As Linhas Tortas de Deus: As fronteiras sutis da sanidade e a doença

Pablo González Blasco Filmes 2 Comments

Los renglones torcidos de Dios. Diretor: Oriol PauloEduard FernándezBárbara LennieAdelfa CalvoPablo DerquiLoreto MauleónJavier BeltránFederico Aguado. Espanha, 2022. 152 minutos.

Este comentário -não me atrevo a chamar critica- era algo esperado, carta marcada na minha agenda mental. Um colega do colégio anda metido em assuntos de cinema, e vez por outra me escreve pedindo opiniões, como se eu fosse -e não ele- o esperto na matéria. Disse-me tempo atrás que estava buscando o modo de levar o livro de Torcuato Luca de Tena ao cinema. Buscava um diretor adequado, elenco, e todas essas variantes com as quais um produtor deve se defrontar.

Nesse meio tempo, fui ler o livro, a obra original, que imaginei serviria de roteiro para esse filme em gestação. Gostei muito, e publiquei neste espaço minha impressão sobre Los renglones torcidos de Dios.   O meu colega -Angel Blasco, mesmo sobrenome embora não sejamos parentes- gostou, e me advertiu: vamos ver o que te parece o filme que vai sair, aguardo a tua crítica. Chega o filme e com ele o compromisso ineludível. E, assim a gênese destas linhas que alinhavo rapidamente.

Um filme nunca é um livro. E quando o livro é repleto de nuances, entrelinhas -linhas tortas, no caso, mediante as quais Deus escreve- o desafio de plasmar na tela esse labirinto é enorme. Mas, de cara, confesso que pareceu-me fiel à trama do livro, com variantes necessárias. Não posso -nem devo- estender-me no relato (como também evitei fazê-lo quando comentei o livro) porque assumiria, nos dizeres de hoje, o papel de um perfeito spoiler.

O que sim recomendo é que antes de aventurar-se com o filme, vale a pena ler o comentário -como eu mesmo acabo de fazer antes de rascunhar estas linhas- para ver que a riqueza do livro, magnífico en sus descrições, supera qualquer tentativa de posta em cena. Sem subtrair em  nada o mérito do meu colega e de toda a equipe, que afinal nos brindam com uma produção notável, que merece as duas horas e meia de atenção, suspense, e surpresas.

Pinço um par de parágrafos do comentário a modo de aperitivo convidativo, em livre tradução, onde já nas primeiras páginas surge uma pista para esta aventura repleta de surpresas: “A verdadeira loucura pode não ser outra coisa senão a própria sabedoria que, cansada de descobrir as vergonhas do mundo, tomou a inteligente decisão de enlouquecer.”

Naturalmente, não há como evitar a ansiedade psiquiátrica “hardcore”, diagnóstica, sempre tão complexa. Lembro-me, há muitos anos, de ver pacientes que levavam internados meses numa clínica especializada de renome… sem um diagnóstico preciso. Classificar o inclassificável, algo que nos leva ao terreno da incerteza, sempre incômodo para os médicos técnicos, e o pão de cada dia para os médicos humanistas, conscientes de que a medicina não é matemática.

A certa altura, surge esta afirmação contundente em boca de Alice, a protagonista: “Não odeio ninguém, mas sinto uma aversão indescritível pelos obcecados, pelos cabeças quadradas e pelos que aplicam a geometria ao estudo da alma humana. Eles tendem a simplificar o que é tão variado, tão complexo, tão interessante e tão grande quanto… quanto o espírito”.

Primeiro o livro, magnífico. Agora o filme, que te desloca completamente, e se aventura na ténue fronteira entre a doença mental e a sanidade. Algo que os fotogramas deixam entrever, mas que o livro afirma com clareza e nos explica o porque dessas linhas tortas que figuram no título: “As leis que regem as emoções nada têm a ver com a sutileza das ideias, a ordem do pensamento ou o bom julgamento (…) Contemplar homens e mulheres heroicos e sofredores cuja profissão era amenizar a dor dos outros. Deus escreve certo por linhas tortas”.

Está servido o comentário, saldada a dívida com o meu colega, e apresentada esta pequena overture para quem quiser aventurar-se e assistir com calma um filme notável, provocador de reflexões.

Comments 2

  1. Hoje aplica-se a geometria à medicina. E se não nos enquadrados nos protocolos, somos insolucionáveis.

  2. O desafio de se fazer a coisa certa, em cada instante,q as vezes é uma verdadeira loucura. A sanidade se torna loucura e a loucura sanidade. Linhas tortas com escritos certos e escrever certo em linhas tortas. É o que se propõe. Temos que resolver isso com classe.

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