Yin Ru Chen Yan (Return to Dust): Amor, silêncio e cuidado em lírica chinesa.
Diretor: Li Ruijun. Wu Renlin, Hai-Qing, Yang Guangrui, Zhao Dengping, Wang Cailan 131 min. China, 2022
Um filme chinês de mais de duas horas. Apertei o play, e deixei correr, com baixas expectativas. Além de pouca sintonia com o cinema oriental (sempre digo o mesmo, e vou levando uma surpresa atrás da outra) não conhecia o diretor, e as referências eram difusas, tênues. Algo assim como um filme minimalista, com lirismo chinês. E o título que até agora não sei como traduzir. Return to Dust, inglês, que lembra da nossa condição mortal, não encaixa com o título em espanhol (O regresso das andorinhas -traduzido ao português). Ganhou um prêmio num festival na Espanha, e parece-me que as golodrinas (andorinhas) encaixam melhor no cenário.
Acabou o filme, fiquei pensando, muito. As cenas, suaves, delicadas, voltavam uma vez e outra à minha cabeça. Sentei, anotei alguns insights, desconexos, provocantes. Semanas depois, voltei a assistir. Precisava de me convencer de que aquilo que eu tinha visto nas entrelinhas era real. E com a sensação de que, por conta da minha falta de sensibilidade, do modo tosco com que muitas vezes nos dispomos a assistir um filme -divirta-me!, gritamos por dentro- tinha perdido o espetáculo. A vergonha tomou conta de mim. E me fez pensar sobre o que escrever. Será que o nosso modo rude, até grosseiro, de contemplar a poesia no celuloide, é capaz de assimilar todo este canto maravilhoso? Provavelmente não, falta paciência, sobra casca grossa, temos a alma paquidérmica.
Um casamento arranjado de duas pessoas enjeitadas pela própria família Uma artimanha para livrar-se do peso. Ele, homem maduro, agricultor, de poucas -quase nenhuma- palavra. Ela, também não é jovem, e padece uma afeção limitante, incontinência urinária, incapaz de ter filhos. E um burrinho, que é o retrato da mansidão de ambos, onde se encontram para trabalhar a terra, deslocar-se, para sobreviver. Está dada a largada para este poema enternecedor, onde os gestos e os silêncios, substituem as palavras, que são dispensáveis.
A mulher, frágil, congelada no frio da noite, aguardando o marido que chega pela estrada. – Por que estás aqui, neste frio? – Trouxe agua quente para você. Esfriou, e tive de voltar várias vezes para esquentá-la. Agora faz calor, dormem no teto da casa. Ele amarra a mulher no cinto dele, para que não caia. Um dos homens poderosos precisa de sangue, de tipagem rara. O agricultor tem esse sangue, e o levam, uma vez e outra, para fazer as transfusões. A mulher se preocupa: – Doutor, pegue o meu sangue, deixe o dele que está fraco.
Sem palavras, somente gestos, olhares, delicadezas que se sucedem. As flores tatuadas -impressões suaves- sobre o pulso, com grãos de trigo. – Assim você sempre estará comigo. Os pintinhos incubados com lâmpadas, porque não tem mãe, e ela, nossa aleijada, pode exercer a maternidade. E o sorriso, tímido, pudoroso, dela: – Você é um homem bom. Percebi como alimentavas o burro, quando todos o maltratavam. Me fizeram encontrar você para casar. E ele: – Fiquei encabulado quando você me olhou a primeira vez.
O capitalismo avança sobre a região. Incorporadoras destroem as modestas casas que os camponeses construíram com esforço. As indenizações são simbólicas. E ele, o quarto irmão (assim o chamam) não poupa esforços, continua trabalhando a terra, construindo, arrancando penosamente o sustento. E devolve tudo o que lhe é emprestado ou dado. Um homem íntegro, de longos silêncios, mas de enorme estatura moral.
O silencio invade o filme, enquanto o respeito -imenso- inunda cada fotograma, enquadrado também em maravilhosa estética. Até as brigas -pequenas dissonâncias- do casal são encantadoras. Ela amuada, ele em silêncio; e a coloca em cima do carro puxado pelo burro, sobre os feixes cortados na lavoura: -Fiz um ninho para você.
Não é um filme para comentar, nem muito menos para relatar. É um convite para viver, para deliciar-se nessa parábola do casamento. E para envergonhar-se com a nossa pobre sensibilidade, e com a frivolidade com que encaramos a relações afetivas neste mundo nosso. Uma experiencia estética, um mergulho fenomenológico na condição humana, que te faz pensar. Na hora e, muito mais, depois; como me aconteceu a mim.
Lembrei de Zefirelli, o diretor preciosista italiano, que falava da erosão do amor, por descuidar le piccole cose, os detalhes. E imaginei -como em um sonho- um workshop com este filme como pano de fundo, e alguns convidados notáveis: a Madre Teresa de Calcutá, a Irmã Dulce dos Pobres. E na plateia os sem teto, os sem-terra, os sem-nada, e essas ONGs, sindicalistas, e toda essa fauna variada que vive de reclamar dos direitos dos outros….Naturalmente, bem blindados, com carteira assinada, porque ninguém é de ferro. Todos em silencio, somente falando com gestos. E percebi o doce sorriso das minhas convidadas, e a plateia se retirando em silencio, como na cena bíblica, daqueles que são incapazes de atirar a primeira pedra. Um espetáculo onírico, que o filme -e as reflexões que, de fato, chegaram a tomar meus sonhos em algum momento- me fizeram contemplar.
E, pelas conexões que a sensibilidade estabelece quando é despertada com carícias, lembrei também daquele poeta do século XV, Jorge Manrique, de quem a Rainha Isabel de Castela era devota leitora. Que coisa é o amor? -pergunta-se o poeta. E escreve -enquanto traduzo livremente- estes versos:
O amor é uma força tão forte / que força toda a razão/ uma força de tanta sorte/ que todo o cérebro converte/ em sua força e dedicação
É prazer em que há dores, / dor em que há alegria, / um arrependimento em que há doçura,/ um esforço em que há medos,/ medo em que há ousadia.
E, após enumerar as características do amor verdadeiro, conclui:
Todas essas propriedades/ tem amor verdadeiro; / o falso, mil falsidades,/ mil mentiras, mil males/ como um traidor fingido.
Um filme tocante. Gestos, sorrisos tímidos, silêncios, respeito, cuidado. Ninhos de andorinhas, e o esforço por atender os detalhes, que fazem a diferença. Quando não se tem nada, e vai ficando cada vez mais claro, que é preciso de muito pouco para ser feliz. E menos ainda, quando se trata do amor, dessa força que força toda razão. Desse modo de posicionar-se no mundo do amor verdadeiro, que faz dizer a Ortega, no final deste ensaio : Tu es a melhor versão de mim mesmo!
Comments 2
Excelente visão sobre um filme capaz de despertar a sensibidade dentro da perspectiva de tranquilidade e mansidão das relações humanas.
Parabéns por compartilhar essa experiência.
Maravilhoso, caro Pablo!
Fiquei com muita vontade de assistir esse filme!