Elsa Morante: A História

Pablo González Blasco Livros 2 Comments

Ed. Record. Círculo do Livro. São Paulo. 634 págs. Editora ‏ : ‎ Relógio d” Água”. 2018) Lumen- Random.  Barcelona 2018. 775 págs. Record, 2009, 700 págs,

Tinha este livro em vista há tempo, desde uma leitura de Fabrice Hadjadj onde cita a Morante. Não lembro em qual dos livros dele o faz, porque o autor é instigante, polifacético, desconcertante. Talvez foi naquele sobre a família,  ou sobre a mística dos sexos. Em qualquer caso, estava com vontade de ler, tomei nota e agora lhe chega o momento, a propósito de nossa Tertúlia Literária mensal.

Abro o livro (edição em espanhol que tinha à mão), e me encontro com estes comentários que já me espicaçam: “Elsa Morante foi minha professora. É fascinante. Tentei aprender com seus livros, mas os considero insuperáveis”-diz Elena Ferrante. E outro, de uma autora que conheço, Natalia Ginzburg: “Como romancista e como leitora, o que senti ao ler A História é um sentimento de profunda gratidão para com Elsa Morante”.

E, fosse pouco, encontro no prefácio a seguinte anotação: “A história vendeu oitocentos mil exemplares na Itália. Seu agente literário, Erich Linder, ficou surpreso ao descobrir que, após os primeiros meses de enorme impacto, as vendas ainda estavam na casa dos milhares semana após semana. “Ainda não sabemos quem comprou o livro, já que agora parece haver cópias em todas as casas italianas”, confessou o homem em uma carta a uma editora americana, segundo a biografia do autor escrita por Lily Tuck. O sucesso editorial foi acompanhado de grande alvoroço da crítica. O confronto muitas vezes violento entre apoiadores e detratores ajudou a tornar o romance um dos mais famosos da década na Itália. Na fase mais delicada do debate, a crítica em Tempo Illustrato de Pier Paolo Pasolini, que sempre foi muito próximo da autora, fez com que ele e Morante nunca mais se falassem. O correspondente romano do The New York Times publicou uma crônica em setembro de 1974 na qual relatava: ‘Pela primeira vez desde tempos imemoriais há pessoas em compartimentos de trem e em bares que falam mais sobre o livro do que sobre a liga de futebol ou um escândalo de saias. Os críticos escrevem páginas e páginas se perguntando sobre o significado de A História e as razões da polêmica excepcional que ela desperta. E a própria Elsa, quando ele perguntou o que ela estava escrevendo, disse: Escrevi um livro para analfabetos”

Mergulho no livro, longo, mais de 700 páginas. Impacta-me a figura de Ida, e me cansam os devaneios filosóficos de outras personagens que para mim são marginais e que ocupam -penso que de modo desnecessário- excessivas páginas, que li quase em diagonal.

Porque para mim essa é a força de A História. Uma guerra, milhões de mortos, adversidades, mas o foco vai para uma família -por chama-la de algum modo- composta de uma mulher italiana viúva, que tem um filho, e que um alemão jovem, em noite de bebedeira entra no apartamento dela, a violenta, engravidando-a. O alemão morreria dias após durante o traslado para Africa, e Ida -nossa protagonista- recebe Giuseppe como  herança, e como motivo principal da sua vida.  A História não é a contada nos livros, nem na narrativa bélica e política. Mas o dia a dia, cinzento e difícil desta mulher, na luta para criar o filho mais velho -o rebelde Ninno- e o garoto que as truculências a guerra lhe proporcionou, que será sempre Useppe.

O alemão violador, figura pontual e esporádica, que dispara a História. Um quase adolescente “que suspeitava que a guerra era uma álgebra maluca, arranjada pelos Estados-Maiores, embora não o preocupasse em nada”. A bebedeira, estopim da tragédia: “O vinho escorrera por suas pernas e subira à cabeça. E com o siroco pútrido da rua, que lhe enchia o peito a cada baforada, teve uma vontade inviável de ir para casa, encolhido na sua cama curtinha, entre o aroma frio e pantanoso do campo e a couve quente que a sua mãe estava fervendo na cozinha. Embora, graças ao vinho, essa enorme saudade, em vez de dilacerá-lo, o deixasse feliz. Para quem vagueia semiembriagado, todos os milagres, pelo menos por alguns minutos, são possíveis”. Ida, que volta para a casa, paga o tributo à bebedeira do alemão. Este desaparece, e sobra a figura, gigantesca,  dessa mulher que, depois de ler o livro, tornou-se ainda maior aos meus olhos.

Assim descreve Morante à protagonista: “Parecia-lhe que seus membros projetavam a desonra do estupro sobre seus alunos e sobre todas as pessoas, e que em seu rosto, como cera molhada, estavam impressas as marcas dos beijos. Nunca em sua vida ela dormira com um homem, nem mesmo em pensamento, exceto Alfio, e agora seu caso parecia estar escrito em todos os lugares, como um retumbante adultério (…) Seu corpo havia crescido com ela como um estranho, e nunca, nem mesmo em sua juventude, ele tinha sido bonito, com seus tornozelos grossos, ombros estreitos e peito murcho precoce. A única gravidez sofrida bastou, como uma doença, para deformá-lo para sempre; e depois, com a viuvez, já não pensava que alguém o pudesse usar como corpo de mulher, para fazer amor. Com o peso exagerado de seus quadris, e murchando o resto de seus membros, ela já havia se tornado um fardo cansativo”.

Uma mulher machucada pela vida, pelas circunstâncias, pelo alemão que sabe reerguer-se para dar o que lhe resta àquela vida que cresce no seu ventre. Continua a magnífica descrição: “Seu cabelo ficou branco e seus ombros estavam curvados como uma corcunda, encolhendo-se até ficar um pouco mais alto do que alguns de seus alunos. E, no entanto, atualmente, sua resistência física superava completamente a do gigante Golias, que tinha seis côvados e um palmo de altura e vestia uma couraça de cinco mil siclos de cobre. Era um enigma de onde aquele corpinho exangue tirava suas colossais reservas. Apesar da desnutrição, que a consumia visivelmente, Ida não notava fraqueza ou apetite. E, na verdade, do inconsciente, uma sensação de certeza orgânica prometia-lhe uma espécie de imortalidade temporária que, imunizando-a contra as necessidades e doenças, poupava-lhe esforços para a sua sobrevivência pessoal (…) Ela não sentia nada, até a secreção de sua saliva havia secado: todos os seus estímulos vitais haviam sido transferidos para Useppe. Contam de uma tigresa que, na solidão gelada, sustentava-se com seus filhotes lambendo a neve e distribuindo aos filhotes pedaços de carne que ela mesma arrancava de seu corpo com os dentes”.

Ida não reclama nem busca culpados. Busca os recursos, constrói a sobrevivência -a própria e a dos filhos- no quotidiano. “Sob o espartilho, presa com um alfinete, havia uma meia com suas economias costuradas por dentro. De fato, apesar das dificuldades da guerra, ele não havia desistido do hábito de economizar um pouco de seu salário todos os meses. Com a sua desconfiança do amanhã, e com a certeza, sozinha como estava, de não contar com a ajuda de ninguém em qualquer eventualidade da sorte, pôs naquela meia toda a sua independência, a sua dignidade, o seu tesouro. Eram algumas centenas de liras no total, embora parecesse muito para ela.”

E vive em função desse filho que lhe veio sem avisar, fruto da loucura de um alemão bêbado. A sua vida é para Useppe. Assim descreve Morante esse garoto peculiar, motivo e missão da sua mãe: “Depois de ter dado prova de si mesmo na heroica empreitada de vir ao mundo ajudando-se a si mesmo, não lhe restara nem voz para chorar. Anunciou-se com um lamento tão fraco que parecia um cabrito nascido por último e esquecido na palha. Em sua pequena medida, porém, era completo e também fofo, bem feito, pelo que parecia. E ele pretendia sobreviver; tanto que, em determinado momento, buscou ansiosamente o seio da mãe por iniciativa própria”.

A História é também ver o mundo através dos olhos de Useppe. Um mundo sem malícia, afastado das atrocidades da guerra. O encanto de um olhar puro, ingênuo, que por vezes produz inveja ao leitor:  “A luz do sol, atingindo indiretamente o teto, trouxe até ele, refletido nas sombras, o movimento matinal da rua, ele se apaixonou por ela sem nunca se cansar; como se estivesse assistindo a um espetáculo extraordinário de malabaristas chineses realizado exclusivamente para ele. Dir-se-ia, na verdade, por seu riso, pela iluminação contínua de seu rostinho, que ele não via as coisas reduzidas a seus aspectos habituais, mas como imagens múltiplas de outras coisas mudando ao infinito. Não seria possível explicar, senão, como o cenário miserável e monótono que a casa lhe oferecia todos os dias lhe proporcionava diversão tão variada e inesgotável (….) Desde então, um dia após o outro, e quase sozinho, aprendeu a andar. E suas explorações da casa assumiram uma nova dimensão inebriante. Muitas vezes esbarrou em móveis ou caiu; mas nunca chorou, embora às vezes se machucasse, tanto que seu corpo, como o de um herói, carregava as feridas de suas façanhas. Quando ele caiu, ficou um tempo no chão, mudo; então ele resmungava um pouco e se levantava; e depois de um momento ele estava rindo, feliz como um pardal que abre suas asas (…) Aquele ser mínimo e desarmado não conheceu o medo, mas uma confiança única e espontânea. Parecia que estranhos não existiam para ele, mas apenas pessoas de sua família, de volta após uma ausência, e que ele reconheceu à primeira vista (…) Na cabeça de Useppe, os milhões — ou mesmo os bilhões — eram problema das mães. Em suas mãos, eles não tinham mais valor do que qualquer pedaço de papel”.

Ida, Useppe, os coadjuvantes que -repito- tiram força a história, e alguns dados que, aqui e acolá, Morante vai incluindo nessa trajetória de uma década. E, também, algumas frases memoráveis que se compreendem melhor no contexto da tragédia, no frigir dos ovos: “A câmara de gás é o único sítio caritativo de um campo de concentração”. Ou daquele que visitando os destroços humanos descobre algo vivo que se movimenta sobre uma pilha de cadáveres. Vê sair uma menina e pergunta: Por que estás ai, no meio dos mortos? E a criança responde: porque com os vivo já não sou capaz de estar!

Mas voltamos a Ida, a Useppe, e á doença que acomete o menino, onerando ainda mais a dedicada mãe. “Parecia-lhe que havia reconstruído uma família de verdade; como se a guerra nunca tivesse existido e o mundo voltasse a ser uma casa normal. Dava a impressão de que aquele garoto, com sua pequenez, travava uma imensa disputa contra inimigos presentes apenas para ele, e para mais ninguém. Sua mãe era oprimida pela dolorosa sensação de que no fundo dessa extravagante desordem, que o jogava sem rumo de um lado para o outro, um nó crucial se enroscava dentro dele, que ninguém conseguia desatar ou encontrar suas pontas, e ele menos do que ninguém. E isso fez com que Ida entendesse que seu filho estava rejeitando um bem prometido, com medo de perdê-lo! Era como se naquele outono de 1946 todas as lembranças de sua vidinha perseguissem o esquecido Useppe, farejando o ponto oculto de sua maldade (…) A palavra doente usada pelo professor para definir Useppe a abalou como uma calúnia, que ela rejeitou e que a expulsou com estrondo das paredes do hospital. Ela não queria que Useppe ficasse doente: Useppe tinha que ser uma criança como as outras.  Cada retorno de seu Grande Mal era um ponto de violência que ele sofria sem presenciar. Ele apenas percebeu de antemão um sinal ambíguo, como a chegada atrás de si de uma máscara sem traços característicos, atrás da qual, para ele, havia um buraco vazio. E então era surpreendido por um horror enevoado, onde, já meio cego, tentava arrancar sem rumo, apenas para se ver derrubado após dois ou três passos”.

No tempo em que estava lendo o livro, durante um almoço com um amigo, surgiu uma conversa que encaixa bem no final destas reflexões. A propósito de outro assunto, ele me disse: “É preciso parar com esse complexo de lamber as próprias feridas, e até desejar que venham outros para lambê-las também. A vida é daqueles que sabem dar a volta por cima, virar a página, sem perder-se na lamúria, na auto compaixão”. Lembrei de Ida Mancuso, que vira a página e toca em frente, com consciência de missão, da sua missão que tem um nome concreto: Useppe. E minha admiração cresceu ainda mais, uma espécie de saudades dessa personagem, Ida,  com quem estabeleci uma curiosa amizade ao longo da leitura das páginas do livro. E, também, de Useppe, o garoto epiléptico, doente, atraente, para quem o mundo é um reflexo do encanto, dessa beleza que é o pudor de Deus, como escreve Morante em frase lapidar….que não sai da minha cabeça. O pudor de Deus que, sem querer se mostrar, deixar escapar algo dele que é a Beleza! A frase de Italo Calvino, também estampada em algum lugar do livro, é o melhor ponto final destes comentário: “Este nosso mundo cai-se aos pedaços…Somente tu, Elsa, consegues dar-lhe forma e dignidade”. Um livro impactante, que permanece na minha mente. E que em momentos de dificuldade, me atrai com magnetismo até a figura de Ida, para não lamber-me as feridas, e dar a volta por cima.

Comments 2

  1. A autora basceu em Roma em 1912 e vivenciou a época no nazismo. Seu livro exibe as marcas de sua história pessoal como o abandono pelo marido e os sofrimentos da guerra. A História, publicada em 1974, trouxe uma visão profunda da questão feminina e da maternidade.
    A análise aqui apresentada mostra com perfeição as fragilidades da condição da mulher e suas reações à indiferença do mundo em relação a sua situação. Parabéns pela análise!

  2. Estava à caça deste livro, mas ainda meio em dúvida sobre sua aquisição, já que a busca é garimpa-lo pelos sebos afora, quando me deparei com esta tua reflexão tão sensível e cativante.
    Obrigada por me proporcionar clareza na decisão de comprá-lo;)

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