Philip Kerr: Violetas de Março
Ed. Record. São Paulo. 1999. 288 págs

Por conta de alguma das críticas literárias que chegam até nós, tínhamos escalado esta obra para a Tertúlia Literária, quando ainda estava ativa. Os encontros mensais foram por ora suspensos, mas não o ritmo da leitura, de modo que nos aventuramos com a novela do escocês Phillip Kerr.
Um autor que, sendo britânico, parece conhecer à perfeição o mundo germânico da ascensão do nacional socialismo, que precede à segunda grande guerra. A crítica o qualifica como inventor da séria Berlim Noir, um conjunto de romances policiais situados em Berlim na década de 1930, tendo como protagonista um investigador de nome Bernhard (Bernie) Gunther.
A leitura é fácil e dinâmica, não assim os nomes e os locais -uma verdadeira topografia de Berlim, impossível de acompanhar para quem não está familiarizado com a cidade. As personagens entram e saem dos muitos recantos berlinenses, de modo que seguir a trama requer esforço. O que por outra parte, também não é necessário, porque Bernie tem tudo na cabeça, pensa em voz alta, e vai nos apresentando os resultados.
Confesso que, em mais de uma ocasião durante a leitura do livro, pensei que melhor serviria como roteiro de um filme, onde tudo ficaria muito mais claro e accessível. E isso, inevitavelmente, levou-me até as saudades de Humphrey Bogart, interpretando Sam Spade em O Falcão Maltes de Dashiell Hammett, ou Philip Marlowe em A Beira do Abismo, de Raymond Chandler. Fui checar no IMDB e nada encontrei sobre este possível filme. Teria ajudado, sem dúvida.
Mas, por outra parte, Bernie não é Bogart. Pode até partilhar com ele o cinismo escrachado do ator americano (Rick de Casablanca é um belo exemplo –te desprezaria, se por algum momento pensasse em você), mas não combina com o garanhão incorrigível que o alemão demonstra ser. Passa pelas mulheres -ou melhor, elas passam por ele- como detalhes, pistas, sem o menor envolvimento afetivo. Uma libido fisiológica, que desce até os detalhes, algo impensável em Humphrey (novamente Casablanca, no final: Rick, parece-me que você é um romântico incorrigível – afirma o inspector Renault, após mandar prender os suspeitos habituais).
Sem filme para facilitar, e com uma trama emaranhada, o que fica desta obra? Sem dúvida, os diálogos, que são o melhor. As ironias continuas com as mulheres -que é o que sobra de romantismo, nesta personagem (lembrei novamente de Bogart falando com Lauren Bacall: se precisar de mim, assobie!). Valem alguns exemplos: “A noiva, Dagmarr, era minha secretária e eu não tinha ideia de como faria sem ela. Isso não quer dizer que não me preocupava: muitas vezes eu mesmo pensei em casar com Dagmarr. Era bonita e organizava a minha vida, e, na minha bizarra maneira de pensar, eu supunha que a amava; mas, aos trinta e oito anos, era provavelmente muito velho para ela e, talvez, um pouquinho maçante (….) Que essa deusa pudesse se casar com o gnomo que ficara sentado na biblioteca era o tipo de coisa que sustentava nossa fé no dinheiro. Observei-a a caminhar na direção da porta da biblioteca: era alta, loura e de aparência tão saudável quanto a conta bancária de seu marido na Suíça”.
Bernie despreza os nazistas, e as críticas políticas dão colorido ao seu cinismo investigativo. Especialmente aos conversos ao nacional socialismo denominados violetas de Março, daí o título do romance. “Todos na Alemanha eram diferentes antes de março de 1933. E, como eu sempre dizia: “Quem não seria nacional-socialista com uma arma apontada para a cabeça?” (…) O problema com os nacional-socialistas, especialmente os jovens, é que eles pensam ter o monopólio do patriotismo. E, mesmo que não o tenham agora, da forma como as coisas andam, logo o terão (…) Se não fosse pelas pessoas que bebem, este país seria realmente um inferno. Faço votos de que tenhamos mais bêbados e a frustração de uma administração eficiente da Alemanha nacional-socialista”.
As ironias não poupam todos os que se cruzam com ele: “Se ela trabalha para a Gestapo, então é lógico que não é do tipo que fica sublinhando versículos na Bíblia (…) Do bolso do casaco, ela retirou um pequeno lenço rendado que parecia tão deslocado em suas grandes mãos de camponesa quanto um xale nas de Max Schmelling, o boxeador, e bastante inadequado para a tarefa que o esperava: ela assoou o nariz, que parecia uma noz na salmoura, com tamanha ferocidade e barulho que tive o impulso de segurar o chapéu em minha cabeça (…) Sabe, a maioria das medalhas de primeira classe foram concedidas a homens nos cemitérios”.
Esse cinismo irônico é como o motor de arranque do próprio Bernie, que consegue divertir-se às custas dele mesmo: “Repentinamente uma porção de gente estava tão interessada na minha folha de serviço de guerra, que cheguei a pensar se não teria sido melhor requerer o emblema de veterano (…) Havia muitos livros, daqueles que são comprados a metro: muitos poetas alemães, filósofos e juristas com os quais eu poderia declarar ter alguma familiaridade, mas somente como nomes de ruas, bares e cafés (…) Enquanto estava bebendo, fiz uns rabiscos num pedaço de papel, do tipo algébrico que você espera que ajude a clarear os pensamentos. Quando terminei, estava mais confuso do que nunca. A álgebra nunca foi meu forte (…) O pior de tudo é que agora que resolvi andar na linha, parece que o resto do país decidiu sair. Vou para a prisão e quando saio descubro que os idiotas escrotos elegeram um bando de gângsteres (…) Isso me deixou tão confortável quanto uma truta num piso de mármore e, sem nenhum motivo aparente, senti algo parecido com vergonha”.
E nas suas cavilações de investigador também a ironia é a protagonista: “Judeus, ciganos, índios, tudo é a mesma coisa para mim. Não tenho nenhuma razão para gostar deles, mas também não tenho razões para odiá-los. Quando um judeu ultrapassa a porta de entrada, o procedimento é o mesmo que com qualquer outro. Mesmo que o cliente seja primo do Kaiser. Mas isso não significa que eu me dedique ao bem-estar deles. Negócio é negócio (…) Dei uma espiada em seus sapatos. É possível saber muita coisa pelos sapatos do cliente. Essa é a única coisa que aproveitei de Sherlock Holmes (…) Quando alguém está disposto a se separar de 200 marcos, como o Dr. Schemm, é melhor ficar atento (..) Repôs o fone no gancho e me fitou com uma expressão que estava a milímetros do mau humor”.
Bernie avança numa investigação cheia de meandros, complicada, onde nada é o que parece ser. A sua tenacidade deve ser reconhecida, não desiste. Assim o entende o cliente que o contratou para desvendar o crime, que acaba sendo diversificado: “Não havia esperado que fosse tão obstinadamente inquisitivo. Para ser franco, achei que faria exatamente o que lhe foi pedido. Mas você não é o tipo de homem que segue estritamente o que lhe foi dito para fazer, é?”. E Bernie responde: “Quando você arranja um gato para pegar o rato na sua cozinha, certamente não espera que ele ignore os ratos no porão”. Os ratos que vão aparecendo -de cores e aspectos variados, nem sempre agradáveis- são o mosaico deste romance que, repito, seria um bom roteiro de filme noir, mas que em texto corrido carece de grande encanto. Perda de tempo? Não, uma variedade necessária do mundo literário acreditado pela crítica. E sempre existe a possibilidade de que alguém se aventura em plasmá-lo nos fotogramas.