Franz Kafka: “O Processo”.

Pablo González Blasco Livros 1 Comment

Franz Kafka: “O Processo”.Digital Source . 252 págs.

A Tertúlia Literária leva-nos desta vez até um clássico de Kafka, sabendo que podemos esperar tudo dele, menos um argumento lógico. Se no outro clássico A Metamorfose, o protagonista vê-se transformado numa barata no dia do seu aniversário, agora, também no aniversário deste outro, o que surge é uma detenção, surpreendente, inexplicável, enigmática, de um funcionário aparentemente exemplar de um banco.

A experiência de Josef K (e eu gosto de imaginar que o K, não é de graça, mas um alter ego do escritor), não lhe ajuda a entender o que está acontecendo: “K. sempre manifestara inclinação para encarar todas as coisas com a maior ligeireza possível, em acreditar no pior somente quando o pior se apresentava, a não nutrir grandes cuidados pelo futuro mesmo quando tudo tivesse um aspecto ameaçador. Neste caso, porém, não lhe pareceu adequado levar o assunto em brincadeira”

O diálogo com os guardas e, posteriormente, com o inspector nada ajuda na perplexidade provocada pela situação: “Estes senhores que vê aqui, e eu, desempenhamos um papel completamente acessório em seu assunto, do qual, para dizer a verdade, não sabemos quase nada. Se trouxéssemos nossos uniformes do modo mais regulamentar possível, nem por isso sua causa estaria melhor do que está. Muito menos lhe posso dizer, a você, de modo algum que está acusado, ou, dizendo melhor, não sei se o está. O certo é que está detido. Isto é tudo quanto sei  (…) Se você continua tendo tanta sorte como na designação de seus guardas pode alimentar esperanças”.

Tudo corre com aparente normalidade, onde ninguém se importa com as consequências -se é que existem- nem nada explicam. Seguem, isso sim, meticulosos protocolos. Anota o escritor: “Era também possível que o Inspetor nem mesmo tivesse percebido o que acontecera, pois, tendo posto uma das mãos sobre a mesa, parecia achar-se muito ocupado na comparação da longitude de seus dedos. Os dois guardas estavam sentados sobre um baú coberto com um tapete e coçavam os joelhos. Quanto aos três jovens que mantinham suas mãos nas cadeiras, olhavam ao redor com ar despreocupado. Sobreviera um silêncio como aquele que reina num escritório esquecido”.

O protagonista encara-se com o inspector, pois não entende como naquela situação tem liberdade de movimentos, seguindo-se um diálogo kafkiano, nunca melhor dito:

— “Como posso ir ao banco se estou detido?

— Ah! — exclamou o Inspetor, que já estava junto à porta. — Você não me compreendeu bem. É verdade que está detido, mas isso de nenhum modo lhe impede de cumprir as suas obrigações. Não deve modificar a sua vida habitual.

— Assim sendo, essa detenção não é muito para se temer — disse K. aproximando-se do Inspetor.

— Nunca quis dizer outra coisa — replicou este.

— Mas, então, nem mesmo parece necessário comunicar-me tal arresto — disse K., aproximando-se ainda mais do Inspetor. Também os outros se tinham aproximado. Todos se encontravam nesse momento agrupados em um pequeno espaço junto à porta.

— Era o meu dever — disse o Inspetor.

— Um dever estúpido — replicou K., sem nenhuma consideração

—É certo que o senhor está detido, mas não detido como um ladrão; quando se detém a alguém como ladrão, então o assunto é grave, mas esta detenção… perdoe-me o senhor se digo alguma bobagem, ocorre-me que se trata de algo especial, de algo acadêmico, que por certo de nenhum modo compreendo, mas que, por outro lado, não tenho também a obrigação de compreender.

Nesta altura do livro, é normal sentir irritação e ter a tentação de fechá-lo de vez. Algo compreensível. Mas também pode-se degustar o absurdo e ver que é algo muito comum; naqueles dias, hoje, e sempre. Gente que segue protocolos -que nem mesmo entende, nem tem o mínimo interesse em compreender- e com este procedimento, consegue tornar impossível a vida de qualquer mortal comum. Os protocolos acadêmicos, repletos de absurdos incompreensíveis é algo de diária administração. No campo da medicina, onde eu milito há décadas, os protocolos estão sucateando qualquer tentativa da arte médica. E nem vou me abeirar da vertente jurídica, pois ai seria até covardia, pela semelhança que apresenta com as notícias diárias na mídia.

Mas Kafka não poupa os juristas, nem o sistema. É contundente e mordaz na sua crítica: “Por trás de minha detenção e do interrogatório de hoje, move-se uma grande organização, uma organização que não somente emprega guardas subornáveis, inspetores e juízes de instrução petulantes, senão que além disso sustenta um corpo de juízes de alta hierarquia com um cortejo inumerável e indispensável de criados, amanuenses, agentes de polícia e outras potências auxiliares, e porventura também verdugos. Sim, não me intimido diante de tal palavra. E qual é a finalidade desta grande organização, meus senhores? (…)Os advogados estavam muito longe de pretender introduzir na justiça qualquer melhora ou de travar sua ação, enquanto — e isto era muito significativo — quase todos os acusados — mesmo os mais simples — apenas se viam envolvidos no processo já pensavam em propor melhoras, com o que perdiam tempo e energias que poderiam ser aplicadas com muito maior vantagem na consideração de outras questões. A única coisa que se deveria fazer era acomodar-se à situação tal como se apresentava(…) Era preciso comportar-se com serenidade mesmo quando se estivesse a ponto de se ficar louco. Era necessário procurar compreender que esse grande organismo de justiça era de certo modo eterno em suas flutuações, que se alguém pretendia mudar nele alguma coisa era como tirar-se ele próprio o solo de sob os seus pés e que ele mesmo é que se precipitava na queda enquanto o grande organismo, vendo-se apenas muito ligeiramente afetado por isso, conseguiria facilmente uma peça de reposição (sempre dentro de seu mesmo sistema) e permaneceria imutável se não acontecia que — e isto era até o mais verossímil — se tornava ainda mais fechado, ainda mais atento a tudo quanto acontecia, ainda mais severo, ainda pior”.

Quando K pensa ter encontrado um interlocutor que lhe explique o que de fato está acontecendo, as coisas pioram ainda mais. Segue-se  mais um diálogo desvairado:

—É a justiça — explicou por fim o pintor.

— Ah, sim! agora eu a reconheço — exclamou K. —; aqui está venda sobre os a olhos, e aqui a balança. Mas não são asas essas que se vêm nos calcanhares? E não está representada em atitude de corrida?

— Sim — disse o pintor —, encarregaram-me de pintá-la assim. Para dizer a verdade, trata-se da justiça e da deusa da vitória em uma só imagem.

— O que não forma nenhuma boa combinação —observou K., sorrindo — A justiça tem de estar quieta porque do contrário a balança vacila, com o que se torna impossível um juízo exato.

— Eu me atenho ao que me foi encarregado — explicou o pintor.

— Sim, certamente — exclamou K., que com sua observação não quisera ofender ninguém. — Você pintou essa figura tal como realmente se encontra no assento.

 — Não — disse o pintor —, não vi nem a figura nem o assento. Tudo isto é invenção, apenas que me deram indicações sobre como devia pintá-lo.

— Como? — perguntou K., que deliberadamente fingia não compreender inteiramente o pintor. — Não é porventura um juiz este que está sentado nesse assento?

— Sim — respondeu o pintor —; mas não é um juiz de elevada hierarquia, nem tampouco se sentou nunca em semelhante assento.

— E, contudo, faz-se representar em uma atitude tão solene? Parece um Presidente da Suprema Corte!

— Sim, estes senhores são vaidosos — explicou o pintor.

E continua a explicação, para que não haja nenhum ponto de esperança: “Estabelecido ali que o inocente deve ser absolvido, portanto, não se estabelece nela que se possa influir sobre os juízes por meio de relações pessoais. Pois bem; inteirei-me de que precisamente acontece tudo ao contrário, porque o certo é que não tenho conhecimento de nenhuma absolvição real, mas sim de muitos casos de influências pessoais. Naturalmente, é possível que em nenhum desses casos que conheço o acusado fosse inocente, mas não é isto inverossímil? É crível que em tantos casos não tenha havido nem mesmo um único inocente? (…) Deve você supor que nestes inquéritos da justiça se tem tempo de falar de muitas coisas às quais o entendimento nem sempre alcança; é que a gente se acha simplesmente cansado, e a imaginação se desvia. Por isso a gente cai muitas vezes na superstição. Falo de outros, mas entretanto eu mesmo não sou melhor do que eles”.

Diante desse cenário opressor e ao mesmo tempo desconexo, as reflexões de K seguem um caminho cego. E no seu itinerário, tropeça com as mulheres com que mantém também relações integralmente kafkianas: “Sabia que as mãos das mulheres fazem muitas coisas silenciosamente. Não se sentia particularmente atraído por ela, pois nem mesmo recordava exatamente que aspecto tinha, mas, como queria falar-lhe, irritava-se ao constatar que a moça ao chegar tão tarde contribuía para que também o fecho desse dia estivesse cheio de inquietude e confusão”. À dona da pensão que diz querer ter um estabelecimento respeitável, K surge com este touché: “Respeitável? — exclamou K. através da abertura da porta. — Se a senhora quer ter uma pensão respeitável deve começar por desfazer-se de mim”.

E o tio de K, que pretende ajudá-lo é outra figura perturbadora, que contribui ao tumulto:  “O tio de K. sempre tinha pressa porque era vítima do desgraçado pensamento de que no único dia (nunca ficava na cidade mais do que esse tempo) de sua permanência na capital devia despachar todos os assuntos que o traziam a ela e além disso não desprezar nenhuma conversação, negócio ou diversão que ocasionalmente se pudesse oferecer-lhe. K. que estava muito obrigado para com ele porque tinha sido seu tutor, tinha de auxiliá-lo em tudo o que pudesse e além disso alojá-lo em sua casa durante a noite. Costumava chamá-lo “o fantasma do campo”. O tio se irrita de modo categórico: “Tua indiferença me põe fora dos eixos! Ao olhar-te, quase poderia afirmar-se a verdade do provérbio: Ter semelhante processo significa já tê-lo perdido(…) Sua completa franqueza era a única coisa que podia opor em sua defesa à opinião do tio, o qual acreditava que o processo era uma grande vergonha”.

Qual foi o resultado deste mergulho fenomenológico no universo de Kafka? O protagonista não nos brinda com nenhuma luz, apenas desconcerto e confusão. Um homem dividido entres suas funções: por um lado, descobre

“até que ponto se tinha tornado importante no banco e quão valiosa parecia à segunda autoridade da instituição a sua amizade ou pelo menos sua neutralidade”. Mas pelo outro “tudo aquilo o levava por sendas do pensamento com as quais não estava familiarizado; levava-o a coisas irreais, mais apropriadas para serem discutidas pelos funcionários da justiça do que por ele”.

E para nós leitores? Um retrato cruel, mas real -além de sempre atual- de como no mundo existe uma falta total de comunicação referente ao que é essencial, e uma divulgação doentia do que é superficial. Todo o mundo sabe do processo de K, e até mais do que ele mesmo. Isso em tempos onde não havia redes sociais….Vale imaginar o que seria hoje. Aliás, o que de fato é.

A isenção de responsabilidade -faço o que o protocolo me indica, nem me preocupo com os motivos, nem com as consequências- lembrou-me de Hannah Arendt e da banalidade do mal, pois afinal Eichmann era um funcionário exemplar e protocolar. E também foi lembrada aquela fábula onde os habitantes de um cidade deveriam contribuir com uma taça de vinho para preencher o grande tonel. Um deles optou por levar água ao invés de vinho….porque afinal, o que é isso misturado com o universo do vinho que vão levar os outros? O resultado final foi….água! Porque todos pensaram como aquele, todos tiraram o braço da seringa.

Finalizando a tertúlia chegou um comentário luminoso:  Em Kafka tudo é escuridão, sem nenhuma luz de esperança. Os escritores russos também apresentam personagens miseráveis e destroçados pela vida. Mas sempre há uma luz que permite renascer a esperança. Assim é em Ana Karenina, onde todas as famílias felizes são iguais, e as infelizes o são cada uma à sua maneira. Assim é em Crime e Castigo onde Sônia cura as feridas da alma de Raskolnikov, assim é nos Irmãos Karamazov, onde Aliocha tempera o desespero de Ivan. Assim ter de ser a nossa vida: misturados com a miséria, mas sabendo buscar a luz da esperança. Como o pássaro que carrega uma gota de água no bico para apagar o incêndio. Não é ingenuidade, é fazer a parte que nos cabe, não tirar o braço da seringa.  Somente por isso -para gerar esse contraste- vale a pena ler e reler Kafka.

Comments 1

  1. Excelente análise. E como esse livro cotinua atual! Quantas vezes temos que enfrentar a impossibilidade de compreender e mudar decisões que nos afetam. A intangibilidade presente nessas situações carrega a mesma sensação de angústia, frustração, apatia e vulnerabilidade. Na escola, no trabalho, nas relações familiares, na justiça, quantos casos semelhantes ainda existem.

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