daqueles seres desapareceu, tudo se quebrou”.

A modo de corolário, aponta Zweig, para fechar a descrição deste feio inédito e formidável:  “Foi decifrado um segredo que nem os sábios da Grécia, nem Ptolomeu, nem Aristóteles puderam conceber, e que o impulso de Magalhães estava destinado a revelar; finalmente ficou provado, por observação exata, o que Heráclito do Ponto tinha como hipótese quatrocentos anos antes de Jesus Cristo: que a esfera do mundo não permanece fixa no meio do universo, mas se move com um ritmo singular por conta própria. eixo, e que quem a segue por sua vez navegando para o Oeste pode arrebatar o tempo da eternidade (…) Sob a bandeira espanhola, Colombo começou a descoberta do mundo, e sob a mesma bandeira Magalhães a completou. Em um quarto de século, a humanidade aprendeu mais sobre sua habitação terrestre do que durante os milhares e milhares de anos anteriores. Instintivamente, a geração que na alegria e na embriaguez da glória presidiu a esta transformação no espaço de uma só vida, sente-se possuída por esta realidade: começou um novo tempo, a Idade Moderna”.

A falta de reconhecimento desta aventura inédita por parte dos seus contemporâneos, apenas mostra sua ingratidão, enquanto o mundo, com o passar dos anos, se enriquece com ela. Porque como aponta Zweig, “na história, a utilidade prática nunca determina o valor moral de uma conquista. A humanidade só é enriquecida por quem aumenta o conhecimento sobre o que a cerca e eleva sua capacidade criativa. Nesse sentido, a façanha de Magalhães supera todas as de seu tempo e significa para nós uma glória singular em meio às suas glórias: a de não ter imolado, como acontece na maioria das vezes, a vida de milhares e centenas de milhares por sua ideia, mas apenas sua própria vida”.

Um belo pensamento final para enriquecer ainda mais a reflexão e admiração por aqueles que lutaram até o final por um ideal. Não é somente Stefan Zweig quem é acometido de vergonha quando lembra destes homens singulares, mas a qualquer um -leitor, espectador- que possua um mínimo de dignidade e de sentido histórico. Um livro necessário, uma série muito bem construída. Mais uma vez, uma avalanche de cultura, que nos traz respeito pela História!!!

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