Radical: A educação como tábua de salvação

Pablo González Blasco Filmes 1 Comments

Diretor: Christopher ZallaEugenio DerbezDaniel HaddadJennifer TrejoMía Fernanda SolísDanilo GuardiolaVíctor Estrada, 125 min. México, 2023

Assisti ao filme, gostei muito, o recomendei para alguns amigos que estão envolvidos na educação infantil, também com crianças de recursos limitados, de classes modestas. Mas, por algum motivo, não pensei em escrever.

Talvez porque o acento mexicano -forte, peculiar, me fez lembrar de amigos queridos no México, também educadores- me distraiu. Pensei: tenho que falar com eles, avisá-los para que vejam este filme que é um tributo ao esforço educacional de um professor herói que trabalha em condições precárias. E como quando me comunico com eles o faço em espanhol, não percebi de cara que,  mesmo sendo uma história real acontecida no México no século XXI, o exemplo é universal. Depois, até pensei escrever em espanhol, mas desisti: por que restringir esta lição magnífica apenas ao público hispano falante, quando a maioria dos que se aventuram a ler o que escrevo, falam português?

O diretor, de origem queniano residente em USA, estampa na tela uma história real. A cidade é Matamoros (Estado de Tamaulipas), na fronteira do México com os Estados Unidos. A fronteira é caldo de cultura para o crime e o tráfico de drogas. É a imagem especular de Tijuana, mas do outro lado, no nordeste mexicano. Na cidade, uma escola pública, José Urbina López, onde alunos de baixa condição social fazem de conta que estudam, e os professores fazem de conta que ensinam.  Todos estão envolvidos em outras preocupações: a pobreza, as drogas, a necessidade de ajudar em casas miseráveis; e o professorado, de olho nos índices dos exames para tentar não perder o emprego. O governo não liga o mais mínimo, e as subvenções que a escola deveria receber para melhorar os recursos, são desviadas para os bolsos dos que comandam. Corrupção instalada, horizontes fechados.

Neste cenário, surge um professor com um método radical, que da nome ao filme. O professor tem um nome evocador: Sérgio Juárez Correa, que me fez mergulhar na pesquisa, atrás do outro Juárez, Benito. Um homem procedente das classes baixas, indígena, que chegou a ser presidente do México (várias vezes), enfrentou resistências e exílios, combateu o imperador Maximiliano e o domínio francês, e conduziu a república mexicana com mão firme e com a cultura que soube adquirir ao longo da vida. Como todo político, tem seu lado sombrio parelho ao luminoso, mas sem dúvida, um self-made man.

Em que consiste este método radical do professor revolucionário? Simplesmente em aproveitar o potencial dos alunos, em tirar deles o melhor. Obviamente, algo que as crianças desconhecem, porque nunca se lhes deu a oportunidade de descobri-lo. Ai entram os métodos chocantes -e eficazes- de Sergio Juarez: “nadar” no chão da sala de aula e agarrar-se às carteiras como barcos que lhe salvam do naufrágio; mergulhar num tanque para satisfazer a curiosidade da densidade e o motivo da flutuação dos corpos. E as histórias e fábulas: o burro velho que cai num poço, o dono que desiste dele e quer enterrá-lo jogando tralha…..o que acaba facilitando a saída do burro. “Nós somos assim: quanto mais lixo jogam em cima de nós, mais chance temos de escalá-lo para sair do poço da miséria”.

Não é um filme esteticamente bonito, com histórias de sucesso -que têm várias- porque também tem fracassos e desânimos. Não é um filme de argumento linear, porque os alunos são os que oferecem as variações, cada um com suas peculiaridades. Seria o que hoje se denomina um filme coral, de várias vozes, e o professor é o diretor do coro. Mas a melodia que resulta é impactante, porque faz pensar, a todos.  Aos educadores, aos gestores, e a todo ser humano que se preocupe em melhorar o mundo.

Nas minhas pesquisas -de Benito Juarez até a escola José Urbina López- encontro a entrevista do professor, dentro de uma site que se intitula: centro de referência em educação integral. Quer dizer, do lixo -literalmente, a escola está do lado do lixão, e vários alunos moram por lá nas imediações- até a excelência. Um case de sucesso, sim; mas não de sorte, porque houve dedicação e compromisso.

Nesta altura das minhas reflexões, reparo o outro motivo que não me impulsionou a escrever logo de cara. Tem muito filme de professores, e tenho comentado recentemente vários. Mais do mesmo -pensei. Mas, passando os dias, e contemplando o cenário no qual estou pessoalmente envolvido (educação médica), decidi debruçar-me sobre o teclado a anotar o que me vinha à mente.

Já comentei neste espaço os sustos -por chamá-los de alguma maneira- que tenho levado ao comprovar as tentativas grotescas que se produzem diariamente para educar médicos. Alunos que na presença do paciente em sofrimento passam mal…..porque na faculdade somente vêm bonecos para treinar. O absurdo de outro aluno que diz não saber falar com o paciente, mas que sim, é capaz de examiná-lo. Eu pensei: como é possível examinar, tocar, por a mão em alguém sem conversar com ele? Novamente a resposta vem em forma de bonecos para treinar (obviamente de nada serve falar com o boneco, melhor partir para o exame diretamente). E até o nome do funcionário que “cuida dos bonecos” me chegou provocando o riso, ou talvez, o espanto: Gepeto! (coitado do Pinóquio).

A última notícia que me chegou neste campo -nem sei se procede ou é fake– é que como o exame de residência médica é muito exigente, está se pensando em incluir quotas!!! Isso foi o estopim para começar a escrever estas linhas.  As quotas são a solução fácil -e ineficaz- para buscar uma educação equalitária, acessível a todos. Temos visto isso nas Universidades, com resultado assustador, com o nível acadêmico despencando. Temos visto isso em muitos outros lugares, onde a quota vem mascarar a incompetência evidente. E pode ser que haja quem pense que borrifando quotas aqui e acolá -a modo de spray de bom -cheiro- estamos conseguindo a igualdade de oportunidades para todos. Ledo engano.

A igualdade de oportunidades exige atacar o problema na raiz, cuidar da educação publica para reciclar o lixo em que o ser humano está mergulhado, transformando-o em material de qualidade. Exige o que o filme mostra claramente: compromisso, paixão por educar, desejo real de melhorar o mundo, acreditando no potencial das pessoas. Há desafios imensos -o filme também mostra- que têm amplo espectro: do descaso dos responsáveis pela gestão, até os complexos problemas familiares, passando pela linguagem do aluno, que exige uma mudança de paradigma para comunicar-se com eles eficazmente.

Mas tudo isso, só é possível com dedicação e persistência. Renovando-se diariamente como professor. Agarrando as oportunidades que chegam -poucas, exíguas- para tirar água de pedra. Exige, de novo,  vocação;  paixão por ensinar. O ritmo é fisiológico, como o crescimento; demora, não se consegue de repente. E, como as grandes obras de arquitetura, nem sempre quem as imaginou consegue vê-las terminadas. As catedrais não têm assinatura, porque são fruto de uma cultura de séculos. A cultura da educação é semelhante. Finlândia, por exemplo, demorou mais de 30 anos em mudar a tendência enorme do suicídio dos jovens, porque fez um pacto de estado em relação à educação: quer dizer, nem político, nem governo, nem gestor pode tocar nela ao seu gosto. É como a constituição, sem possibilidade de emendas.

Diante desse panorama, as quotas são como um aplicativo para resolver problemas que requerem crescimento fisiológico. Quer dizer, uma fuga do desafio real, e absolutamente inúteis. Com a vantagem de que, essas sim, tem assinatura, e rendem dividendos financeiros e eleitorais. Uma farsa completa. Um analfabeto fantasiado de acadêmico da língua.

Não há atalhos, nem aplicativos, para transformar o mundo. É preciso cultivar -dai a palavra cultura- com paciência e perseverança. E acreditar que a educação é a tábua de salvação que, em consciência, temos que disponibilizar a muitos para salvá-los do naufrágio vital, parafraseando a Ortega. E, adiantando-me à pergunta, que costuma chegar de alguns que se atreveram a ler estas linhas, – onde posso assistir esse filme? – já dou a resposta: não me consta que esteja em plataformas. Terá que buscar por sua conta e, talvez, compartilhar com outros. Quer dizer, divulgar o conhecimento, socializar as oportunidades, diretamente, em aberto, sem quotas.

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